O discurso de reindustrialização dos EUA, menor participação em acordos internacionais, maior protecionismo alfandegário e de redução de impostos, caiu muito bem junto ao eleitorado de classe média, grupo que mais se ressentiu dos anos de expansão da globalização e contribuiu para a eleição de Donald Trump em 2016.

Enquanto Obama conseguiu capturar os votos de uma nova classe média trabalhadora de latinos e negros, surgida nos anos da globalização, Trump encontrou simpatia da classe média branca e historicamente constituída nos EUA, vinculada a pautas conservadoras e nacionalistas e que iam ao encontro do discurso isolacionista do republicano.

Posse de Donald Trump, janeiro de 2017.

 

Concentrando-nos apenas nas pautas internacionais e no enfraquecimento do multilateralismo, podemos lembrar da saída dos EUA do acordo de Paris (2019) e o rompimento do acordo nuclear com o Irã (2018). Já as intervenções diretas e a presença de tropas regulares em países estrangeiros também perderiam força nos anos seguintes à eleição de Trump, principalmente após as derrotas do Estado Islâmico.

Em 2019, por exemplo, Trump anunciou a retirada de soldados da Síria, abandonando os aliados Curdos que haviam lutado ao lado de americanos contra o Daesh e provocando críticas da comunidade internacional. Em 2020, mesmo com o imbróglio diplomático/militar que resultou na morte do militar iraniano Qasem Soleimani, em janeiro, a tendência de retirada da participação ativa dos americanos na região seguiu seu curso.

Uma das apostas de Trump estava no fortalecimento das relações comerciais e o restabelecimento de vínculos diplomático entre países rivais no Oriente Médio. O ponto auge dessa estratégia veio com a assinatura de um acordo entre Israel e Emirados Árabes Unidos, em setembro de 2020. Ao aproximar rivais, ao mesmo tempo em que garantia a paz entre dois de seus aliados, buscava isolar o Irã.

Outro importante marco neste reposicionamento estratégico foi estabelecido em 29 de fevereiro de 2020, com a assinatura de um acordo de paz entre EUA e o Talibã, na cidade de Doha. A ideia era colocar um ponto final da presença militar no Afeganistão, quase 20 anos após o ataque às torres gêmeas.

Desde julho de 2018 o Departamento de Estado americano entendia que a guerra no Afeganistão não estava apenas perdida, como um retorno do Talibã ao poder era inevitável. O acordo, portanto, visava controlar ao máximo esse processo para que ele não redundasse em um derramamento de sangue e, ao mesmo tempo, minimizasse o sentimento de derrota por parte dos EUA, após 20 anos de guerra que não produziu grandes efeitos práticos.

O Secretário de Estado Mike Pompeo em encontro com Abdul Ghani Baradar, fevereiro de 2020.

Na pauta das negociações, os EUA prometeu: reduzir a presença de seu efetivo no país, passando de 13 mil para pouco mais de 8.500 soldados; o fechamento de cinco bases militares no prazo de seis meses; e a retirada de sanções econômicas contra o Talibã, prevista para agosto de 2020. Além disso, o governo Afegão se comprometeria em libertar 5 mil prisioneiros do Talibã enquanto o grupo extremista libertaria outros 1 mil prisioneiros. Ainda segundo o acordo, o Talibã se comprometeria em estabelecer relações pacíficas com o governo afegão e colaborar no combate à formação de grupos terroristas no país, especialmente a Al-Qaeda.

Caso tudo seguisse conforme o combinado, Trump prometia a retirada de todos os seus homens até maio de 2021. Um dos problemas do tratado foi a pouca participação do governo afegão nas conversas entre EUA e Talibã, reduzindo ainda mais a legitimidade de uma administração que jamais foi reconhecida pelos líderes do grupo extremista. Outro percalço era a pouca tradição do Talibã em honrar compromissos.

De qualquer maneira, e por conta de descumprimentos mútuos do acordo, no dia 12 de setembro de 2020 o governo do Afeganistão, representado pelo presidente Ashraf Ghani, reuniu-se com o Talibã, representado por Abdul Ghani Baradar, para o início de um acordo de paz. Apesar dos números não terem sido seguidos à risca, o fato é que ao longo de sete meses os EUA deu início à retirada de suas tropas. No último mês do governo de Donald Trump, as forças americanas na região foram reduzidas a um número de 2.500 soldados.

Posse de Joe Biden, janeiro de 2021.

Com a eleição de Biden, o plano de retirada do Afeganistão e o acordo entre EUA e Talibã ganhou um novo capítulo, na tentativa de se estabelecer novos termos para o já frágil pacto firmado por Trump. Em março de 2021, os novos termos, que jamais seriam assinados, foram vazados pela imprensa afegã, com grande repercussão em torno deles.

Segundo noticiado, diferente de Trump que visava reduzir os danos à imagem dos EUA, aceitando a derrota, Biden tentaria transformar o revés em vitória com um ambicioso plano. Sua estratégia visava reunir representantes do governo afegão e do Talibã com o intuito de se criar uma assembleia constituinte para o país.

Assim, enquanto uma nova constituição fosse elaborada, um governo de transição garantiria o andamento do processo que, ao final, resultaria em um modelo de estado moderno para o Afeganistão, com garantia aos direitos das mulheres e crianças, porém com a presença de um Alto Conselho de Jurisprudência Islâmica, responsável pela orientação e aconselhamento religioso. Este processo contaria com a supervisão de diferentes nações como o Irã, a China, a Rússia, o Paquistão e a Índia.

Na esperança de que o seu acordo prosperasse, Biden chegou a imaginar a data do dia 11 de setembro de 2021 como momento perfeito para deixar o país. Porém, além de se pautar em um imaginário liberal de crença na boa vontade dos povos, o acordo de Biden se baseou em informações imprecisas fornecidas por sua inteligência, com escolhas desastrosas que não levavam em conta (ou ignoravam) o básico do funcionamento do Talibã na região.

Por exemplo, no acordo inicial, a escolha do mês de maio por Trump não era aleatória, afinal, ela coincidia com o período em que o grupo tradicionalmente se encontra recluso nos montes e cavernas do país. A data estabelecida por Biden, por sua vez, coincide com os meses de mais atividade em que os extremistas realizam suas maiores incursões pelo território afegão.

Quanto ao serviço de inteligência, ele superestimou a capacidade de resistência do exército afegão, trabalhando com números inexistentes ou falsos. Ao contrário do que se estimava, as tropas regulares do Afeganistão possuíam apenas 1/3 dos 300 mil homens divulgados nos relatórios. Ao mesmo tempo, no dia 10 de agosto de 2021, enquanto os informes diziam que a tomada de Cabul pelo Talibã levaria até 90 dias para se concretizar, isso aconteceu, de fato, em pouco menos de cinco dias.

Avião americano decola do aeroporto de Cabul, cercado por civis afegãos

A falta de resistência por parte do exército, bem como a maior cumplicidade dos “senhores da guerra” com o avanço do Talibã pelo território afegão ainda carecem de respostas mais claras. Também não está claro como ficará o papel de liderança internacional que vinha sendo desenhada por Joe Biden desde sua posse. A derrota evidente de seu plano de retirada das tropas do Afeganistão e a ausência de comunicação com seus aliados na região, fragilizam a sua capacidade de influência em torno de pautas morais, como a democracia e o meio ambiente.

De qualquer modo, o fato consolidado é que a saída definitiva dos EUA e os eventos desenrolados no mês de agosto de 2021 deram aos 20 anos de intervenção americana o retrato fiel do que ele foi: uma cadeia sucessiva de tomadas de decisões equivocadas e a avaliação superestimada que os EUA possuem sobre sua capacidade de influenciar o mundo.

Nesta história contada em cinco capítulos ao longo dessa semana, a participação americana no Oriente Médio e na Ásia Central, termina do jeito que começou, no Afeganistão, pela porta dos fundos.

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Referências

Biden Deserves Credit, Not Blame, for Afghanistan

A breve vida do acordo de paz de Trump com o Talibã 

O erro crasso de querer negociar com o Talibã

As contradições no plano de Joe Biden para o Afeganistão

A estratégia de cerco do Afeganistão pelo Talibã

EUA x Irã (SciCast #358)