No primeiro semestre do ano sempre voltam as mesmas pautas na saúde pública, dentre as mais comuns, o combate ao Aedes aegypti. Esse enfrentamento do Brasil vs o Aedes aegypti é muito mais velho do que podemos lembrar e talvez nos próximos anos esteja perto do final, com a chegada de novas tecnologias. Porém antes de conjecturar o futuro é importante olhar pro passado e tudo que aconteceu na história desse mosquito em território nacional. 

No texto de hoje vou abordar desde a chegada do Aedes aegypti no Brasil, a evolução das campanhas ao seu combate e como já conseguimos faze-las com sucesso, porém as coisas foram mudando. Bora lá.  

 

A vinda do Aedes aegypti para o Brasil

(Imgem 1, foto em PeB com os escravizados nos porões dos navios. Navio negreiro, de Rugendas (1830). O preço do cafezinho açucarado. fonte link)

A história do Brasil com o Aedes aegypti vem de muito distante. O mosquito tem origem no continente africano, mais especificamente no Egito, e chegou ao nosso território no período das grandes navegações, por meio dos navios que traficavam escravos. De acordo com Timothy C. Winegard em seu livro –  O mosquito: A incrível história do maior predador da humanidade (1).

Foi o tráfico escravagista africano, que incluiu a introdução dos mosquitos africanos Aedes e Anopheles e suas doenças nas Américas (…) os europeus vieram, mas não dominaram os povos indígenas e as Américas sozinhos. Os mosquitos Anopheles e Aedes vieram e venceram.

Apesar do Aedes ser conhecido principalmente pela transmissão da dengue, ele pode transmitir várias outras doenças como Zika, Chikungunya e Febre Amarela (link), sendo essa última uma das responsáveis pela morte de vários povos originários durante o período do tráfico de escravos. 

Antes de seguir é importante contextualizar como funciona a transmissão da doença pelo Aedes aegypti. A fêmea do mosquito suga o sangue de uma pessoa que já esteja infectada, com o vírus ativo na sua corrente sanguínea. O vírus passa por um período de incubação dentro do mosquito (entre 10/14 dias), só depois que o mosquito passa a infectar outras pessoas com a sua picada (link).

Agora voltando:       

A febre amarela foi uma das influências históricas mais importantes para a definição da organização política, geográfica e demográfica do hemisfério ocidental (1).

Ainda de acordo com o livro de Winegard, a febre amarela trazida nas navegações ajudou a dizimar a população indígena, fazendo com que os povos do continente africano fossem a maioria dos escravos, pois os mesmos já tinham o sistema imune adaptado para a febre amarela, enquanto os indígenas não (1).

De acordo com livro “História das Epidemias” de Stefan Cunha Ujvari (2020) – Os febris forneciam sangue fresco para os mosquitos Aedes, que transitava livremente no convés e porão do navio, aos escravizados que já tiveram contato com o vírus na infância, pouco aconteceu, aos que nunca tiveram o sistema imune em contato com essa nova doença, cederam a febre amarela e morriam ainda na viagem (2).  

Os mosquitos conseguiram se adaptar facilmente às condições precárias dos navios Europeus e às poças d’água nos barris dos porões. Chegando por aqui o Aedes encontrou um clima perfeito para a sua reprodução e ficou até atualmente (1,2). Se dá início a um dos maiores enfrentamentos do nosso país, o Brasil vs o Aedes aegypti

 

ROUND I (a erradicação da febre amarela no Brasil)

(Imagem 2: esqueletos na mesa confraternizando Charge da revista A Vida Fluminense em 1874 ilustra a devastação provocada pelas epidemias de febre amarela (Biblioteca Nacional Digital, Fonte: Agência Senado)

De acordo com os dados históricos do Ministério da saúde (3), o combate da febre amarela em território brasileiro é muito antigo. Há registros do médico português João Ferreira da Rosa, no ano 1687, sobre a preocupação da situação do Brasil frente à doença. Ao chegar por aqui, ele encontrou um ambiente desolador:

quando alguém chamava o cirurgião, logo este perguntava se o enfêrmo botava ferrugem pela boca, e se lhe dissesse que sim, se escusava de visitá-lo, e mandava preparar seu enterro por não lhe considerar esperança de vida.

Existe um longo registro sobre esse período, no qual não pretendo focar, mas é importante ficar claro que a medicina nessa época ainda era muito diferente da que temos atualmente, e muitas das tentativas de erradicação da febre amarela foram falhas.

Imagem 3 a morte sobre as pessoas no carnaval, Febre amarela “ceifando” vidas no carnaval de 1876 – Charge: Angelo Agostini/ Revista Illustrada. Biblioteca Nacional Digital,Fonte: Agência Senado

Para a gente ter uma noção, somente nos anos de 1900, com Oswaldo Cruz, que foi entendido que a febre amarela era transmitida pelo mosquito Aedes aegypti. Até então acreditava-se que a transmissão era por contato de roupas ou colchões de infectados (link).

Apesar de ser feito de um modo diferente, isolar os infectados de modo que o mosquito não tenha contato, foi um sucesso, conseguindo erradicar a doença no Rio de Janeiro em 1909 (4).

(Imagem 4 Charge do Oswaldo Cruz observando os mosquitos. contra a peste e a febre / Crédito: Museu da Funasa. link)

Tal ação serviu de inspiração para todo o país na tentativa da erradicação do Aedes aegypti, sendo oficializada, no ano de 1940, uma campanha em âmbito nacional de combate ao mosquito. Essa campanha contou com ações que inspecionavam todas as residências de todos os municípios do território brasileiro, além de ser a primeira vez em que foi utilizado um inseticida, o que gerou um grande impacto na área antivetorial (4).

A campanha foi um sucesso, conseguindo chegar em 97% dos municípios. No ano de 1955 no município de Santa Teresinha, Bahia foi eliminado o último foco do mosquito, o que gerou o reconhecimento internacional e, no ano de 1958, o certificado da OMS (Organização Mundial de Saúde) de erradicação do mosquito Aedes aegypti no Brasil (4). 

É, cara, quando se tem todas as condições científicas e interesse político nós conseguimos ser um grande sucesso na saúde pública. Porém você está lendo isso e achando estranho, pois ainda existe o Aedes aegypti e provavelmente conhece alguém que teve alguma das doenças transmitidas por ele. Vamos à segunda parte do texto.

 

O retorno

Alguns fatores influenciam no retorno do Aedes aegypti no território brasileiro:

  • A falta de interesse político na época: o auge da ditadura militar ignorou as conquistas anteriores na erradicação da febre amarela, essa desatenção, fez com que novos registros voltassem nos anos 70, eclodindo em uma pandemia no Rio de Janeiro no anos 80 (4). Aqui vale a indicação do meu texto sobre o início da pandemia de AIDS/HIV no Brasil mostrando como a ditadura militar foi negligente na saúde pública brasileira (link). 
  • Globalização: O Brasil consegue a erradicação do Aedes aegypti, mas os outros países não, somado a isso a falta de fiscalização nos portos e aeroportos fizeram com que o mosquito e pessoas infectadas circulassem no território nacional.
  • Êxodo rural: os brasileiros que moravam no interior foram para as grandes cidades, em busca de melhores condições de vida, fazendo com que as grandes cidades tivessem um crescimento desordenado somando-se a isso a falta de saneamento básico.

De acordo com Gabriel Lopes, pesquisador da FioCruz em matéria da BBC (link),

A dengue, como conhecemos hoje, se espalhou pela América Latina a partir da década de 1980, afetando 25 países e se expandindo rapidamente pelas cidades mais povoadas. O retorno e propagação do mosquito Aedes aegypti, que se intensificou ao final da década de 1970, foi fundamental para esse processo.

Ainda vale a pena citar a mudança no modo como a Organização Pan americana de saúde (OPAS) no combate ao Aedes aegypti. Essa traz algo mais parecido do que temos hoje, com a população tendo um papel ativo na procura e eliminação do foco do mosquito (5), porém o Brasil inicialmente demorou a adotar essa postura. 

(imagem 5: desenho em 3d do mosquito da dengue com a cara assustada, fonte: link)

Além das mudanças climáticas favorecerem a propagação do mosquito Aedes aegypti no mundo inteiro (link), mas esse ponto aqui vai ficar pra um segundo texto sobre o tema.

 

Round II (Propagandas e educação em saúde)

Estamos agora nos anos 90. O Brasil ganha grandes reforços com o retorno da democracia e a construção do SUS, as campanhas voltam a ser ordenadas em âmbito nacional e a comunicação em saúde entra com um papel fundamental nessa nova fase de combate ao Aedes aegypti.    

Em meados dos anos 90 a notificação de casos de Dengue passou a ser obrigatória a todos os municípios brasileiros, dessa forma podendo trazer uma noção de como e onde o mosquito estava para possibilitar campanhas de combate. Apenas dois Estados não tiveram notificação de casos de Dengue, fazendo com que a doença tivesse caráter pandêmico no Brasil (5). 

Vale destacar que toda a América do Sul passou, e passa, por esse processo, o que torna ainda mais difícil as campanhas coordenadas de combate ao Aedes aegypti. Isso pois são necessárias campanhas de longo período, e essas não conseguem se manter por falta de interesse político constante, já que esse depende de quem está no poder. Como resultado, temos a diminuição de investimentos e tudo que desencadeia a partir disso (5).

Voltando para o Brasil, os métodos tradicionais usados anteriormente não conseguiam ser eficazes contra o Aedes aegypti também devido à evolução do vírus causador da dengue. Em 1996 o Ministério da saúde adota novas estratégias, tendo como principal característica a descentralização das ações, com a participação da Federação, Estados e Municípios (5,6).

Porém essas ações não conseguiriam a um curto prazo resolver a questão da dengue no Brasil, aliás fizeram com que, em 1998, houvesse um auge de casos registrados de dengue. Óbvio que isso aconteceu também por um maior investimento, que possibilito que a alta de casos, que já existia, viesse à luz (5).

 

(imagem 6, desenho do mosquito da dengue com o símbolo de trânsito que indica proibição — um círculo vermelho cortado na diagonal, fonte: link)

 

Estamos então nos anos 2000. A gente perdia e feio no combate ao Aedes, com a identificação em território nacional de um novo tipo de dengue que se espalhava de Norte a Sul do país. Tal fato levou o Ministério da Saúde a elaborar uma nova estratégia em 2001, na conferência internacional contra a dengue (5).

O Programa Nacional Contra a Dengue foi implementado em 2002, algo bem mais parecido com a que temos atualmente, com campanhas permanentes, a participação popular, o fortalecimento da epidemiologia, programas de agentes comunitários de saúde e a implementação do PSF (programa de saúde da família). Porém é importante destacar que essas ações não têm grande impacto se junto a elas não vierem investimento e melhora no saneamento básico (5).

Tenho certeza que você já viu diversas vezes as propagandas na TV/rádio do combate a dengue, sobre a procura de possíveis focos do mosquito e o famoso “não deixar água parada” fazendo parte de um imaginário BR (link). Lembro perfeitamente como era comum os agentes de endemias irem na minha escola falarem sobre o assunto, nos explicamos como funciona a transmissão, tirando dúvidas das crianças e nos fazendo ativos no combate à dengue. Isso é o auge da educação em saúde, ferramenta fundamental na saúde pública e que em território brasileiro as vezes é feito tão bem.   

Em 2008 o Brasil teve a maior alta de dengue, com 800 casos para 100 mil habitantes. Estima-se que entre 2002 e 2008 houve mais de 50 mil internações devido à dengue. O aumento de casos notificados leva a um aumento de hospitalização e em consequência ao aumento do número de mortes (7).

A dengue no Brasil gera fortes impactos econômicos, além de ter forte influência social e demográfica

Por exemplo, os surtos de dengue acarretam gastos e absenteísmo, mantendo indivíduos, enquanto adoecidos, fora do mercado de trabalho. (…) Falta de infraestrutura e de saneamento básico, bem como condições precárias de moradia, têm sido apontadas como fatores contribuintes para o aumento das taxas de incidência da doença (7). 

Como falei no início do texto, a dengue é cíclica, todo ano ela volta. Não importam as campanhas ou quantos casos se tem, a cada ano é uma batalha constante. O que me leva à questão final desse texto.

 

O Brasil fracassou no combate à dengue?

Essa questão é bem complexa de ser respondida e temos que olhar os fatos com calma e entender a que pé estamos nesse combate. É fato que em 2023 há uma alta de casos de dengue em território nacional (link). Em 2022 a Dengue teve recorde de mortes no Brasil (link). E aqui vale ressaltar que propositalmente não estou citando Zika e chikungunya, outras doenças transmitidas pelo mesmo mosquito e que também tiveram registros de aumento recente. 

(imagem 7 desenho do mosquito da dengue com a blusa “Eu amo o Brasil” fonte: link)

O Brasil sim fracassou no combate à dengue, pois, para enfrentá-la, temos que lidar com problemas estruturais que estão presentes desde sempre em território nacional, como: a desigualdade, a dificuldade de termos projetos a um longo prazo, a falta de interesse político de alguns governos e a diminuição no investimento na saúde, cujos impactos são sentidos há longo prazo. 

Um artigo do Outra Saúde fala que, no Brasil, mais de 17 milhões de pessoas vivam em condições precárias de moradia, em que a falta de saneamento básico, de coleta do lixo e das visitas de agentes de saúde e endemias são fatores que beneficiam, e muito, a proliferação do Aedes aegypti. Tudo isso ainda soma-se ao racismo ambiental, pois a maioria das pessoas nessa situação são negras (link). 

As ações de saúde, em si, tem boas intenções, mas hoje em dia não são mais suficientes, pois precisam levar em consideração os contextos em que vão ser aplicadas. Por exemplo, não basta uma propaganda bonita sobre “evitar os focos de dengue” se o indivíduo mora do lado de um lixão, ou uma propaganda legal sobre “não deixar água parada” quando a pessoa sequer tem acesso a água potável em sua rua. 

O combate à dengue vai muito além, estamos perdendo feio esse segundo round, pois o Aedes aegypti, que chegou ao nosso território quando as veias da América Latina estavam sendo abertas, atualmente tem o apoio forte do capitalismo tardio, junto das mudanças climáticas.  

Para terminar o texto de uma forma menos tensa, reforços estão chegando para nos dar apoio nesse enfrentamento. Zé gotinha já está se alongando e preparado para entrar no ringue. O round III fica para um próximo texto.

 

REFERÊNCIAS:   

  1. Winegard, T. C.  O mosquito: A incrível história do maior predador da humanidade. Editora Intrínseca, 2022. 
  2.  Ujvari, S. C. História das Epidemias. Editora Contexto, 2020.
  3. Ministério da Saúde, Departamento Nacional de Epidemias. História da Febre Amarela no Brasil.  Rio de Janeiro, 1996. 
  4. Teixeira, M. G; Barreto, M. L. Porque devemos, de novo, erradicar o Aedes aegypti. ARTIGOS • Ciênc. saúde coletiva 1 (1) • 1996.
  5. Silvia, J. S. et. al. DENGUE NO BRASIL E AS POLÍTICAS DE COMBATE AO AEDES AEGYPTI: DA TENTATIVA DE ERRADICAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE CONTROLE. HYGEIA, Revista Brasileira de Geografia Médica e da Saúde. 1996.
  6. BRAGA, Ima Aparecida; VALLE, Denise. Aedes aegypti: histórico do controle no Brasil. Epidemiol. Serv. Saúde,  Brasília ,  v. 16, n. 2, p. 113-118,  jun.  2007.
  7. Bohm, A. W. et. al. Tendência da Incidência de Dengue no BR: 2002/2012.  Epidemiol. Serv. Saúde 25 (4) • Oct-Dec 2016.