Recentemente fomos bombardeados com notícias sobre a liberação do governo japonês para estudos com embriões de animais contendo células tronco humanas, que são comumente nomeados de híbridos humanos-animais ou quimeras [1]–[3]. Mas antes que seres mitológicos venham a sua mente, vou te explicar aqui o motivo deste tipo de estudo, como ele é realizado, as políticas atuais, implicações éticas e o que podemos esperar nos próximos anos.

O que são os híbridos humanos-animais?

Segundo a mitologia grega, quimeras são seres com a aparência semelhante a mais de um animal e com a capacidade de expelir fogo pelas narinas. Claro que os híbridos feitos em laboratório estão longe dessa aparência, sendo bem menos glamourosos ou assustadores. O que temos na verdade é um animal modificado geneticamente e que carrega em si células de um outro animal.

Figura 1: Quimeras. (A) A imagem representa a figura mitológica associada a quimera. (B) foto de um camundongo quimera produzido em laboratório pela equipe do pesquisador Juan Carlos Belmonte [4], a foto mais a esquerda é referente ao feto de camundongo com as células de ratos coradas em vermelho, enquanto as duas a direita são 12 meses e 24 meses após o nascimento.

A história dos híbridos e por que este tipo de estudo é realizado 

Antes de entrarmos na história acerca dos animais híbridos é importante entendermos que o principal objetivo por trás destes estudos são os xenotransplantes, isto é, transplantes de órgãos realizados entre espécies diferentes. Há relatos deste tipo de transplante desde a década de 1960, mas especificamente a retirada de rins de babuínos e chimpanzés para transplante em humanos. No entanto, pouco sucesso foi obtido, uma vez que os pacientes foram a óbito poucos meses após o transplante. Isso ocorre porque o sistema imunológico do receptor, neste caso o humano, é capaz de reconhecer o corpo estranho e o ataca levando a rejeição do órgão [5].  

No entanto, pesquisas relacionadas com xenotransplantes continuaram, permitindo a descoberta de detalhes relacionados com a rejeição desses órgãos. Esta persistência permitiu que em 1993 o cirurgião David Cooper junto com seus colaboradores conduzissem um estudo que pode ser um dos principais motivos para o investimento de indústrias farmacêuticas nesta área. Ao estudar transplantes entre porcos e humanos, a equipe descobriu que a maior parte da reação imunológica humana que atacava o órgão transplantado era dirigida uma única pequena parte da célula, uma molécula de açúcar nomeada de α-1,3-galactose. O objetivo agora seria desativar no porco o gene relacionado a  produção deste tipo de açúcar.

Figura 2: Pulmão de um suíno geneticamente modificado sendo preparado por cirurgiões para transplante. Fonte: Revista Nature.

Antes de continuarmos, você pode estar se perguntando porque um porco? E de acordo com Alan Moy, pesquisador e presidente da Cellular Engineering Technologies, os porcos são utilizados para produção de órgãos quiméricos porque o tamanho e o metabolismo de seus órgãos são os mais compatíveis com humanos [6]

A descoberta de David Cooper transformou o que seria um grande problema em algo facilmente tratável, saltando aos olhos de indústrias farmacêuticas como a Genzyme, Novartis e PLL Therapeutics (empresa que colaborou com a clonagem da ovelha Dolly), que começaram a investir em pesquisas para xenotransplantes. No entanto, antes que o “milagre” pudesse sair do laboratório, o sistema imunológico se mostrou muito mais complexo do que os pesquisadores esperavam, e ,mesmo com medicações para suprimir o sistema imunológico, babuínos que receberam órgãos de porcos, apresentaram rejeição e nunca sobreviveram. Com mais estudos foi possível identificar  outras regiões da célula que poderiam estar relacionadas com o processo rejeição, no entanto uma outra preocupação foi criada. O genoma dos porcos possue material genético de vírus endógenos, isso é, DNA viral introduzido no material genético do suíno. Essa informação deu início à discussão se, ao inserir o órgão em um humano, esse vírus poderia voltar a ser ativo.    

Mesmo com os resultados negativos, pesquisas com xenotransplantes não findaram, pois o insucesso da área era mais observado para órgão sólidos. As mesmas dificuldades não foram encontradas por equipes que trabalharam com transplante de tecidos, mostrando assim que a possibilidade realmente existia. A exemplo, os pesquisadores chineses que apresentaram sucesso no transplante de córneas suínas em 41 olhos humanos [7].

A problemática com órgãos sólidos permanece, principalmente porque órgãos diferentes vão apresentar características diferentes que podem influenciar na rejeição. Obviamente que os avanços nas tecnologias biomédicas tem ajudado a área. A utilização de técnicas como o CRISPR vem abrindo diversas novas possibilidades, no entanto, mesmo que medidas sejam tomadas quanto a rejeição dos órgãos, ainda permanece a dúvida se estes órgãos poderão manter suas funções em um novo hospedeiro, se responderiam corretamente aos hormônios e se produziriam substâncias com a mesma função no novo corpo. 

Até este momento conversamos sobre os xenotransplantes, mas não falamos dos animais híbridos. Lembrando que híbridos humanos são animais que possuem células humanas e, após essa longa história sobre xenotransplantes, você consegue imaginar onde entram os híbridos nisto?

Se não conseguiu chegar à conclusão, aqui vai a resposta. Os pesquisadores começaram a estudar organismos híbridos na tentativa de resolver parte destes problemas citados anteriormente, principalmente quanto a função correta do órgão e sua relação com as substâncias do corpo, pois, por terem células humanas para produzir um determinado órgão, este órgão será produzido com as células humanas e não com as células do animal híbrido. No caso de híbridos humanos-porcos, os porcos produziram um determinado órgão com células humanas, reduzindo assim parte dos problemas do xenotranplante. 

E agora entra nossa próxima pergunta:

Como esses experimentos são feitos?

A estratégia que vem sendo utilizada é criar um embrião animal que não possua um gene necessário para o desenvolvimento de um determinado órgão. Podemos usar aqui como exemplo um animal sem o gene responsável para o desenvolvimento do pâncreas. Neste animal é então inserido células-tronco pluripotentes humanas. Esse tipo de células possui a capacidade de transformação em diversos outros tipos de células, podendo ser programadas para apresentar uma função específica. A medida que o animal híbrido se desenvolve, essas células são então usadas para produzir o órgão para o qual este animal não possui o gene. No nosso exemplo o animal utilizará células humanas para produzir o pâncreas.

Este exemplo que citamos foi baseado nos resultados da pesquisa do Nakauchi, o tal pesquisador que recebeu a liberação do governo japonês para o estudo com híbridos. Em suas pesquisas anteriores, foi utilizado um camundongo e um rato (Acredite, não são a mesma coisa).  Em seus resultados, um rato híbrido produziu um pâncreas com células de camundongo. Além disso, o pâncreas dos ratos por sua natureza não possuem vesícula biliar, diferente do pâncreas de camundongos, mas, no caso dos ratos híbridos com células de camundongo, o pâncreas preservou a estrutura anatômica condizente com suas células, apresentando até a vesícula biliar. Os pesquisadores então transplantaram esse pâncreas em um camundongo diabético e o órgão apresentou função normal controlando os níveis de açúcar no camundongo [8].

Neste estudo estamos falando de animais evolutivamente muito semelhantes, um rato e um camundongo, e esta é a atual dificuldade quanto aos transplantes para humanos: fazer com que uma espécie distante da nossa produza um órgão com células humanas. Nos resultados que se tem até agora é possível identificar células humanas nos animais híbridos, mas nada de um órgão com anatomia preservada. Com a liberação do governo japonês, novos resultados serão produzidos e será possível compreender um pouco melhor as vias moleculares por trás desse desenvolvimento permitindo traçar novas estratégias. 

Claro que isso não passaria sem trazer as:

Implicações éticas

Nosso primeiro grande problema quanto às implicações éticas em híbridos humanos é: Para a criação das células-tronco embrionárias humanas que serão utilizadas nos estudos, será necessária a destruição de um embrião humano. E neste âmbito entra todo um questionamento sobre em que momento este embrião é considerado uma vida ou não.

Isto levanta questões teológicas, filosóficas, biológicas e políticas que ainda permanecem sem um consenso. As leis que temos relacionadas a organismos híbridos não apresentam uma conclusão e diferem de um país para outro. Por exemplo, a França proíbe embriões humanos quiméricos, no entanto, a lei não abrange células humanas introduzidas em outros animais [9]. Nos Estados Unidos não se tem uma lei federal que regule a pesquisa com embriões híbridos. O Japão antes liberava o estudo, no entanto não se podia passar dos 14 dias pós-fertilização, tendo a gestão que ser interrompida. Isso mudou atualmente permitindo a conclusão da gestação.  

Essa liberação levantou uma série de preocupações éticas, entre elas se seria necessária a criação de novas leis para incorporar esses novos organismos, uma vez que teremos animais dotados de características humanas. Além disto, questionamentos são levantados acerca do quão essas células mudarão os animais híbridos, se estes poderão produzir outras características humanas além das determinadas, se tais células poderiam interferir na cognição destes animais, se com as mudanças eles poderão interpretar a dor de uma forma diferente [6]

O que podemos esperar do futuro?

Quanto aos xenotransplantes, hoje são utilizados de forma muito limitada sendo indicados somente para pessoas com risco de morte que não tenho outra possibilidade e de forma muito controlada. 

Quanto aos híbridos animais-humanos, Nakauchi já trabalha com células para produção de animais híbridos a mais de 10 anos, é pesquisador da universidade de Stanford e da Universidade de Tóquio e, com essa liberação concedida pelo governo japonês, pretende entender o que limita o crescimento das células humanas em outros animais. 

Os passos serão pequenos, pois muitas barreiras já existem. Com a liberação do estudo, outras barreiras biológicas serão encontradas, mas creio que não estamos longe de pelo menos entender os procedimentos necessários para produção de um órgão humano em uma outra espécie. 

 

Referencias:

[1] T. Sawai, T. Hatta, and M. Fujita, “Japan Significantly Relaxes Its Human-Animal Chimeric Embryo Research Regulations.,” Cell stem cell, vol. 24, no. 4, pp. 513–514, Apr. 2019.

[2] D. Cyranoski, “Japan approves first human-animal embryo experiments,” Nature News. .

[3] “O que são os ‘humano-animais’ que o Japão quer começar a desenvolver,” BBC News Brasil.

[4] J. Wu et al., “Interspecies Chimerism with Mammalian Pluripotent Stem Cells.,” Cell, vol. 168, no. 3, p. 473–486.e15, Jan. 2017.

[5] S. Reardon, “New life for pig-to-human transplants.,” Nature, vol. 527, no. 7577, pp. 152–154, Nov. 2015.

[6] A. Moy, “Why the moratorium on human-animal chimera research should not be lifted.,” The Linacre quarterly, vol. 84, no. 3, pp. 226–231, Aug. 2017.

[7] M.-C. Zhang, X. Liu, Y. Jin, D.-L. Jiang, X.-S. Wei, and H.-T. Xie, “Lamellar keratoplasty treatment of fungal corneal ulcers with acellular porcine corneal stroma.,” American journal of transplantation: official journal of the American Society of Transplantation and the American Society of Transplant Surgeons, vol. 15, no. 4, pp. 1068–1075, Apr. 2015.

[8] T. Yamaguchi et al., “Interspecies organogenesis generates autologous functional islets.,” Nature, vol. 542, no. 7640, pp. 191–196, Feb. 2017.

[9] R. Bourret, E. Martinez, F. Vialla, C. Giquel, A. Thonnat-Marin, and J. De Vos, “Human-animal chimeras: ethical issues about farming chimeric animals bearing human organs.,” Stem cell research & therapy, vol. 7, no. 1, p. 87, Jun. 2016.