Bom dia e bem vindos a mais Spin de Notícias, o seu giro diário de informações científicas… em escala sub-atômica. Meu nome é Marcel Ribeiro-Dantas, falando de Paris mas natural de Natal, Rio Grande do Norte, e hoje falaremos de ensaios clínicos randomizados. Toca a vinheta editor!

Em tempos de pandemia e quarentena, mais do que nunca estamos super antenados nas notícias, não é mesmo? Com base nisso, imagino que já deve ter passado pelo seu radar os tais estudos sobre a hidroxicloroquina, seja o estudo francês apontando que ela teve um efeito positivo no tratamento de COVID19, a doença causada pelo vírus SARS-CoV-2 da família dos coronavírus, como o estudo chinês que apontou para não eficácia da mesma. Você também deve ter ouvido diversas críticas a esses estudos, sobre não ser um ensaio clínico randomizado, ou randomized controlled trial (RCTs, em inglês), não ter sido um estudo cego, duplo cego e mais uma longa lista de críticas.

Talvez te surpreenda, mas estudos como esses dois são bastante comuns na ciência. E deixando esses estudos de lado – ao menos nesse momento inicial não me referindo a eles – estudos dos mais variados graus de qualidade são publicados todos os dias, nos mais variados jornais científicos. Estudos péssimos, medianos, excelentes, como você quiser descrever. Essas publicações, no ambiente científico, costumam receber a atenção que merecem, grosseiramente falando. Publicações com metodologias questionáveis, não reproduzíveis, ou seja, que você repete e os resultados são diferentes, ou que você sequer consegue repetir o experimento (por falta de transparência, por exemplo), publicações com resultados exagerados… Esses estudos costumam ser ignoradas e esquecidos. No entanto, em tempos como o atual, a grande mídia acaba dando uma ênfase para alguns estudos simplesmente por terem alguma relação com o assunto do momento, que no caso é a COVID19. O alcance da mídia acaba dando um palanque para alguns estudos que, talvez, nunca devessem ter recebido. O pior é que, diferentemente de cientistas que podem ler o estudo e dar a devida atenção de acordo com a qualidade do estudo, o grande público é vítima de resultados questionáveis sem poder compreender a metodologia do estudo e fazer o julgamento adequado.

Frente a isso, por diversas razões, algumas pessoas têm se abraçado a esperança da hidroxicloroquina ser a salvadora, e outras pessoas se abraçaram justamente ao contrário, de que é impossível que ela possa ajudar no combate a COVID19. Até agora, quando me referi a hidroxicloroquina, na verdade me referi a terapia combinada que está sendo discutida que é a hidroxicloroquina junto à azitromicina, ainda que o estudo francês tenha falado da hidroxicloroquina sozinha tendo efeito positivo, e que foi ainda melhor com adição da azitromicina.

Mas vamos lá, o meu objetivo não é ler os artigos para você (até porque o chinês está em chinês, me permitindo ler apenas o abstract que está em inglês), e nem mesmo discutir o assunto em um nível super técnico e avançado. O objetivo desse episódio é bem mais simples e, na minha opinião, bastante importante: Explicar o porquê da randomização ser importante, do duplo cego ser importante, por que nem sempre são feitos ensaios clínicos randomizados e o que é cada uma dessas palavrinhas que eu utilizei. Vamos lá? :-) Aperta os cintos.

De um modo bem didático, pode-se dizer que o que aconteceu nesses estudos que vieram à tona até agora sobre a hidroxicloroquina foi que alguns pacientes apareceram em um determinado hospital, foram testados para SARS-CoV-2, o vírus da COVID19, e a equipe de saúde decidiu testar um novo protocolo de tratamento em alguns desses pacientes. Uma parcela desses pacientes foram tratados do modo que todos os pacientes estão sendo tratados, enquanto que uma outra parcela recebeu um tratamento que a equipe de saúde decidiu testar. Ao final de um determinado período, fizeram os testes nos pacientes novamente e contabilizaram que em ambos os grupos havia pacientes curados, sem vírus identificado nas novas amostras coletadas. Qual grupo tinha a maior proporção de pacientes curados? ‘Bingo!’, disse o grupo francês: o grupo tratado com hidroxicloroquina tinha uma maior proporção de pacientes curados. ‘Bingo!’, disse o grupo chinês: o grupo que não foi tratado com hidroxicloroquina tinha uma maior proporção de pacientes curados.

Existem vários problemas nos estudos. O tempo inteiro os profissinais de saúde e os pacientes sabiam se estavam tomando hidroxicloroquina ou não, ou seja, não era duplo cego, e o tratamento não foi randomizado, isto é, não foi aleatoriamente decidido quais dos pacientes receberiam o tratamento com hidroxicloroquina. Sequer foi controlado, isto é, os participantes do estudo não podem ser ditos como representativos da população, e nem que eles são comparáveis entre si, entre outros detalhes. Por exemplo, no estudo francês, o grupo que tomou a hidroxicloroquina pode ser que seja constituído de pessoas mais saudáveis, de pessoas com grau mais leve da doença, pessoas que podem estar em estágios diferentes da doença quando comparados com o outro grupo, e pode ter acontecido justamente o contrário no estudo chinês.

Vamos para as explicações. Eu vou começar falando para vocês sobre a ideia de ter grupos de indivíduos comparáveis entre si. Os ensaios clínicos randomizados costumam ser vistos como o golden standard, padrão ouro, da experimentação científica, embora também recebam críticas. Ainda que sua adoção tenha sido mais recente na história da humanidade, várias das ideias pertencentes a esse tipo de estudo são bastante antigas. Antigas o suficiente para você poder encontrá-las… na Bíblia!

Alguns séculos antes de cristo, o Rei da Babilônia, Nabucodonosor, invadiu o reino de Judá e trouxe para Babilônia milhares de cativos, inclusive pessoas que pertenciam a nobreza do reino de Judá. Um dos súditos do rei recebeu a ordem de trazer as mais sábias e habilidosas crianças de Judá para serem treinadas na cultura e língua da Babilônia, para um dia servir na administração do império, que na época ia do Golfo Pérsico ao Mar Mediterrâneo. Como os escolhidos, esses garotos iriam comer carne da realeza e beber vinho real. Um grande problema surgiu quando Daniel, um dos garotos favoritos, se negou a comer. Devido a questões religiosas, ele e seus amigos pediram para serem alimentados com uma dieta de vegetais. O súdito do rei não via problema especificamente nisso, mas temia ser punido caso os garotos de Judá parecessem mais esguios e fracos do que os demais que comiam a comida real. Se isso ocorresse de fato, a cabeça deste súdito iria rolar e ele não estava disposto a correr esse risco. Afinal, como saber se isso não iria acontecer? Daniel, muito jovem mas já bastante sábio, sugeriu um experimento: Pegue 4 de nós e por dez dias alimente apenas com vegetais, e pegue 4 do outro grupo e os alimente com a comida da realeza por 10 dias. Importante que essas 8 crianças fossem muito parecidas, se não idênticas, em quase que todas as características, exceto que 4 delas iriam se alimentar de vegetais. Altura, idade, peso, estrutura corporal, etc. Ao final dos 10 dias, se houver alguma diferença em saúde ou peso, saberemos que a culpa é da alimentação, porque é a única coisa que mudou (em teoria). Daniel não só convenceu o súdito, como o experimento deu certo e ele foi bastante premiado com isso. O objetivo de contar essa história é mostrar que se conseguirmos ter grupos comparáveis, isto é, muito parecidos exceto pela intervenção, teremos mais confiança de que a diferença nos resultados ocorreu devido a essa intervenção. O experimento de Daniel durou pouco tempo e teve um número de indivíduos pequeno, o que torna o estudo questionável, mas serve de ilustração para mostrar como a ideia em si é bastante antiga.

Já a importância do estudo ser cego, ou duplo cego, isto é, receber a intervenção (remédio) ou administrá-la sem saber quem está recebendo ou o quê está sendo dado, é para combater um viés chamado de viés de informação. Em um estudo, professores foram arbitrariamente informados de alunos que iriam ter melhor rendimento e de alunos que teriam pior rendimento. Essas informações eram falsas, mas ainda assim os alunos que os professores haviam sido informados que iriam ter melhor rendimento, tiveram. Muitas vezes somos vítimas das informações que possuímos.

Em um outro estudo, foi observado que ex-fumantes que estavam há mais tempo sem fumar costumavam ser registrados em prontuários como alguém que nunca fumou, mais frequentemente do que pacientes que pararam de fumar em um momento mais tarde da vida. Na hipótese de dados faltantes onde o profissional terá que fazer uma inferência, saber que o paciente tomou ou não o verdadeiro medicamento pode ter uma influência na decisão, ou na inferência. Saber que um paciente não recebeu o tratamento que o profissional de saúde acredita ser o melhor pode gerar uma maior atenção por parte do profissional de saúde, o que pode acabar causando uma melhor recuperação do paciente. Um paciente que sabe que está tomando placebo, por exemplo, pode se sentir mais pressionado a buscar outras terapias em segredo, sem avisar a equipe médica. Um paciente que sabe que está tomando o verdadeiro tratamento, pode se preocupar menos com sua saúde, já que ele está recebendo tratamento.

A randomização também é bastante importante. Mesmo que você tenha pacientes comparáveis quando as características alheias à doença são comparadas, você pode ter um total de pacientes em um grupo onde a doença é severa em 80% deles e muito menos no outro grupo (placebo, por exemplo). Se você não atribuir a intervenção de forma aleatória, é possível que você acabe tendo um dos grupos com uma maior proporção de pacientes severos, como por exemplo deixar 70% dos pacientes severos no grupo do placebo. Se isso acontecer, mesmo que ambos os grupos estejam recebendo placebo, uma pílula de açúcar por exemplo, o grupo II terá mais mortes pois era ali que os pacientes severos se encontravam em maior proporção. Nesse caso, é fácil resolver isso pois sabemos a fonte desse viés e podemos dividir os grupos de forma planejada. No entanto, nem sempre conhecemos essas variáveis de confusão que podem vir a afetar o resultado e a decisão de quem vai receber o tratamento. A randomização nos ajuda a fugir desses vieses, mesmo quando não sabemos quem eles são.

Até aqui, imagino que vocês concordem comigo que esses elementos são todos importantes para termos maior certeza que a intervenção causou o resultado observado, ou melhor, diminuir a incerteza de que não foi :-). Por que todos os estudos tratando de hidroxicloroquina e COVID19 até agora não foram RCTs então? Ou melhor, por que existem tantos estudos testando intervenções sem utilizar de RCTs?

Todos esses ingredientes de uma RCT, digamos assim, nos levam a três características bastante comuns: Elas são caras, elas são complexas e elas são demoradas. E ainda mais, nem sempre elas são éticas. Imagine que há algumas décadas você gostaria de identificar se fumar causa câncer. Não é ético obrigar algumas pessoas a fumarem, e ainda que fosse, você precisaria de muitos anos, décadas, para ver o resultado e poder comparar com o outro grupo que nunca fumou. Ao longo desse processo, algumas pessoas morreriam por outras causas, algumas tentariam sair do estudo, ou seja, o número de indivíduos precisaria ser muito grande.. Bem, entendeu que é caro, complexo e que pode durar muito tempo, não é mesmo?

Isso não significa que não devemos fazer uma RCT nos melhores moldes para pacientes com COVID19. É claro que devemos! Eu, particularmente, apenas acho que seria muito otimismo de nossa parte esperar que teríamos já agora estudos publicados de RCTs com centenas (milhares?) de pacientes com COVID19, duplo cego, comparáveis entre si, representativos da população, com tratamento randomizado e assim por diante. Lembre-se que em muitos lugares, já entramos no que chamam de escolha de Sofia. Triagem de quem recebe o respirador para tentar sobreviver, e quem tem o respirador negado e morre. Falta máscaras de proteção para profissionais de saúde. Faltam testes. Enfim, os profissionais de saúde estão bastante ocupados em salvar vidas, e sem muito tempo e calma para fazer estudos nos melhores moldes.

Resumo da ópera: Estudos observacionais, ou não randomizados, quando bem feitos, são importantes pois podemos concluí-los de forma mais rápida. Em um bom número, feitos corretamente, reproduzíveis e transparentes, podem dar direções importantes para as RCTs que virão a ser feitas. O progresso científico caminha passo a passo, e quando passos são pulados, o custo pode ser alto. Os estudos observacionais tem suas contribuições, não são nem de longe o final da história, e portanto não podem ser interpretados como tal. Cientistas sabem disso, e por isso não pularam de felicidade com os resultados dos estudos mencionados aqui. O que ficou faltando foi avisar a quem não é cientista disso, e é esse o papel que tentei cumprir aqui. Espero que tenham gostado, e fiquem à vontade para complementar o que eu disse, me corrigir em algo ou deixar seu comentário :-). Lembro ainda que esse podcast só é possível acontecer por conta de seu apoio no patronato do SciCast, tanto no Patreon quanto no Padrim. Um grande abraço e até amanhã!