Estamos em clima* de Modernismo, falando da Semana de Arte Moderna de 1922 aqui no Portal. Mas já pensou se pudéssemos voltar 100 anos no tempo e viver tudo aquilo? Eu não tenho uma máquina do tempo, mas posso fazer isso contando para vocês quais eram as condições meteorológicas da Semana de 22.

Nessa viagem no tempo que quero fazer com vocês, vamos conhecer um pouco da história das observações meteorológicas na cidade de São Paulo. Vamos caminhar por uma cidade completamente diferente e por fim fazer uma reconstituição das condições meteorológicas da Semana de 22.

O Observatório de São Paulo

No final do século XIX, ainda na época da monarquia, foi criada a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (CGG), que ficou encarregada da expansão das observações astronômicas e meteorológicas por todo o Estado. Os serviços de meteorologia já eram considerados muito importantes para a expansão da agricultura, atividade que estava em grande desenvolvimento em São Paulo; basta lembrar que era a época dos grandes barões do café.

Por volta de 1902, o engenheiro José Nunes Belford Mattos ficou responsável pelas observações meteorológicas da CGG, chefiando o Escritório Meteorológico no período de 1902 até 1907. Logo após houve o desmembramento da CGH e Belford Mattos passou a ser diretor do Serviço Meteorológico da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo.

Belford Mattos gostava tanto de Meteorologia que levou o serviço pra casa, uma vez que fazia observações meteorológicas e astronômicas em seu próprio quintal. O local ficou conhecido como Observatório da Avenida.  A influência de Belford Mattos permitiu que ao lado de sua casa fosse construído um observatório oficial, próprio para que fossem realizadas observações astronômicas e meteorológicas. Esse local ficou conhecido como Observatório de São Paulo e funcionou de 1912 até 1935, quando lamentavelmente o prédio foi demolido.

A localização exata do Observatório de São Paulo é ao lado de onde hoje é o MASP. O terreno do MASP abrigava o Belvedere, uma espécie de clube da alta sociedade paulistana. Na época, a Avenida Paulista era uma avenida residencial, com mansões belíssimas pertencentes aos barões de café e outros ricaços.

Imagem do Observatório de São Paulo. A construção do lado direito é a casa de Belford Mattos. Foto da década de 1910-1920

Para que os leitores tenham uma ideia geral da localização do Observatório de São Paulo, editei uma foto aérea feita entre 1910-1930. Nela, é possível compreendermos como era a Avenida Paulista naquela época:

Foto aérea de trecho da Avenida Paulista. A foto aérea foi feita entre 1910-1930, não sei o ano ao certo. Podemos ver a inexistência de prédios. No centro da imagem, destaca-se uma bela construção com pátios amplos chamada Belvedere. Na frente do Belvedere, uma área de mata onde hoje é o Parque Trianon. Bem ao lado do Belvedere, o prédio do Observatório de São Paulo. E ao lado do Observatório de São Paulo, a casa de José Nunes Belford Mattos.

Foto aérea original. Na sequência, vou mostrar a versão que editei para vocês compreenderem.

Mesma imagem que descrevi anteriormente, mas dessa vez coloquei setas indicando cada um dos lugares. Portanto, a descrição da imagem anterior já atende ao que mostrei aqui com setas coloridas.

Foto aérea que editei. Não ficou muito bom, porque a imagem que obtive estava com baixa resolução. Podemos ver a localização do Observatório de São Paulo.

Nos fundos do Observatório de São Paulo havia uma Estação Meteorológica bastante completa. A figura a seguir  mostra o quintal dos fundos do Observatório, e podemos ver, no lado esquerdo, o abrigo meteorológico, estrutura importante dentro de uma estação meteorológica.

Imagem do quintal dos fundos do Observatório de São Paulo, onde podemos observar uma casinha branca do lado esquerdo. Essa casinha branca (dimensões de aproximadamente 1m x 1m x 1m) está elevada do solo em cerca de 1,20m. Dentro dessa casinha, chamada abrigo meteorológico, temos vários instrumentos meteorológicos em funcionamento. O quintal é gramado.

Abrigo meteorológico (casinha branca) do lado esquerdo da imagem. No interior do abrigo, estão os termômetros de uma estação meteorológica.

Belford Mattos foi diretor do Observatório de São Paulo até 1926, ano de sua morte. Portanto, o Observatório de São Paulo estava em pleno funcionamento na Semana de 22 e o diretor era o próprio Belford Mattos. Soube que ele era um sujeito dedicado, realmente gostava do que fazia. Quando trabalhei na Estação Meteorológica do IAG-USP (EM-IAG-USP), tive acesso às cadernetas e documentos da época e tudo estava em ótimo estado.

Por fim, o Observatório de São Paulo fechou em 1935. O crescimento da cidade dificultou atividades astronômicas naquela área. Houve a necessidade de encontrar outro local e ele mudou-se para o Parque Estadual das Fontes do Ipiranga, local onde hoje é o Parque CienTec – USP. Nas dependências desse parque está a EM-IAG-USP, que funciona desde 1933. A EM-IAG-USP é responsável pelo Museu de Meteorologia (no mesmo local) e pelo acervo documental do Observatório de São Paulo. Conversei com meu colega Edvaldo Gomes que gentilmente me forneceu os dados que eu precisava.

Os dados meteorológicos da Semana de 22

A Semana de 22 ocorreu no Theatro Municipal de São Paulo, que fica distante cerca de 2,8km do local onde era o Observatório de São Paulo. No Google Maps eu fiz um pequeno mapa indicando o trajeto a pé, o que basicamente seria descer a Avenida 9 de Julho. Lembrando que em 1922 não existia Avenida 9 de julho e o trajeto deveria ser feito de outra maneira, caso você morasse na Avenida Paulista e quisesse participar dos eventos. Se você quiser ver um mapa da época (que mostra o Observatório de São Paulo e o Teatro Municipal), tem no site da Prefeitura de São Paulo.

Mapa obtido no Google Maps, mostrando a distância a pé entre o Theatro Municipal e o local onde era o Observatório de São Paulo.

Mapa obtido no Google Maps, mostrando a distância a pé entre o Theatro Municipal e o local onde era o Observatório de São Paulo.

A distância de cerca de 3km entre o local das observações meteorológicas e o Theatro Municipal é relativamente pequena e podemos, sem nenhum problema, usar os dados meteorológicos que obtive para fazer uma reconstituição das condições meteorológicas da Semana de 22.

Os dados que recebi são anotações em cadernetas, com informações sobre temperatura, precipitação, pressão atmosférica, vento, umidade e alguns metadados. A imagem a seguir é referente as observações do dia 13 de fevereiro de 1922. Eu recebi uma série de 5 imagens, do dia 13 ao dia 17 de fevereiro de 1922.

Imagem da página da caderneta com as observações meteorológicas do dia 13 de fevereiro de 1922. São observações meteorológicas do Observatório de São Paulo, como mencionado anteriormente.

Das cadernetas, extraí a Temperatura Máxima (maior temperatura do dia), Temperatura Mínima (menor temperatura do dia), Umidade Relativa Máxima e Mínima e Precipitação. Essas variáveis já nos ajudam a entender se havia uma sensação de desconforto térmico e se o deslocamento pela cidade estava de alguma maneira prejudicado.

A seguir, uma breve descrição meteorológica de cada um dos dias da semana de 1922:

Dia 13/02/1922: a temperatura mínima foi 18,0ºC e a máxima foi 28,8ºC. Foi o dia mais quente da Semana de 22. A umidade relativa ficou entre 66% e 95% (o valor mais alto ocorre de madrugada). Não houve ventos intensos e não choveu.

Dia 14/02/1922: a temperatura mínima foi 16,6ºC e a máxima foi 27,4ºC.  A umidade relativa ficou entre 70% e 92% (o valor mais alto ocorre de madrugada). Não houve ventos intensos e não choveu.

Dia 15/02/1922: a temperatura mínima foi 16,6ºC e a máxima foi 23,2ºC.  A umidade relativa ficou entre 78% e 94% (o valor mais alto ocorre de madrugada). Choveu no período da manhã (entre 7h e 14h), no total de 1,1mm. Foi um dia bem nublado, o que é evidenciado pela temperatura máxima que não ficou tão alta quanto nos outros dias.

Dia 16/02/1922: a temperatura mínima foi 17,0ºC e a máxima foi 25,6ºC.  A umidade relativa ficou entre 72% e 95% (o valor mais alto ocorre de madrugada). Choveu no período da manhã (entre 7h e 14h), no total de 1,0mm.

Dia 17/02/1922: a temperatura mínima foi 15,8ºC e a máxima foi 23,0ºC.  A umidade relativa ficou entre 77% e 89% (o valor mais alto ocorre de madrugada). Não choveu, mas ficou nublado e foi o dia mais frio da Semana de 22.

Portanto, não houve chuva intensa (a chuva dos dias 15 e 16 é considerada fraca). Não existiam imagens de satélite na época, então não é possível dizer qual nebulosidade estava associada a essa precipitação. Pode ser (mera especulação) a aproximação de uma frente fria ou a formação de ZCAS, porque os acumulados não são compatíveis com chuvas de verão (que acontecem no final da tarde e são as principais responsáveis por enchentes e outros transtornos na cidade de São Paulo).

Lembrando que a Semana de 22 aconteceu em um lugar fechado (Theatro Municipal), então frio, chuva ou calor extremo não atrapalhariam o evento. O que poderia ser prejudicado é o deslocamento pela cidade, mas não parece ter sido o caso. Sendo assim, as condições meteorológicas estavam bem favoráveis, mas talvez Villa-Lobos tenha se sentido desconfortável ao usar chinelos no dia 17. Explico: o músico se apresentou de chinelos no dia 17, porque tinha um calo no pé.

 

* Aqui fiz um trocadilho intencional, mas eu não falei de clima. Clima são as condições atmosféricas médias, ao longo de um período de tempo bem longo. Já tempo são as condições meteorológicas de um determinado momento. Para entender melhor a diferença entre tempo e clima, clique aqui.

Referências e Leituras Adicionais

Avenida Paulista e história da família Belford Mattos – SPCITY

É verdade que nevou em São Paulo em 1918 – BBC

O Observatório da Avenida – Netleland

Dados históricos e demográficos da década de 1920 – Prefeitura de São Paulo

Museu de Meteorologia do IAG-USP

Nevou em São Paulo: um toque de literatura (meteoropole.com.br)

Neve em São Paulo: quando um post que você escreveu auxilia em uma boa reportagem (meteoropole.com.br)

Já ocorreu neve em São Paulo – SP? (meteoropole.com.br)

Semana de Arte Moderna – Wikipedia