Quando ouvimos falar em acontecimentos históricos, não é incomum pensarmos primeiro nas consequências de nível macro, como a partilha de territórios ou mesmo a escalada de poder de um governo autoritário. Porém, ao ler “Valente: Histórias de pessoas refugiadas no Brasil”, percebe-se o quanto os grandes eventos são capazes de remodelar a vida de pessoas comuns de forma que a gente nem imaginava.

Esta resenha é uma parceria com a Companhia das Letras. Se gostou, não deixe de buscar estes e outros livros no catálogo da maior editora brasileira!

O livro escrito por Aryane Cararo e Duda Porto de Souza (também autoras de “Extraordinárias mulheres que mudaram o Brasil”, de 2017) é um convite para que conheçamos pessoas que vivenciaram grandes acontecimentos históricos e, pelos mais variados motivos, decidiram iniciar uma nova vida no Brasil.

Uma pessoa refugiada geralmente é “forjada” pelos mais diferentes tipos de pressões – perseguição, catástrofe clima, guerra, ameaça, problemas financeiros, racismo, religião, nacionalidade, identidade de gênero, etnia, orientação sexual e opinião política – que lhe impedem de viver uma vida plena em sua terra de origem. Os diferentes países apresentam planos e tratamentos diferenciados a pessoas refugiadas que são importantes para o desenvolvimento da potencialidade humana ou mesmo para a inserção dela na sociedade.

Desta forma o livro retrata, por meio de histórias de pessoas que estão em condição de refúgio em diferentes graus, o quanto é necessário para o Brasil (um país de características acolhedora, multicultural e aberto ao mundo) repensar suas políticas de acolhimento de pessoas refugiadas. Em nosso país, existe uma máxima de que “estamos todos em um mesmo barco” quando algo está dando errado. O livro nos faz lembrar de que “estamos de fato em barcos diferentes”, onde existem pessoas em condições sub-humanas e que são tratadas sem o mínimo senso de dignidade. O livro também é um convite para que todos possamos derrubar nossos próprios muros simbólicos, criados por décadas de preconceitos e falsas ideias sobre pessoas ditas diferentes.

Nosso país realmente foi criado em base multicultural. A origem da nacionalidade brasileira é uma mescla dos valores de nativos indígenas, da diáspora forçada africana e da colonização cultural portuguesa, misturados no século XIX com as aspirações de alemães, japoneses e italianos. No século XXI estamos recebendo um aporte de refugiados sírios, haitianos e venezuelanos, que passam hoje em dia por dificuldades que são próprias do destrato muitas vezes institucional e, por vezes, dos brasileiros, que acreditam que eles são analfabetos, burros, preguiçosos ou mesmo trazem intenções dúbias para as terras tupiniquins.

O ponto mais positivo do livro é escancarar as dificuldades reais que devem ser combatidas para garantir um ambiente mais igualitário e livre de preconceitos, como a derrubada de mitos de que “o refugiado rouba o trabalho do brasileiro”, “saíram do país deles por fazer coisa errada”, “são terroristas” ou mesmo “só querem viver de recursos públicos”. Por meio do livro, aprendemos que os refugiados não são encargos econômicos para a nação, que são consumidores de produtos e serviços como qualquer outra pessoa e ajudam a movimentar a economia com a sua força de trabalho ou mesmo a abertura de novos negócios em território nacional. De fato, o livro é recheado de narrativas de crescimento e prosperidade no país, mostrando que uma boa acolhida é capaz de ajudar uma região não somente economicamente, mas com a troca de ideias e paradigmas que são propícios para o enriquecimento cultural.

 

A expressão boat people foi criada para se referir a pessoas que fugiam da Guerra do Vietnã para chegar a outros países em botes, sofrendo penúrias como fome, sequestro por piratas, brigas, estupro, abandono no mar e tempestades, muitas vezes levando a morte. A expressão se popularizou depois como uma modalidade de fuga moderna, praticada muitas vezes por cubanos e sírios por exemplo. Foto de Danphal Narine [1].

De forma para lá de única, o livro pontua a complexidade que se observa nestes fluxos migratórios no Brasil pelos serviços públicos e privados, mostrando os diferentes tipos de modalidades de fuga dos refugiados, como a fuga por botes em alto mar, a fuga dentro da própria floresta amazônica, rotas de coiotes (pessoas que ganham a vida com a travessia “segura” dos refugiados), passagens de avião ou simplesmente comprando uma passagem de ônibus. Estes refugiados escolhem por vezes o país como seu local de residência ou só mesmo outro local de passagem, dependendo por vezes do destrato que os mesmos podem sofrer pelos cidadãos.

Entre os diferentes tipos de destrato que o brasileiro pode reproduzir segundo o livro (muitas vezes sem intenção aparente), observamos o racismo direcionado a angolanos, moçambicanos, haitianos e demais afrodescendentes. É comum a reprodução de preconceitos como acreditar que todos eles não possuem estudo apropriado, que o Haiti é um país africano, que estão aceitando qualquer tipo de trabalho ou mesmo que são assaltantes ou ladrões. Com relação ao mesmo preconceito em comparação aos afro-brasileiros, os demais afrodescendentes sofrem ainda de um estigma racial que nunca observaram em vida.

Observa-se também o preconceito direcionado aos vizinhos latinos, como acreditar que são revendedores de drogas, atravessadores ou mesmo que são vagabundos que dependem do assistencialismo do país alheio. De todas as formas de preconceito observadas no livro, a islamofobia direcionada aos árabes e seus descendentes está em crescimento desde o ataque terrorista do Charlie Hebdo em 2015. Xingamentos e cusparadas fazem parte da rotina de algumas dessas pessoas em momentos de sua vida, como se cada muçulmano fosse diretamente responsável pela tragédia.

Saber sobre a trajetória de vida de cada pessoa nos ajuda a entender que, apesar da condição de refugiados, todos eles possuem histórias singulares de eventos que dificilmente serão representadas em narrativas de filmes ou séries sobre o mesmo assunto. O livro não deixa de mostrar definições importantes para que entendamos o contexto pelo qual as pessoas saíram de seus países, como boat people, criança-soldado na guerra africana, paramilitar a serviço de uma força revolucionária, coiote (atravessador de refugiados) e maricona (denominação pejorativa dada a homossexuais perseguidos pelo regime cubano).

 

Explosão na capital do Líbano (Beirute) em 2020 [2]. O Brasil recebeu uma grande quantidade de libaneses após a guerra civil libanesa de 1982, com atualmente mais descendentes de libaneses em território nacional (12 milhões) do que libaneses de fato (4,5 milhões). A hibridização com os valores internacionais serve de apoio a ideia de que nosso país consegue viver bem com pessoas com cultura e história diferentes da maior parte da população.

Com tudo o que foi mostrado no livro, tenho certeza que vale a leitura para todos aqueles interessados em saber mais sobre os fluxos migratórios ou a história que os refugiados vivenciaram. As autoras sintetizaram muito bem os sentimentos e as perspectivas de vida dessas pessoas e nos entregaram uma narrativa ímpar para que possamos ajudar a quebrar o preconceito intrínseco contra eles, apoiando a ideia de que nossa nação pode se tornar a terra dos sonhos destes novos brasileiros! Como diria o Papa Francisco na concessão da indulgência plenária pela pandemia de covid-19 no início deste ano:

 

Palavras como indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são as que queremos ouvir neste tempo. Mais, queremos bani-las de todos os tempos.”

Referências:

 

[1]: NARINE, Danphaul. The tragedy of the boat people: The se ais not a cemetery. The west indian blog, 17 set. 2018. Disponível aqui. Acesso em 01 set. 2020;

[2]: RIO, Redação Diário do. Prefeitura decreta luto por mortes em tragédia no Líbano e oferece ajuda com médicos e remédios. Portal Diário do Rio.com, 05 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 03 set. 2020.