Outro dia eu vim aqui falar que estaríamos negligenciando a importância social da fofoca e apontei todas as vantagens evolutivas que ela trouxe. Pois bem, nem tudo são flores e hoje quero conversar sobre as pessoas que não podem ser fofoqueiras de jeito nenhum: os profissionais de saúde!

Se você leu esse meu texto aqui, já viu toda uma análise sobre como mexericos ajudaram a construir culturas, laços sociais e senso de coletividade. Mas sabe outra coisa que também faz tudo isso e ainda auxilia no diagnóstico e tratamento de problemas de saúde? O sigilo.

É curioso perceber que guardar segredo tem tanta função quanto fofocar, não é? Mas pensa comigo: quando adoecemos ficamos mais vulneráveis, estamos em um momento de fragilidade e algumas vezes precisamos revelar detalhes muito íntimos para auxiliar o profissional de saúde a entender o que sentimos. E a gente só consegue ter coragem de se abrir e contar tudo justamente por saber que aquilo não será revelado.

Saber guardar segredos estabelece as bases para um vínculo de confiança entre profissional e paciente, aumentando a quantidade de detalhes sobre a queixa, bem como a adesão ao tratamento, principalmente quando falamos de doenças e agravos estigmatizados como no caso de infecções sexualmente transmissíveis (IST’s), hanseníase, tuberculose e esquizofrenia, por exemplo.

Mas, se o sigilo é tão importante na área da saúde, sendo previsto até nos códigos de ética das profissões ligadas à enfermagem, fisioterapia, medicina, odontologia e psicologia, por que eu escrevi esse texto? Porque vemos constantemente incidentes envolvendo a quebra inadequada do segredo profissional.

Nem precisamos ir muito longe para ter exemplos disso: morte cerebral de apresentador que vazou para a mídia antes do anúncio oficial, vazamento de prontuário da ex primeira-dama da república Marisa Letícia, exposição de detalhes de resultado de avaliações psicológicas de criminosos, vazamento de informações sobre criança vítima de estupro e muitos outros… Todas essas são informações que deveriam ter seu acesso restrito, mesmo no caso de pessoas privadas de liberdade.

O sigilo pode salvar vidas!

A relação entre profissional e paciente já é naturalmente desigual: de um lado temos um trabalhador da saúde especializado e de outro uma pessoa fragilizada em razão do adoecimento. Se fosse uma corrida, seria como se o paciente largasse quase 2 minutos depois de autorizada a largada, enfrentando obstáculos por todo o caminho. Essas barreiras podem ser a vergonha, medo, receio do julgamento, culpa e até mesmo a falta de informação. É aqui que o sigilo faz toda a diferença!

Certas áreas podem ter acesso a informações suas antes mesmo que você as conte, exemplo disso foi um tweet que viralizou um tempo atrás, dizendo que um odontólogo consegue identificar se o paciente praticou sexo oral em outra pessoa no dia anterior à consulta. Esse tipo de informação pode parecer constrangedora em primeiro momento, mas pode ajudar a identificar uma criança vítima de abuso sexual. O ponto é que TODO profissional de saúde tem acesso a dados privilegiados pela natureza do seu trabalho! Isso é fundamental para o diagnóstico e tratamento de muitas condições, mas como garantir que o paciente será resguardado?

Bom, obviamente em casos de violência não fica difícil imaginar o esforço para preservar a identidade do paciente, mas e nas situações incomuns? Segue exemplo: pessoa vai se masturbar usando objeto impróprio e este fica preso em suas partes íntimas. Como garantir que a história não vaze e essa pessoa se torne motivo de piada entre a equipe do serviço de saúde e demais pacientes? E nos casos estigmatizados, como em IST’s e transtornos mentais graves, como promover a adesão ao tratamento se a equipe não for acolhedora e sigilosa?

Aqui cabe a menção ao juramento de Hipócrates, aquele recitado pelos mediciners quando se formam e que agora vou parafrasear:

as tretas, informações e fofocas que eu souber pelo paciente, pela rádio corredor ou por terceiros, que não tenha necessidade de contar, eu ajo como se fosse um baú e guardo tudinho. Em resumo, relevar apenas o necessário ao tratamento e guardar o resto.

Mas não é só jurar juradinho porque estamos no mundo real. Prova disso é nossa Constituição Federal, que em seu inciso X do artigo 5º garante que a intimidade da pessoa humana não pode ser violada. Assim, a quebra indevida do sigilo está prevista em lei e é passível de punição pelo artigo 154 do Código Penal, com detenção de 3 meses a 1 ano ou multa à pessoa que revelar segredo profissional – sem justa causa – que possa gerar dano a alguém.

Ok, estamos falando de hospitais, postos de saúde e outros serviços onde geralmente o prontuário é compartilhado entre a equipe multidisciplinar, e aí? Cada profissão obedece a um código de ética diferente, mas no fim das contas a orientação é sempre a mesma: deve constar no documento apenas o essencial ao tratamento do paciente.

Ah e eu já ia esquecendo de comentar que o sigilo, incluindo a preservação da identidade do paciente, também deve ser observado quando se vai discutir casos em eventos, em perícias, ao usar as informações de forma didática em aulas, em entrevistas e também ao divulgar boletins médicos de figuras públicas. E vale o aviso: não existe foto autorizada pelo paciente[1], muito menos para ilustrar antes e depois. É falta ética!

E o psicólogo nessa história?

Quando falamos de guardar segredos profissionais é quase impossível não lembrar do psicólogo! Nas sessões, os pacientes/clientes nos contam coisas que nunca tiveram coragem de falar a mais ninguém. A confidencialidade é mais do que uma ferramenta terapêutica, é uma obrigação, uma postura ética de respeito pela pessoa que ali expõe suas vulnerabilidades! Mas nada é tão simples quanto parece, então vamos lá!

Se você já fez terapia ou assistiu alguma cena em filmes, deve ter percebido que o profissional geralmente anota algumas coisas ditas pelo paciente. Aquilo ali não é meramente um lembrete do que comentar, mas sim uma obrigatoriedade perante os conselhos de psicologia, que nos recomendam manter registros em prontuário das sessões – assim como em outras profissões de saúde.

O prontuário não é uma transcrição da sessão, mas contém informações detalhadas sobre o caso atendido, dados e conduta do paciente. Por isso, existem algumas especificações de como esse material deve ser armazenado: em armário com chave e acesso privativo do psicólogo, caso seja prontuário físico; se for digital, protegido com senha e em computador de uso exclusivo do profissional.

Vale lembrar que devemos manter tudo isso guardadinho por, no mínimo, 5 anos. Ainda tem dois casos especiais: se o serviço for deixar de existir, aí o profissional entrega os documentos ao Conselho Regional de Psicologia que dará a destinação; e se o psicólogo deixar de atuar no local, devendo então repassar os prontuários àquele que o for substituir.

Além do cuidado com o material, outro ponto tem despertado preocupação: a mídia, incluindo as redes sociais. É comum que sejamos chamados a fazer análises após situações que chocam a sociedade, como assassinatos brutais, estupros, atentados com atiradores e outros. E como se não bastasse ter que dar uma opinião profissional sem o conhecimento adequado e profundo do contexto, muitas vezes ainda somos incentivados a traçar um perfil da pessoa, suas motivações ou debater análises feitas pelos juristas que trabalham nesses casos…

Com todo o cuidado, tentamos não estigmatizar, fazendo apontamentos gerais e ufa… Escapamos? Nada disso! Ainda temos que tomar cuidado com exposição nas redes sociais, foto do paciente ou de material produzido em sessão, vídeos, discussões de caso que são vistas por não profissionais ou com detalhes que permitem a identificação do paciente… Tudo isso é quebra indevida de sigilo!

E vou dizer a vocês que já vacilei nisso quando estudante e discuti caso publicamente sem fazer ideia que aquilo não seria o mais adequado, porque a interpretação de sigilo as vezes é nebulosa. Te mostro agora no Código de ética, se liga nesse trechinho retirado de lá:

Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:

q) Realizar diagnósticos, divulgar procedimentos ou apresentar resultados de serviços psicológicos em meios de comunicação, de forma a expor pessoas, grupos ou organizações.

Art. 6º – O psicólogo, no relacionamento com profissionais não psicólogos:

b) Compartilhará somente informações relevantes para qualificar o serviço prestado, resguardando o caráter confidencial das comunicações, assinalando a responsabilidade, de quem as receber, de preservar o sigilo.

Art. 9º – É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional.

A gente aprende a importância e a obrigatoriedade de manter o sigilo. Mas nem sempre nos ensinam como fazê-lo adequadamente, o que gera um problema ainda maior: quando isso PRECISA ser quebrado.

O sigilo pode ser rompido (em alguns casos)

Existem situações em que manter o segredo profissional traz mais prejuízo do que benefício ao paciente e há necessidade em se romper esse pacto ético. Nesses casos, segue-se o princípio do menor dano, revelando apenas o que for estritamente necessário à condução do caso e usando isso depois de esgotar todos os outros recursos. Mas, a depender da área, o protocolo seguido pode ser um pouquinho diferente.

– Risco de vida para o paciente ou terceiros: na Psicologia, entende-se que uma das condições que impõe a ruptura do sigilo é quando a manutenção do segredo pode ameaçar a vida do paciente e/ou de terceiros, como em casos de planejamento de suicídio ou assassinato;

– Violência contra a criança ou adolescente: o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) obriga a quebra do sigilo em casos de suspeita ou confirmação de violência contra a criança e/ou adolescente, buscando preservar em primeiro lugar a integridade física e psicológica da possível vítima. Conduta semelhante é tomada em casos de violência doméstica e contra o idoso, regidos por legislação específica;

Doenças e agravos de notificação compulsória: o nascimento do SUS trouxe consigo a Vigilância Epidemiológica e uma lista de doenças com potencial epidêmico que devem ser notificadas sem precisar da autorização do paciente, como uma forma de conter ou controlar possíveis surtos daquela patologia;

– Demandas judiciais e perícias: profissionais da saúde podem ser solicitados a depor ou atuar como peritos, cabendo aqui o princípio do menor dano e de revelar o estritamente necessário. Nesse caso, há também a possibilidade de o profissional recusar-se a romper o sigilo, desde que esteja devidamente resguardado pelo código de ética profissional.

Todas as situações descritas podem ter algum detalhe que as tornem diferentes. Na dúvida, vale consultar se a conduta está prevista no código de ética e, caso contrário, entrar em contato com o Conselho Regional da profissão para obter orientações sobre como proceder adequadamente.

Falando em conselhos profissionais, é bom lembrar que a maior parte deles é de composição voluntária e realiza fiscalizações de acordo com as denúncias recebidas. Para fins práticos: se não há denúncia, é entendido que não há má conduta e a galera vai fazer outras atividades. Coibir práticas irregulares e fiscalizar condutas para manter o padrão de qualidade profissional é também um direito da população, fique atento!

Trazendo o funil para a saúde, ao mesmo tempo que somos profissionais, seremos pacientes de alguém em algum momento. Cabe o exercício de pensar nas nossas fragilidades quando nessa posição, em quais expectativas nutrimos ao buscar o cuidado e resolução das nossas demandas, em como ficamos vulneráveis a qualquer solicitação – adequada ou não – feita durante ou após a consulta… Estaríamos em condições de permitir fotos? Em autorizar o uso de minhas informações para aulas ou pesquisas? Será mesmo que em meio à fragilidade surgida pelo adoecimento, estaríamos aptos a consentir de forma esclarecida e assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)?

Se nós enquanto profissionais que lidamos com a saúde e vivenciamos esse cotidiano já temos dificuldade em pensar e responder essas questões, imagina os pacientes! Será que é justo pedir deles toda essa compreensão e amor pela ciência em um momento tão delicado? Talvez já tenha passado da hora de rever alguns procedimentos, hein?

São muitas questões e obviamente suas respostas vão depender de uma análise aprofundada do contexto, que em muito ultrapassa a pretensão desse texto. Por fim, não estou aqui para dizer como ninguém deve se portar fora do ambiente de trabalho, até porque estamos falando de ética, de exercício adequado DA PROFISSÃO, que há muito vem sendo questionado… Uma saúde de qualidade é feita com uma atuação técnica qualificada que tenha como norteador a ética e o bem estar do paciente!

 

[1] Salvo no caso da Odontologia, onde o paciente pode consentir o uso das suas imagens apenas para fins didáticos e de pesquisa.

 

REFERÊNCIAS:

 

Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem. Conselho Federal de Enfermagem, Brasília, novembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2021.

Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Brasília, agosto de 2013. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2021.

Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina, Brasília, setembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2021.

Código de Ética Odontológica. Conselho Federal de Odontologia, Brasília, maio de 2012. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2021.

Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia, Brasília, agosto de 2005. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2021.

DIAS, O. V. et al. Segredo profissional e sua importância na prática de enfermeiros e odontólogos. Rev. bioét, [s. l.], v. 21, n. 3, p. 448-454, 2013. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2021.

PRZENYCZKA, R. A.; LACERDA, M. R.; CHAMMA, R. de. C. Enfermagem em Foco, [s. l.], v. 2, n. 2, p. 145-148, 2011. Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2021.