Você que é ouvinte do Scicast ou que já passou por aqui e leu alguns meus textos, já deve ter percebido que o assunto de falta de saneamento no Brasil sempre volta, né? Esse é um tema muito importante, que tem muitas camadas e é claro que uma delas passa pela situação que estamos vivendo com a pandemia de coronavírus.

O monitoramento dos esgotos sanitários é um instrumento muitas vezes utilizado para entender o comportamento de uma doença. Como você pode imaginar, quando a gente está doente e infectado com algum patógeno causador de doença, este patógeno está presente nas nossas fezes e urina. Consequentemente, quando muitas pessoas estão doentes e com a presença do patógeno no organismo em um mesmo lugar, fica mais fácil de detectá-lo nos nossos esgotos domésticos.

Como em todas as questões com o coronavírus, estamos tendo que entender e aprender sobre ele com a pandemia em curso, o que pode ser, a primeira vista, difícil de entender para pessoas que não estão familiarizadas com processos de produção de conhecimento científico. Tem acontecido bastante com a Covid-19 que as instruções passam a mudar conforme mudamos nosso entendimento a respeito do comportamento da doença. Foi assim com as máscaras por exemplo, que a OMS (Organização Mundial da Saúde) inicialmente sugeriu que só as pessoas doentes e os profissionais de saúde utilizassem, temendo que as máscaras faltassem para quem está com maior necessidade. Quando ficou claro que as máscaras estavam sendo essenciais para reduzir a transmissão da doença, a instrução mudou complemente.

 

Levou algum tempo para sabermos se é possível detectar o coronavírus nos nossos esgotos sanitários, mas, assim que tivemos a confirmação de que essa era uma forma de análise que poderíamos fazer, as análises começaram a ser feitas aqui no Brasil e em outros lugares do mundo. Primeiro porque precisamos utilizar tudo o que estiver disponível para mapear o comportamento da doença, mas também porque ainda não temos como saber o que pode acontecer com a presença, cada vez maior, de carga viral nos nossos sistemas de esgoto. Saber o que está acontecendo é importante para lidar com os problemas que podem acontecer.

Existe uma linha de pesquisa chamada de Virologia Ambiental desenvolvida na Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em que o objeto de estudo é a distribuição dos vírus causadores de doenças através de nossos sistemas de coleta e tratamento de esgotos e distribuição de água. A Virologia Ambiental busca entender o comportamento das doenças que possuem transmissão por veiculação hídrica, ou seja, os patógenos na água são responsáveis pela contaminação de outros indivíduos que também contaminam a água em um ciclo. No caso da Covid-19, apesar da veiculação não ser hídrica, e sim por via respiratória, ainda não sabemos tudo sobre o coronavírus para descartarmos totalmente essa possibilidade.

Aqui cabe mais uma vez dizer que estudos de amostras de esgotos domésticos para entendermos comportamento de doenças é uma ferramenta possível de ser utilizada em qualquer país, independente de sua infraestrutura de saneamento ambiental. Em países como o Brasil, esse monitoramento possui uma importância ainda maior porque a nossa falta de sistemas adequados de coleta e tratamento de água e esgotos sanitários é responsável por muitas doenças, não só causadas por vírus. Doenças essas que matam crianças e pessoas com com saúde vulnerável, oneram nossos sistemas de saúde, comprometendo recursos financeiros que poderiam ser utilizados em outras frentes e não em tratamento de doenças que poderiam ser evitadas com saneamento ambiental adequado.

O fato é que as notícias de que havia sido encontrada carga viral em sistemas de esgoto doméstico em vários países do mundo, muito antes da gente saber da existência do coronavírus, deixou todo mundo assustado.

Isso também aconteceu aqui no Brasil. Temos evidências muito fortes que o coronavírus chegou aqui antes de 2020 pois recentemente foram detectadas cargas virais nos esgotos domésticos da população de Florianópolis em Santa Catarina em novembro de 2019, o que mostra que não sabemos precisar qual foi a data em que o coronavírus chegou no Brasil. Isso é uma coisa que ocorreu não só aqui no Brasil, pois na Itália e até na China amostras de coronavírus foram detectadas antes de sabermos sequer da existência da doença, o que é preocupante porque mostra que ainda temos um caminho grande a percorrer para entender o curso de disseminação da doença.

Apesar de ser difícil explicar como pode ser possível detectarmos amostras significativas de coronavírus nos esgotos muitos meses antes do surto da doença, alguns epidemiologistas têm algumas hipóteses que terão de ser confirmadas posteriormente. O que dá para sabermos até agora é que, como os sintomas do coronavírus são muitas vezes parecidos com um de uma gripe, ou em casos mais complicados muito similar com a SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), pode ter ocorrido do vírus ter chegado ao Brasil ainda no ano passado e que não tenha sido possível detectar a doença, porque sequer sabíamos que ela existia. Talvez tenha causado problemas de saúde em algumas pessoas pontualmente, mas nada que mostrasse um comportamento muito diferente do que uma doença de veiculação respiratória, como pneumonia, por exemplo.

Uma outra hipótese do que pode ter ocorrido é a de que o coronavírus possivelmente já estava espalhado pelo mundo antes mesmo de sabermos o potencial que ele poderia ter de nos adoecer e que, por uma mudança ambiental, houve uma ativação e ele passou a ser tão nocivo.

Como eu já mencionei, essas hipóteses ainda precisarão ser confirmadas e nós ainda temos muito o que entender sobre a distribuição do vírus pelo mundo.

É importante ressaltar que, como o Brasil não conseguiu conter o espalhamento desenfreado da Covid-19, fica muito difícil agora, depois de 6 meses, utilizar as ferramentas que os outros países que foram capazes de conter a pandemia utilizam, como testagem em massa da população, rastreamento de contatos e isolamentos apenas dos infectados ou apenas nas regiões em que o vírus está se espalhando sem controle. Por esse motivo, outras formas de mapeamento do curso da doença são tão importantes. Por isso também, na ausência de testes para termos confirmações mais precisas do espalhamento da doença,  o monitoramento dos esgotos é tão útil, principalmente em municípios menores, ou ainda, nos mais afastados e que demoraram algum tempo até terem confirmações de casos de infectados. Nesses casos, a coleta das amostras feitas de forma recorrente é capaz de mostrar quando as cargas virais são detectadas e se aumentam ou diminuem com o passar do tempo, indicando que mais pessoas estão se infectando.

É claro que essa é uma ferramenta que tem limitações, mas, como eu já mencionei, na falta de mecanismos mais sofisticados, essa acaba sendo uma das poucas soluções que encontramos. Estamos fazendo esse tipo de monitoramento nos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e também no Rio de Janeiro, pelo o que pude encontrar.

Uma outra forma de monitoramento que pode nos ser útil no futuro (vem vacina!) é o teste de cobertura vacinal através do monitoramento de esgotos. Quando a população é vacinada, leva algum tempo para que os efeitos da vacina na imunidade sejam sentidos porque precisamos de tempo para criar os anticorpos necessários para nos proteger da doença. Como saber então se a vacina está funcionando e se a carga viral na população está diminuindo? Adivinha! Isso mesmo, a gente vai monitorando os esgotos de forma constante e verificando se os efeitos esperados da vacinação estão acontecendo.

Como vocês devem ter percebido, essa é uma forma simples e barata de controle de uma doença e que pode ser facilmente aplicada quando queremos dados complementares, ou mesmo quando esses são um dos poucos que podemos contar.

Até a próxima!

 

Referências Bibliográficas

Fiocruz divulga estudo sobre a presença de coronavírus em esgoto sanitário

https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-divulga-estudo-sobre-presenca-do-novo-coronavirus-em-esgotos-sanitarios

Virologia Ambiental e Saneamento no Brasil. Uma Revisão Bibliográfica

https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/10812/2/tatiana_pradoemarise_IOC_2014.pdf

Presença de Coronavírus no Esgoto Cresce Durante a Pandemia

https://saude.rs.gov.br/presenca-do-coronavirus-nos-esgotos-cresce-de-acordo-com-a-expansao-da-pandemia