“Enquanto o leão não aprender a escrever, todas as histórias glorificarão o caçador”- provérbio africano.

Há quem diga que somos os autores da nossa própria história. Mas quem seriam os autores da grande narrativa histórica que fica para os livros e é estampada na mídia diariamente? Qual narrador tem mais poder na hora de contar sua história nos tribunais? É esta a provocação colocada por Rebecca Solnit neste livro, e por mais que a palavra “feminismo” no subtítulo possa afastar leitores que menosprezam esse movimento, acredite que este livro questiona muito mais do que a estrutura homem X mulher na sociedade.

O que a autora nos mostra é que, infelizmente, quem controla a narrativa mainstream do mundo (em suas principais formas e cenários) são homens, poderosos, em sua enorme maioria brancos e que reproduzem padrões da sociedade patriarcal do século 18. As mulheres, as minorias, os negros são “ninguém” no sentido de não ter poder de levantar sua voz e contar sua história. E ela demonstra com exemplos práticos como isso afeta a relação de poder entre os gêneros, com pessoas fora dos padrões “tradicionais” de gênero e até mesmo os homens e meninos que crescem cercados de uma noção de masculinidade bastante deturpada.

Ao mesmo tempo que controlam as narrativas que entram para a História, estes mesmos homens poderosos não só relutam em aceitar narrativas alternativas – que cada vez mais aparecem e são ouvidas na sociedade em que vivemos – mas também fazem de tudo para abafar todas essas outras vozes. E as ferramentas usadas para perpetuar este enorme cala boca são conhecidas: violência, ameaça e destruição da imagem de mulheres e outras minorias (que demograficamente já são maioria) perante o grande público. Não precisamos de exemplo mais claro do que este do que os diversos julgamentos sobre estupro que desconstroem as vítimas ao invés de analisar a conduta dos réus.

O que isso significa é que nós, mulheres, somos leoas sem acesso à narrativa, que nos é negada diariamente pelos caçadores, e isso é feito com questionamentos quando denunciamos um estupro, nas super-sexualização do nosso corpo para o prazer masculino e até mesmo com as barreiras impostas para que ocupemos espaços de poder em suas diversas formas.

 

“É mais fácil culpar uma única mulher (e chamá-la de louca) do que toda uma cultura.”

 

Por ser pequena, são 204 páginas, pode parecer que esta é uma obra rápida e fácil de ler. Mas não se engane, cada página é uma sequência de tapas na cara conforme Solnit desnuda as diferentes formas de violência que sofremos todos os dias – muitas das quais nem percebemos por termos essa sociedade patriarcal enraizada em nossa educação. É assustador perceber pequenas violências – físicas ou psicológicas – que acometem as mulheres diariamente, as diversas ferramentas de controle, algumas tão tão enraizadas que começam dentro de casa.

E um dos pontos mais poderosos deste livro é a demonstração de que essa necessidade de destruir a mulher, ou sua imagem, é perpetrada para que o poder dos homens de abusar (sexual, verbal ou mentalmente) continue intacto. E algumas dessas destruições beira a desumanização: não há forma mais anuladora da condição humana do que pedir que a vítima de um estupro considere como sua acusação causará impacto na vida do estuprador. Quantos “nãos” ditos por mulheres foram ignorados, simplesmente para satisfazer um desejo (que não precisa ser sexual) de um homem? Quantas vezes precisamos nos moldar para que os homens não se sintam desconfortáveis?

 

“As mulheres passam a vida negociando sua sobrevivência, sua integridade física e sua humanidade”

 

Mas então este é um livro sobre mulheres e para mulheres? Não.

Como falei anteriormente, a palavra “feminismo” assusta, mas o assédio e o machismo detalhados dolorosamente na obra não afetam somente as mulheres. Este silenciamento de narrativas está enraizado na sociedade de tal maneira que afeta a todos: homens e mulheres, brancos e não brancos, cis, héteros, trans. Talvez as mulheres sejam as vitimas mais óbvias por terem seus corpos violados frequentemente e/ou viverem com medo desta violação. Mas os homens não escapam ilesos desta estrutura. Eles podem sofrer menos violência físicas e visíeis, mas estão cercados de um machismo tóxico cheio de pressões sociais construídos por uma sociedade que os desumaniza. Esta narrativa também não é sua, é daqueles que controlam as Histórias.

A autora destroi outro argumento frequente contra o feminismo dos que dizem que não se pode generalizar a conduta dos homens pelas ações de algumas maçãs podres. Nos pedem que nós, mulheres, perdoemos os chamados “homens bons”, que levantam sua voz somente para dizer que não compactuam com essa estrutura violenta. O problema é que estes mesmos homens a reproduzem diariamente– querendo ou não. Não adianta não estuprar, não assediar, não diminuir – isso é o mínimo que se espera. É preciso dar o próximo passo e aprender sobre essas inúmeras formas de violêcia para ajudar a desmontrar essa estrutura social tóxica por dentro. (Se é dificil de entender, pense que é a mesma ideia de “não adianta não ser racista, tem que ser antirracista”).

Para resumir o que significa tudo isso, Solnit nos deixa este trecho:

“A ignorância é uma forma de tolerância, fingindo que estamos em uma sociedade que não enxerga a cor da pele de ninguém ou na qual a misoginia é uma prática pitoresca, uma coisa antiga que já superamos. É não ter o trabalho de saber como as pessoas ao redor vivem e porquê”.

O livro é intenso, são tantas lições, tantos casos, tantos abrir de olhos que é virtualmente impossível ler tudo de uma vez. É preciso digerir, processar, como estas verdades jogadas na nossa cara efetivamente afetam nossas vidas. É virar todas as pedras para encontrar as formas de silenciamento e as pequenas violências diárias que sofremos, e uma vez que as enxergamos, trabalharmos para destruí-las. E mesmo que haja a dor do crescimento, de se descobrir quase cega perante a tudo que acontece ao nosso redor e nos silencia, esta leitura é praticamente uma terapia – você sai com mais claridade sobre o mundo, com consciência sobre as estruturas te silenciam e, certamente, mais bem municiada para destrui-las, uma a uma.

Obrigada, Rebecca Solnit.

 

“O poder que uma pessoa tem de definir a sua própria existência é um dos poderes mais importantes que se pode ter”