Provavelmente você já ouviu falar sobre resiliência em algum lugar. Mas até que ponto a gente está sendo responsável ao usar esse termo e como evitar que ele se torne sinônimo de aguentar situações tóxicas em nome da persistência? É sobre isso que vamos conversar hoje.

Antes de qualquer coisa, vamos entender um pouquinho do que é resiliência em Psicologia. O conceito está relacionado a habilidade de enfrentamento das adversidades, ou seja, é resiliente a pessoa que passa por dificuldades, mas consegue superar ou se recuperar dos problemas por elas causados.

Pensando assim, é óbvio supor que existem pessoas mais resilientes que outras e isso é fato! Porém, o que eu considero o mais legal desse rolê é que esse comportamento resiliente pode ser ensinado/aprendido e a gente passa a vida todinha desenvolvendo essa habilidade!

O nascimento da resiliência

Os primeiros estudos sobre o tema surgiram ainda nos anos de 1970, geralmente envolvendo crianças que passaram por situações traumáticas como guerras, catástrofes naturais, violências – de forma aguda ou crônica – e não apresentavam sinais de adoecimento, como seria esperado mediante tal exposição.

A primeira menção do conceito vem um tempinho depois, em 1984, nos EUA e no ano seguinte, começa a ser definido de forma muito parecida ao que entendemos hoje, mas com foco de que o comportamento resiliente aumentaria a competência para lidar com outras situações desfavoráveis no futuro.

Nas pesquisas feitas no Brasil, no entanto, muito se fala sobre a resiliência ter sido um conceito que a Psicologia pegou emprestado da Física, relacionado a capacidade de um material voltar ao seu estado inicial após deformar-se. Assim, a reinterpretação psicológica da coisa seria a resistência e recuperação de situações difíceis sem entrar em colapso.

Porém, uma olhada mais atenta ao dicionário nos dá uma dica de que talvez tudo não tenha passado de um erro de tradução e o conceito não foi emprestado da Física coisa nenhuma. Pontos que corroboram esse babado:

  • Essa origem só está presente nas obras brasileiras e de alguns autores latinos;
  • A galera que iniciou os estudos no tema nunca deu um piu sobre essa origem;
  • A palavra resiliência já era de uso cotidiano dos gringos, diferentemente daqui, o que provavelmente gerou uma necessidade de contextualizar a palavra para que fosse melhor compreendida.

Isso em tese não seria um problema, certo? Errado! Em alguns outros textos aqui no portal, já falei sobre como imprecisões na definição de um constructo teórico acabam complicando todo um campo de pesquisa justamente pela ausência de padrão. É a exata mesma coisa que acontece aqui e o resultado é a complicação na hora de medir/quantificar a resiliência e a influência de outros fatores contextuais e psicológicos nela.

E a história se complica ainda mais quando pensamos que o desenvolvimento da resiliência envolve conceitos como fatores de risco/proteção, estresse, adaptação, ajustamento, autoestima e vários outros que também são bem complicadinhos de aferir. Ou seja: a gente sabe que tudo isso existe, mas tem uma dificuldade em entender como isso se relaciona de maneira direta.

E se você fosse invulnerável?  

Calma, não é que você vai virar um super-herói, mas as primeiras formulações teóricas identificavam a resiliência como o antônimo da vulnerabilidade, esta última entendida como o desenvolvimento de sintomas negativos por consequências de situações adversas.

De acordo com essa teoria, existiriam 4 categorias de pessoas: as hipervulneráveis, incapazes de lidar com as tretas da vida comum sem colapsar; as pseudoinvulneráveis, que cresceram em ambientes superprotegidos e não seriam habilidosas para enfrentar micro estresses; as invulneráveis, que após situações estressantes seriam capazes de se recuperar sem grandes dificuldades; e as não vulneráveis, que teriam quase um superpoder de não se afetar com os problemas da vida desde cedo.

Ainda bem que essa formulação foi repensada, porque eu já estava triste de não ser invulnerável que nem os personagens de gibi… Mas ainda não se sabe como o conceito de vulnerabilidade se relaciona com a resiliência e esse é só o começo de uma grande salada de conceituações.

Um desses problemas de entendimento conceitual [comuns na Psicologia, kkkkcrying] envolve a origem da resiliência. Ela seria a capacidade de se manter saudável em meio a situações desfavoráveis ou o crescimento pessoal por meio das adversidades? A depender da maneira como a gente interpreta seu surgimento, o modo de promover a resiliência pode mudar completamente!

Se a gente focar na origem “apesar de”, vamos entender o fenômeno como fruto do esforço e persistência individual para manter o equilíbrio em meio ao caos. Essas pessoas teriam então a famosa habilidade de enxergar nos problemas uma oportunidade de aprendizado.

Por outro lado, o pessoal do “através de” teria uma dupla habilidade, quase tautológica: ao mesmo tempo em que possui características de persistência que o ajudam a ser resiliente, é capaz de desenvolver ainda mais esse superpoder através das tretas da vida. Em outras palavras, essa aqui é a turminha das histórias de superação, mas já já falamos sobre isso.

Outra questão importante é sobre o famoso conflito que permeia a Psicologia: inato X adquirido, que já estamos carecas de saber que não é 8 e nem 80, mas sim um tanto de cada que vai variar conforme o que estamos avaliando.

Da parte mais biológica da coisa, não dá para negar que fatores de resposta fisiológica ao estresse, envolvendo a produção e liberação de neurotransmissores, bem como mutações em genes responsáveis por regular algumas áreas cerebrais podem impactar diretamente na resposta do indivíduo perante situações desfavoráveis.

Como se não bastasse isso, mutações genéticas também podem aumentar a sensibilidade individual ao estresse – aumentando a vulnerabilidade em situações causadoras de ansiedade – além de interferir nos níveis de adrenalina, noradrenalina e serotonina, gerando um maior risco para o desenvolvimento de alguns transtornos mentais.

Mas nem tudo é neurofisiologia, e experiências de vida, principalmente na infância, também podem contribuir para o aumento ou diminuição dos níveis de resiliência. Para isso, existem 2 hipóteses que tentam explicar o porquê de isso acontecer:

  • Hipótese de match/mismatch: pequenos níveis de estresse gerariam resposta de aprendizado na criança, porém este estaria restrito apenas ao contexto adverso;
  • Hipótese do estresse cumulativo: a exposição prolongada a altos níveis de estresse geraria resiliência e aumentaria o risco de desenvolvimento de transtornos mentais mesmo na vida adulta.

Dessa forma, entende-se que a resiliência se desenvolve através de um continuum que vai mudando conforme a fase da vida e o contexto do problema enfrentado. Dessa forma, alguém pode ser muito resiliente no trabalho e pouco em relacionamentos amorosos, por exemplo.

Além da história de vida, o ambiente familiar e as habilidades individuais influenciam de forma direta nos níveis de resiliência de alguém. Famílias que oferecem suporte parental, acolhimento e validação de sentimentos tornam o ambiente mais propício ao desenvolvimento de pessoas resilientes.

Já quando falamos de habilidades individuais, autodisciplina, autoconfiança, uma visão positiva de si, controle emocional e bom humor são ótimos aliados. Esse último, inclusive alivia a tensão e aumenta a probabilidade de obter ajuda dos outros no enfrentamento dos problemas.

O problema dos discursos de superação

Se você já assistiu algum programa esportivo, com certeza já se deparou com histórias dramáticas de atletas que, mesmo sem condições mínimas, contrariaram todas as expectativas e atingiram grandes feitos, sendo lançados ao status de heróis.

E a gente tem uma empatia danada pelos mocinhos, né? Achamos a coisa mais linda toda aquela perseverança e força mesmo diante dos mais doloridos sofrimentos. Muitos até usam os personagens como inspiração de resiliência [só olhar qualquer perfil motivacional do Instagram que você encontra]. Já os vilões, coitados, são os piores exemplos de fuga do sofrimento e busca pelo caminho mais rápido e fácil.

Mas o que esses storytelling escondem é uma associação entre persistência e sucesso, como se a desistência fosse sinônimo de fracasso. Esse tipo de pensamento muitas vezes se torna justificativa para tolerar situações abusivas, quando na verdade a resiliência envolve saber se retirar um ambiente tóxico caso este não mude.

E os danos não param por aí. Quando exaltamos discursos de superação, muitas vezes podemos cair no erro de individualizar problemas coletivos, como no exemplo dos atletas, ou dos estudantes que andam quilômetros para ir à escola, ou dos trabalhadores que dormem 3 horas por noite para dar conta de trabalhar, cuidar da família e estudar.

Todas essas questões são coletivas, relacionadas com má gestão de políticas públicas e dificuldade em acessá-las. Resumir essas problemáticas a nível individual, como se fossem apenas resultado da vontade ou esforço pessoal é tornar invisível a desigualdade e continuar reproduzindo uma meritocracia totalmente descolada da realidade [e bem injusta, diga-se de passagem].

E não é só isso, pesquisas já apontaram que até mesmo habilidades positivas e adaptativas ligadas à resiliência podem se tornar perigosas e nocivas quando levadas às últimas consequências. Coisa bastante comum no ambiente corporativo.

Com um mercado que vive entrando em crises e mudando, o conceito de resiliência caiu quase como uma luva nas empresas. Toda vaga de emprego já traz o conceito como um requisito para a entrada de qualquer funcionário, que deverá ser apaixonado por desafios e persistente para atingir as metas propostas.

O problema é que isso esconde o entendimento de que é resiliente aquele que aguenta o excesso de trabalho [e de pressão], com uma performance impecável. Do contrário, nem ali deveria estar.

E isso leva a última consequência do nosso combo: o burnout, não sendo raro encontrar casos de pessoas que só faltaram dar o sangue pela empresa, seguindo em metas impossíveis, indo além de suas forças, e tiveram como recompensa um adoecimento mental grave, inúmeros custos com o tratamento e a perda do emprego.

Cultivando uma resiliência saudável

Bom, depois de tudo isso, acho que é interessante apontar uma luz no fim do túnel e mostrar algumas maneiras de fortalecer sua resiliência sem se perder no processo.

  1. Enfrentamento – É impossível se tornar mais resiliente sem enfrentar situações desconfortáveis. Mas calma lá, para o processo ser eficiente ele deve acontecer aos poucos, de forma progressiva, indo de situações mais simples e com maior grau de controle, para situações complexas;
  2. Psicoterapia – Vou logo adiantando que ela não resolve tudo, mas ajuda bastante a entender como a sua resiliência foi construída e quais métodos seriam mais eficientes para desenvolvê-la;
  3. Rede de apoio – Se conectar profundamente às pessoas e buscar ajuda quando necessário é uma forma de ser mais flexível (e resiliente) ao enfrentar os problemas;
  4. Autocuidado – Estar em dia com a saúde física e mental, cultivando bons hábitos de vida também é um grande aliado de uma resiliência saudável.

No final das contas, não tem uma receita de bolo. A gente oferece alguns caminhos possíveis, mas tem coisa que não controlamos e afetam nossa vida de maneira gigantesca! Como se manter resiliente em cenários caóticos, de violência, desastres ambientais, sanitários e em tantos outros? Bom, se um dia você descobrir, me conta porque também queria muito saber…

 

 

REFERÊNCIAS:

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