No início do Século XX, já pairava no ar algo que poderia ser entendido como “música brasileira”. Após toda a miscigenação cultural que havia ocorrido no Rio de Janeiro ao longo do Século XIX, a então capital do Brasil contava com um cenário musical extremamente fértil, repleto de novas ideias e de compositores dispostos a desenvolvê-las. Entre eles, se destacavam principalmente Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. A nova música que surgia, no entanto, ainda era, em parte, mais vista como um grande amálgama de gêneros europeus e africanos do que como um gênero brasileiro em si. Carecia, portanto, de consolidação. E ela veio, quando o Brasil deu à luz Pixinguinha.

O mundo em que Pixinguinha nasceu e cresceu, na virada entre os séculos XIX e XX, era certamente terreno propício à formação de alguém que se tornaria capaz de sintetizar em sua obra o espírito da música brasileira. Oriundo de uma família de músicos, ele teve acesso a instrução musical formal desde muito cedo, começando a atuar como flautista profissional aos 14 anos de idade, e como compositor não muito tempo depois. Tudo isso em uma época e local em que a música popular ao vivo estava presente em quase todas as atividades sociais, para não mencionar a recém-surgida indústria fonográfica, que já começava a dar sinais da enorme influência comercial que adquiriria nas próximas décadas. Era um verdadeiro caldeirão, borbulhando com promessas de inovação musical.

São João Debaixo D’água: uma das primeiras gravações realizadas por Pixinguinha, em 1911, aos 14 anos de idade

Em 1919, aos 22 anos de idade, Pixinguinha já era parte do que viria a ser o seu grupo de maior renome, Os Oito Batutas. E pode-se argumentar que, ao menos em parte, a associação do então flautista e compositor com esse conjunto contribuiu para tornar sua gama de influências musicais ainda mais diversa e cosmopolita do que já era. Isso porque, em apenas 4 anos, Os Oito Batutas foram capazes de estabelecer uma trajetória sólida não só no Rio de Janeiro, mas também em outras regiões do Brasil e do mundo: em 1923, eles já haviam passado por temporadas em Paris e em Buenos Aires.

E lembremo-nos que, nessa época, a música popular estadunidense, sob as formas de jazz e ragtime, também começava a se estabelecer e criar raízes mundo afora. Expostos a tudo isso, pouco a pouco Os Oito Batutas passaram a incorporar ao seu repertório de choros e tangos brasileiros as influências oriundas de seus intercâmbios culturais. Isso é evidenciado, entre outras coisas, pelo fato de que nesse período, Pixinguinha adota o saxofone como um de seus instrumentos principais, passando a revezá-lo com a flauta que já tocava. A música de Pixinguinha sempre teve uma vocação metropolitana, e Os Oito Batutas ajudaram a catalisa-la.

 

Foto de 1923 d’Os Oito Batutas dialoga com a estética do Jazz da época. Pixinguinha (centro) já tocava o saxofone.

E trago tudo isso à tona não para dizer que a música dos Estados Unidos seja um fator fundamental e indispensável para o desenvolvimento da música brasileira. Há uma inegável relação de parentesco entre ambas, mas nunca uma relação de parentalidade. O que é evidenciado pela adoção de elementos estéticos do jazz por parte de Pixinguinha e seu grupo tem mais a ver com forma do que com conteúdo. Sempre que escrevo sobre música brasileira, enfatizo sua predisposição fundamental à miscigenação cultural e à transposição de barreiras e de purismos. Pois bem, talvez o momento em que Pixinguinha admitiu incorporar influências estrangeiras ao seu choro, que por si só já era uma mescla de elementos europeus e africanos, tenha sido o momento em que esse traço essencial da música brasileira foi sacramentado.

Não por acaso, algumas das composições mais emblemáticas de Pixinguinha, hoje tidas como verdadeiros pilares da MPB, enfrentaram críticas por parte dos puristas da época justamente por se valerem de alguns componentes musicais então estranhos à música brasileira. É o caso, por exemplo, da famosíssima Carinhoso, um indiscutível choro, composto justamente após a estada d’Os Oito Batutas na França, e cuja introdução foi acusada de dialogar com o foxtrote americano.

 

 

E quando se alia essa espécie de ousadia criativa a um extremo virtuosismo como instrumentista e uma altíssima produtividade como compositor, o que se tem é um artista que foi capaz de criar – ou de se tornar – um verdadeiro marco definidor para a MPB. Talvez até involuntariamente, Pixinguinha condensou e codificou tudo o que havia sido feito antes dele, criando um legado a partir do qual se tornaria muito mais fácil identificar aquilo que era genuíno em termos de música brasileira.

Há uma citação famosa que diz: se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco; mas, se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido: escreva depressa, Pixinguinha. E por mais vaga que possa parecer, fica fácil entende-la quando compreendemos a história. A obra de Pixinguinha por definição acaba sendo um ponto nodal em nossa história musical: ao mesmo tempo em que honra e eleva o legado de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e seus contemporâneos, lança bases conceituais sólidas, sobre as quais eventualmente viriam a se desenvolver a bossa nova, a tropicália, e a MPB propriamente dita.

Se hoje, portanto, temos uma música reconhecida mundialmente como inconfundível, devemos agradecer a Pixinguinha. Não por tê-la criado sozinho, mas por tê-la dado a chance de encontrar sua identidade definitiva.