Recentemente, entramos em um novo patamar na discussão sobre agrotóxicos e insumos agrícolas no Brasil. Infelizmente, poucas pessoas estão acompanhando essa discussão. Mas aqui no Portal vamos fazer com que o assunto não passe batido. Tanto por sermos consumidores desses produtos quanto por sermos brasileiros (pelo menos grande parte de nós).

O presidente Lula instituiu a criação do Pronara, Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, que visa diminuir, ainda que discretamente no início, o uso de agroinsumos potencialmente danosos à saúde. Muitas pessoas não reconhecem os efeitos desses componentes no nosso corpo. 

No texto de hoje, iremos explorar um pouco mais o cenário dos agrotóxicos, sua problemática e o que significa a criação do Pronara. Espero que assim possamos explorar também a guerra sociosemântica que existe nas palavras “agrotóxico” e “defensivo agrícola”, entendendo o porquê dessas duas expressões para o mesmo produto.

Vamos começar pelo básico: agrotóxico é todo composto ou substância química destinado ao uso agrícola que promove controle, destruição ou prevenção, direta ou indiretamente, de agentes patogênicos que afetam plantas e animais úteis às pessoas [1]. Diz respeito, dessa forma, às formulações químicas que impactam na eficiência dos cultivos e criações. Entram aí herbicidas, inseticidas, raticidas, fungicidas, germicidas, antiparasitários e toda uma série de substâncias sintéticas.

O uso desses defensivos segue uma tendência que advém da Revolução Verde. Foi um movimento dos anos 1950 que indicou ao mundo o uso de novas máquinas e tecnologias nas plantações a fim de diminuir a insegurança alimentar. O Brasil começou a incentivar esses componentes em 1960, com o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA), que liberava créditos agrícolas com o uso dessas substâncias.

De lá para cá, seu uso aumentou vertiginosamente, com a liberação desses componentes em quantidades cada vez maiores. Isso colocou em xeque a capacidade de estudarmos o efeito dessas substâncias a tempo hábil de liberá-las ao consumo humano.

Inclusive, já somos o país que mais consome agrotóxicos no mundo, na frente de gigantes como EUA e China! Apesar de que, nesse quesito, não é bom estar no melhor local do ranking!

No governo Bolsonaro, por exemplo, foram liberadas 2182 substâncias agrícolas [2], sendo que quase metade são de insumos proibidos em outros países por efeitos adversos, como nos países da União Europeia [3]. As principais decisões passam por funcionários que, dependendo do governo, são mais ou menos liberais.

No governo Lula, em 2 anos, a quantidade liberada já ultrapassou a metade do total no governo Bolsonaro [4]. Onde quer que olhemos, observamos um cenário tóxico na nossa relação com essas substâncias. Enquanto elas permanecem cada vez mais importantes para manter a produção agrícola, os possíveis efeitos na saúde são ignorados.

 

Imagem um. Estudos independentes relacionam que certos agrotóxicos liberados apresentam potencial positivo de mutagenicidade [5]. Uma frágil legislação, processo irrisório de aprovação e indústrias lucrativas condicionam cada vez mais o uso sem estudos sistêmicos de agrotóxicos. Na figura, observamos um manipulador com EPIs adequados observando um frasco de, presumivelmente, herbicida.

Apesar disso, existe uma comunidade vibrante de pró-defensivos, que são radicais quanto ao uso dessas substâncias e são contra a regulamentação de qualquer uma delas. A narrativa desses grupos consiste em negar as maiores pesquisas sobre o tema, que relacionam o convívio com a mutagenicidade. Seguindo algumas ideias ao pé da letra, seria virtualmente possível beber um copo de agrotóxico sem passar mal algum.

Além da mutagenicidade, que aumenta a probabilidade de desenvolver câncer, essas substâncias estão relacionadas com a biomagnificação, que indica o acúmulo de metais pesados no corpo humano, causando diversos transtornos, inclusive de natureza mental, como ansiedade generalizada, depressão, inflamação, anseio de autoextermínio, alcoolismo e outras inconsistências de comportamento [6]. A realidade é ainda mais dura para trabalhadores rurais e seus familiares, que manipulam diariamente tais produtos em grande quantidade, ou convivem com quem faz isso.

Só isso já acaba com a narrativa pró-defensivos de que não existe morte relacionada com agrotóxicos. Apesar de nenhum legista indicar agrotóxicos no atestado de óbito, sabemos que efetivamente a manipulação inadequada pode ser fator de risco para diferentes tipos de mortes, ou provocar doenças e teratogenias (malformações fetais) que levam ao fim precoce da vida. Outro argumento diz respeito a termos uma legislação consistente sobre Boas Práticas de Manipulação de Defensivos Agrícolas (Lei 14.785/2023) e que todos os problemas são derivados do mau uso individual dessas substâncias.

Esse argumento não leva em consideração alguns problemas, vícios e riscos que ocorrem na cadeia do uso de agrotóxicos, tais como a deficiência em fiscalização, falta de logística reversa, rota de degradação na natureza, efeito de deriva (escape de agrotóxicos para áreas não agricultáveis) e o uso cada vez mais voraz dessas substâncias. 

Ou seja, embora existam mecanismos legais, faltam instrumentos eficazes — como fiscalização, penalidades e metas — para reduzir o uso. Pior ainda: a produtividade é frequentemente associada ao uso de defensivos, especialmente no modelo agroexportador que domina parte do agronegócio brasileiro.

Dessa forma, mais substâncias caem no solo, diminuindo a biodiversidade, propagando elementos tóxicos derivados de rotas de degradação e contaminando bacias hidrográficas. Pensando nessa problemática toda, o Governo, em parceria com a sociedade civil, vem desenvolvendo mais um mecanismo para garantir nossa saúde.

 

Imagem dois. Justiça condena fazendeiro pela morte de trabalhador rural atribuída a agrotóxicos [7]. Substâncias como glifosato, deltametrina e fipronil eram utilizadas e armazenadas de maneira insalubre e sem instrumentos adequados, acarretando na morte de jovem de 23 anos. Na figura, dispersor utilizado em plantação.

O Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) surgiu nesse contexto de fragilidades. Com uma lógica diferente daquela do PNDA, a ideia geral é diminuir nossa dependência desses insumos agrícolas sem reduzir a atual produtividade brasileira [7]. Apesar de muitos avanços com outras técnicas, como a biofertilização, o Brasil ainda é considerado campeão mundial no consumo de agrotóxicos. Fato que é de pouco orgulho à nossa saúde.

Para ser decretado, o projeto original precisou passar por rodadas e mais rodadas de discussões, o que consumiu 11 anos antes de efetivação. De lá para cá, o lobby e a postergação vieram de todos os lados, como os setores de defesa dos agrotóxicos da Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA), ligado ao Ministério da Agricultura. Só este órgão conseguiu adiar o Pronara por cinco vezes!

Até mesmo algumas definições foram responsáveis por longas discussões, como o uso da palavra “agrotóxico” ao invés de “defensivo agrícola”. Apesar de tecnicamente correta, a segunda palavra não abarca, em definição, nenhum dos males socioeconômicos e sanitários de venenos no meio rural. Indiscutivelmente, essa questão sociosemântica bloqueou o Pronara por algum tempo, mas a sociedade pró-saúde conseguiu se sobressair nesse ponto. Assim também foi com outros termos, como “ultraprocessado” em outros contextos de nutrição.

Apesar de muitos acharem o texto genérico, já é um marco simbólico muito importante na luta contra o avanço dos defensivos agrícolas. O decreto tira a exclusividade do Ministério da Agricultura (tradicionalmente pró-defensivos) na manutenção e liberação de substâncias, ampliando o poder decisório à Secretaria Geral da Presidência, que pode ser assessorada por outras pastas, como Meio Ambiente e Saúde.

Na esteira dessa inovação regulatória, surgiu também o Programa Nacional de Rastreabilidade de Produtos Agrotóxicos e Afins [9]. Com ele se espera melhor definição para rastrear esses produtos, através do Sistema Integrado de Rastreabilidade (SIR). Assim, indicando responsáveis, leniências ou acidentes durante o uso de agrotóxicos ao mesmo tempo que integra tecnologias digitais (QR Code) ou de radiofrequência (RFID) nas embalagens.

Nesse cenário de rastreabilidade e regulamentação, outros órgãos entram ajudando nas deficiências da cadeia, como a Polícia Civil, Vigilância Sanitária ou Institutos de Meio Ambiente. São mais entidades que se unem para garantir a adequação de nosso país ao tema, diminuindo nosso passado vergonhoso com relação ao uso indiscriminado de defensivos.

Assim, poderemos criar um país mais burocrático (no bom sentido da palavra) com relação ao uso, distribuição, formulação, identificação e descarte de agrotóxicos e suas embalagens. Quem sabe, com mais agentes no campo teórico e prático da matéria, nos sentiremos vivendo em um país um pouco menos “tóxico” e um pouco mais “pop”.

 

Referências
[1]: LOPES, Carla Vanessa Alves; ALBUQUERQUE, Guilherme Souza Cavalcanti de. Agrotóxicos e seus impactos na saúde humana e ambiental: uma revisão sistemática. Saúde em debate, v. 42, n. 117, p. 518-534, 2018.
[2]: SALATI, Paula. Bolsonaro liberou 2.182 agrotóxicos em 4 anos, recorde para um governo desde 2003. Portal G1, 04 fev. 2023. Disponível aqui.
[3]: ANDES, Redação. Quase metade dos agrotóxicos liberados por Bolsonaro é proibida na União Europeia. Portal Andes, 19 set. 2022. Disponível aqui.
[4]: PODER360. Governo Lula eleva liberação de agrotóxicos e bate recorde em 2024. Portal Poder 360, 28 jan. 2025. Disponível aqui.
[5]: NOVELLI, Isabelle. Uso de agrotóxicos no país e os impactos na sua saúde. Portal Todos Juntos Contra o Câncer, 16 mar. 2022. Disponível aqui.
[6]: DE ARAÚJO, José Newton Garcia; GREGGIO, Maria Regina; PINHEIRO, Tarcísio Márcio Magalhães. Agrotóxicos: a semente plantada no corpo e na mente dos trabalhadores rurais. Psicologia em Revista, v. 19, n. 3, p. 389-406, 2013.
[7]: CHAGAS, Rodrigo. Justiça condena fazendeiro pela morte de trabalhador exposto a 64 tipos diferentes de agrotóxicos. Portal Brasil de Fato, 14 jul. 2025. Disponível aqui.
[8]: Dolce, Julia. Pronara amplia margem de ação política em quadro trágico de uso de agrotóxicos no Brasil, avalia Paul Petersen. Portal O Joio e o Trigo, 04 jul. 2025. Disponível aqui.
[9]: BRASIL. Portaria MAPA nº 805. Institui o Programa de Rastreabilidade de Produtos Agrotóxicos e Afins. Diário Oficial da União, 09 jun. 2025.