Em um texto prévio aqui no portal, falei um pouco sobre o papel fundamental que os anos 1950 e 60 tiveram para a história da MPB. Em uma narrativa repleta de personagens, gravações e acontecimentos históricos, acabei destrinchando um pouco a enorme vocação para mistura, miscigenação e transgressão que a música brasileira por natureza carrega. E, no entanto, uma questão permanece: de onde teria surgido essa vocação? Em que ponto da história teria emergido uma combinação de sons mestiça o suficiente para se identificar como inegavelmente brasileira?

Essa é mais uma daquelas questões para as quais a resposta mais honesta talvez seja “não uma há resposta”. Afinal, estamos falando de um conjunto virtualmente ilimitado de elementos oriundos das mais diversas culturas, que por séculos pairou como uma nuvem sobre o que viríamos a chamar de Brasil, até eventualmente se condensar e se precipitar na forma de algo a que pudéssemos atribuir nome e forma. Podemos dizer quando a chuva começou, mas dificilmente saberemos contar a história de cada gota.

E dito isso, devemos voltar nossas atenções para o início do Século XIX.

É verdade que nessa época já havia, no território do Brasil-colônia, uma profusão de gêneros e manifestações que, tendo sido originalmente importados de outras partes do mundo, começavam a adquirir aqui um caráter próprio e cada vez mais distante de suas bases. O exemplo mais pujante disso é o lundu, trazido ao Brasil por escravos de origem africana, e que se tornaria um dos ingredientes fundamentais da música própria de sua nova casa.

 

 

No entanto, um evento bastante emblemático para a história política do Brasil se tornou também crucial para sua história musical. Em 1808, chegava ao Rio de Janeiro a família real portuguesa, trazendo consigo uma corte, e todos os costumes aristocráticos que lhe diziam respeito. Na extensa bagagem, vinham as danças de salão utilizadas pelos nobres em seus eventos sociais, e todo um repertório de composições musicais feitas sob medida para viabilizá-las.

Valsas, polcas, mazurcas, scottishes… Eram diversos gêneros dançantes, oriundos de diferentes partes da Europa. Cada um com suas particularidades rítmicas e interpretativas, sim. Mas todos compartilhando o rigor harmônico e melódico da tradição de escrita musical europeia. E quando esse leque de obras, tão formatadas para o divertimento da nobreza, finalmente tocou o solo brasileiro, devidamente africanizado pelo lundu e seus congêneres, algo diferente começou a ocorrer.

 

 

A princípio, o que se experienciou no Rio de Janeiro do início do Século XIX foi uma espécie de vazamento. Músicos populares de origem mestiça passaram a ter acesso ao repertório trazido pela corte portuguesa.  E não se deixe enganar: esses músicos tinham instrução e conhecimento de seu ofício. Ao menos o suficiente para saber respeitar a formalidade da escrita dessas obras. O que talvez eles não tivessem era predisposição para se render à sua rigidez rítmica. Pouco a pouco, passaram a interpretar essas melodias com a maleabilidade interpretativa oriunda do lundu.

De alguma forma as polcas ainda eram polcas, e as valsas ainda eram valsas, mas já não eram mais aquelas mesmas obras que tinham desembarcado com os portugueses. E a essas obras, escritas de forma europeia, mas interpretadas de forma africanizada, eventualmente se deu o nome de choro. E o choro já não era nem da África, nem da Europa, mas genuinamente de seu ponto de intersecção.

Mais próximo ao final do Século XIX, o Brasil viu o surgimento daqueles que são creditados como seus compositores fundamentais e originários. Ambos nascidos no Rio de Janeiro, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth já traziam em suas obras esse embrião de mestiçagem musical, e se tornaram responsáveis por algumas das primeiras composições populares tidas hoje como genuinamente brasileiras.

 

 

Mas, se por um lado, Chiquinha, Ernesto e seus contemporâneos já faziam na prática algo que só ocorria no Brasil, por outro, aquilo que produziam ainda era uma manifestação de certa forma difusa e carente de um rito de passagem. O termo choro já existia, é verdade, mas a ele ainda era atribuída a definição de “música europeia tocada à brasileira”. E muito se fez nessa época, no sentido de se tentar circunscrever, catalogar e definir as novidades musicais que vinham surgindo a partir daquele ponto inicial de miscigenação. Chegou-se inclusive a utilizar o termo tango brasileiro para algumas obras, posteriormente abandonado.

Tal qual o jazz antes de Louis Armstrong, a música brasileira já pairava no ar, com seus ingredientes fundamentais devidamente misturados. Mas ainda precisava de um catalisador, uma figura que a compreendesse como um todo e a codificasse como algo encerrado em si. E esse catalisador eventualmente surgiu. Mas talvez mereça atenção exclusiva, em um texto futuro.