É importante iniciar esse texto deixando claro que não irei falar nesse texto sobre Jon Snow, do seriado Game of Thrones. O John Snow (com h no John) que será objeto dessa leitura hoje é o famoso epidemiologista, cunhado por alguns como um dos fundadores da epidemiologia moderna, em parte por ter sido o responsável por identificar a origem do surto de cólera em Soho, distrito de Londres na Inglaterra. Esse texto apresentará uma espécie de passo a passo do raciocínio do John Snow, assim como uma visão moderna do que ele fez, através de uma perspectiva de inferência causal a partir de dados observacionais. Isto é, como posso inferir a causa de um fenômeno a partir de observações não experimentais?

Buscar sobre esse episódio da história da epidemiologia é bastante divertido, em parte pelas várias versões diferentes e até míticas de como tudo aconteceu. A versão que irei contar aqui, talvez seja mais pragmática do que outras, até pelo objetivo do texto ser científico e tratar do antes, durante e depois do estudo que o John Snow realizou.

O que é a Cólera?

Hoje sabemos que a cólera é uma infecção que acomete o intestino delgado causada por bactérias. O sintoma mais óbvio é a grande quantidade de diarreia aquosa com duração de dias, assim como vômitos. Esses sintomas podem ocorrer de forma tão intensa que em poucas horas o paciente estará gravemente desidratado e com distúrbio eletrolítico, o que acarreta dano na função neurológica, cardíaca, entre outras. Não é coisa boba! Embora hoje em condições adequadas o risco de morte entre infectados seja de menos de 5%, em condições sanitárias deprimentes, como era comum no passado, o risco pode chegar aos 50%. Na época de John Snow, uma pessoa saudável que bebesse água contaminada pelas bactérias causadoras da cólera poderia morrer dentro de 24 horas.

Bactérias causando doenças!?

O episódio de John Snow e a descoberta da causa da cólera, no entanto, não se passou ontem. O surto de cólera que iremos discutir aqui ocorreu em 1854, há mais de 150 anos! E embora para alguns isso possa não parecer muito tempo atrás, na época não se sabia que existiam microrganismos capazes de causar doenças! Embora já há algum tempo se discutia o que eventualmente ficou conhecido como a Teoria microbiana das doenças, na época a Teoria Miasmática era a mais aceita em vários círculos, incluindo no contexto da cólera. Ou seja, acreditava-se que as doenças não podiam ser causadas por microrganismos, mas sim pelo miasma!

Miasma!?

O miasma era definido como o conjunto de odores fétidos provenientes de matéria orgânica em putrefação. Muitas das medidas atuais de saúde pública, relacionadas a higiene, se originaram com a teoria miasmática, como o enterro de cadáveres, sistema de esgotos, entre outras.

O problema que assolava John Snow, médico, membro fundador da Sociedade Epidemiológica de Londres e cético da teoria miasmática, é que os sintomas da cólera se davam no trato digestivo, e não no sistema respiratório, algo mais coerente com uma causa transportada pelo ar, como os odores da teoria miasmática. Essa e outras razões levaram John Snow a investigar a água que os londrinos estavam bebendo. A hipótese que ele levantou foi: Será que água contaminada (que seja pelo miasma, ou qualquer outra coisa) está causando a cólera nas pessoas? Percebam que estamos falando de causalidade aqui. Gráficos acíclicos direcionados são uma excelente ferramenta visual para se discutir causalidade e portanto farei uso deles aqui. Os pontos são os nós e representam uma variável, enquanto que os traços entre os pontos representam uma relação causal. Peguemos o exemplo de remédios antitérmicos e febre.

Os antitérmicos, também conhecidos como antipiréticos, são utilizados para combater a febre ao inibir o mecanismo que eleva a temperatura corporal. Alguns dos medicamentos mais conhecidos desse grupo são o ácido acetilsalicílico, a dipirona, o ibuprofeno e o paracetamol.

MEDPREVE

O DAG (Directed Acyclic Graph) da ação do antitérmico poderia ser o seguinte:

Ou seja, o remédio antitérmico causa a temperatura corporal. No caso da cólera, caso a água impura fosse a causa da doença, nós teríamos o seguinte DAG, retirado do The Book of Why, do Judea Pearl:

O grande problema aí são as famosas variáveis confundidoras. A teoria miasmática poderia causar tanto a cólera como impureza da água, assim como outras variáveis que na época também eram mencionadas, como pobreza. Hábitos de pessoas mais pobres, por exemplo, poderiam causar a contaminação da água, assim como a cólera. Por causa dessas variáveis, se não as levarmos em consideração, não é possível saber se a pureza da água tem algum efeito no surgimento da cólera nos pacientes, ao menos no modo como o problema está posto. A questão é que é inviável, se não impossível, levar todas elas em consideração, e nada impede que alguém levantasse uma outra indefinidamente.

Em um ensaio clínico randomizado, tecnicamente poderíamos pegar um grupo de pessoas, com as mais variadas características, e intervir de duas formas diferentes nelas. Fazendo um grupo beber água de uma fonte A, um outro grupo beber água de uma fonte B e ver se a frequência de surgimento de cólera varia entre os grupos. Nesse cenário de RCT (Randomized Controlled trial), sigla em inglês de ensaios clínicos randomizados, essas variáveis de confusão são de certo modo deixadas de lado, pois estamos intervindo de forma controlada nos dois grupos. A questão é que, embora tecnicamente isso seja possível, eticamente não é! Aliás, podemos dizer que tecnicamente também não seria, já que em 1854 não se tinha o conhecimento de ensaios clínicos randomizados como temos hoje.

E aqui entra a ideia de John Snow e o modo como ele conseguiu contornar as limitações de uma análise direta entre pureza da água e cólera. Ele observou que existiam duas grandes companhias de água em Londres naquela época. Uma era a Southwark and Vauxhall Company, e a outra era a Lambeth Company. A diferença chave entre elas é que a primeira retirava água das proximidades da London Bridge, que por sua vez era rio abaixo dos esgotos de Londres. A outra companhia retirava água rio acima dos esgotos de Londres. Essa informação, ainda assim, não nos ajuda a resolver o problema. Snow não poderia pegar água das duas companhias e fornecê-las para dois grupos de pessoas com características variadas, para levantar mais indícios sobre sua hipótese. Não seria ético! Mas na prática, o que estava acontecendo é que os clientes da companhia Southwark estavam recebendo água contaminada com escrementos de vítimas de cólera, já os clientes da companhia Lambeth estavam recebendo água não contaminada. Um pouco de pesquisa mostrou que os distritos de Londres que recebiam água da Southwark tinham um índice de mortalidade até 8 vezes maior do que distritos que recebiam água da Lambeth! Ainda assim, como todos devemos saber, correlação não implica em causalidade. Um proponente da teoria miasmática poderia propor que o miasma era mais forte nesses distritos, e não seria possível com os argumentos apresentados até então convencê-lo do contrário. E aqui entra a ideia brilhante de Snow!

Ele observou que em distritos que recebiam água das duas companhias, o índice de mortalidade ainda era muito mais alto nas residências que recebiam água da Southwark. No entanto, essas residências não eram diferentes das residências das redondezas que recebiam água da Lambeth! Nas palavras do próprio John Snow, e traduzidas aqui por mim:

A mistura do fornecimento de água é bastante peculiar. Os canos de cada companhia descem por todas as ruas e em quase todos os pátios e vielas. […] Cada companhia abastece ricos e pobres, casas grandes e pequenas; não há diferença no estado ou na ocupação das pessoas que recebem as águas das diferentes companhias. […] Nenhum experimento poderia ter sido planejado para testar mais completamente o efeito do suprimento de água sobre o progresso da cólera do que este, cujas circunstâncias foram colocadas prontas para o observador. O experimento também foi em grande escala. Nada menos que trezentas mil pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e ocupações, e de todas as classes e posições, desde os nobres até os muito pobres, foram divididas em dois grupos sem sua escolha e, na maioria dos casos, sem seu conhecimento.

John Snow

Um grupo recebia água contaminada. O outro recebia água não contaminada. Essas observações de Snow inseriram uma nova variável no nosso diagrama causal: A companhia que abastecia as residências com água! Veja abaixo o novo diagrama, retirado do The Book of Why, do Judea Pearl.

Não fazia sentido imaginar que as empresas de água estavam causando a cólera, assim como não fazia sentido imaginar que elas estavam causando a pobreza, ou o miasma, ou qualquer outra variável confundidora que havia sido levantada até então. A única relação da companhia de água nas demais variáveis era através da água que elas forneciam à população. A uma variável com essas características em um diagrama causal damos o nome de variável instrumental. Em ensaios clínicos randomizados, uma moeda para definir quem irá receber o tratamento A ou B é uma variável instrumental, pois o lance de uma moeda não pode causar a doença e nem fazer alguém mudar de sexo, ou ficar mais velho. Ela apenas pode decidir quem vai tomar o remédio A ou B, por exemplo, o que torna ela também uma variável instrumental. O que John Snow fez, inconscientemente, foi simular um ensaio clínico randomizado a partir de dados observacionais! As conclusões das análises de John Snow eram de que mais de mil vidas poderiam ser salvas se a Southwark tivesse começado a retirar água rio acima dos esgotos de Londres, assim como a Lambeth fez alguns anos antes.

Os avanços que John Snow trouxe para a medicina, principalmente para o campo da anestesiologia e epidemiologia, e para a ciência foram grandiosos mas, infelizmente, não receberam a devida atenção durante sua vida. Snow imprimiu alguns panfletos com os resultados do seu estudo sobre a causa de cólera, com dinheiro do seu próprio bolso, e conseguiu vender um total de … 56 cópias :-|.