É bastante comum que brasileiros recorram ao termo América Latina para designar aquela porção do continente em que se tem o espanhol como língua oficial. Dificilmente associamos, logo de cara, que o Brasil também faz parte do quinhão latino da América do Sul.

Até mesmo durante a disputa da Libertadores da América, principal competição de futebol do continente, nossas diferenças são ressaltadas, seja pela forma como os times de lá (principalmente da Argentina) se relacionam com sua torcida e jogam com “mais alma” ou, então, pela forma como os juízes conduzem a peleja. Não são poucas as vezes que o sentimento de estranhos no ninho e o suposto favorecimento de clubes hispano-americanos são mencionados por narradores e comentaristas esportivos aqui do Brasil, confirmando nosso grau de parentesco distante.

Porém, nesses últimos meses, para ser mais preciso, desde setembro de 2019 (com a dissolução do Congresso no Peru), nossos hermanos latino-americanos passaram por uma onda de manifestações populares fazendo com que a política de seus países povoasse os noticiários brasileiros. De repente, fomos tomados por uma necessidade de olhar para o lado e dedicarmos nossa atenção a tais eventos. Estranhamente, este mesmo momento realçou ainda mais a nossa sensação de não pertencimento. Primeiro, pois vimos que muito pouco sabemos sobre eles e, segundo, pois, enquanto nos perguntávamos sobre qual seria o próximo país em que se estouraria alguma manifestação, foi impossível não pensar no porquê não compartilhamos dessa mesma onda de energia que se alastrava como rastilho de pólvora em terras hispânicas.

Afinal, o que faz com que o Brasil esteja tão perto e, ao mesmo tempo, tão distante de seus vizinhos? Essa não é uma pergunta nova e, aqui no Brasil, quem melhor buscou argumentos para tentar responde-la foi a historiadora Maria Lígia Prado em um artigo publicado em 2001 sob o título de O Brasil e a Distante América do Sul.

Assim, segundo pontua a autora, existiria uma versão amplamente partilhada sobre as razões de tal apartamento fundamentada na tradição eurocêntrica presente na cultura brasileira. De maneira geral, nossa identidade teria sido forjada de costas para nossos vizinhos, com os olhos voltados para a Europa e, no século XX, para os EUA. Ou então, ao passado colonial, quando as metrópoles haviam estabelecido limites geográficos e políticos que nos puseram em rotas diferentes da história.

Colocando tais visões à prova, Maria Lígia Prado selecionou dois momentos da trajetória de nosso continente para tentar perceber até que ponto eles possuíam alguma conexão com a realidade. O primeiro momento escolhido foi justamente a independência dos países sul-americanos. Neste ponto, aqui do Brasil, a manutenção da monarquia foi vista como um elemento positivo que nos impediu de mergulhar na suposta anarquia e o caos provocado pela opção republicana dos vizinhos. Do lado de lá da fronteira, contrariamente, a manutenção de um monarca foi visto como uma anomalia e um sinal de atraso, e mais: “as constantes referências depreciativas ao Imperador enfatizavam o fato de ele ser europeu e consequentemente anti-americano (‘déspota luso-brasileiro’, ‘tirano europeu’, ‘o Nero do Continente Americano’)” e, “em oposição, a república significava o rompimento com a Europa e marcava a dimensão de uma identidade americana” (PRADO, 2001, p. 136).

Com o avançar do século 19, a condição retrógrada do Brasil seria refirmada pela manutenção da escravidão em terras tupiniquins, fato que fazia com que a “Argentina não deveria ser confundida com essa terra de “deformidades” e “degeneração”” (PRADO, 2001, p. 130), como observou o político Domingo Faustino Sarmiento, anos antes de se tornar presidente do país platino. Da mesma maneira, a constante instabilidade política na qual os hispano-americanos se embrenharam confirmava nossa “boa” opção pelo modelo imperial, fato que nos aproximava da Europa, “fonte irradiadora da ‘cultura, do progresso e da civilização’. Tais valores não poderiam ser encontrados nos vizinhos que nos rodeavam” (PRADO, 2001, p. 138).

Assim, é possível perceber que muito além de não ter havido interesse em promover a aproximação do Brasil aos vizinhos, ambas as localidades construíram suas identidades tendo o outro como a negação de sua essência. Em um jogo de espelhos, a imagem que o Brasil tinha de si, reforçava-se à medida em que olhava para o seu oposto do outro lado das fronteiras. República levava à anarquia; o caos à barbárie. O mesmo se verificou do lado oposto das margens territoriais, afinal, o Brasil ainda não havia se desfeito de seus laços com o passado colonial. Conforme escreve a autora, “esses discursos tiveram constância e vigor, construindo um imaginário sobre a “outra” América e alargando o fosso que ‘nos’ separava ‘deles’” (PRADO, 2001, p. 139).

O segundo momento destacado por Maria Lígia Prado foi justamente aquele localizado após a proclamação de nossa república. De maneira curiosa, este foi um evento que se produziu pouco tempo antes de Cuba atingir sua independência com o auxílio dos EUA. Tal fato provocou a expansão de um sentimento antiestadunidense pelas bandas hispânicas, ao mesmo tempo em que promoveu o reativamento de um sentimento espanhol do qual o Brasil não fazia parte. Além disso, o desenvolvimento da diplomacia brasileira e a opção do Barão do Rio Branco pelas ideias de Manuel Bonfim (pró EUA) em detrimento das de Oliveira Lima (pró hispanoamérica) selaram o destino rumo ao apartamento de nossas histórias. Assim,

“com a República, não se alteraram substancialmente as relações diplomáticas com os demais países da América Latina. Esta posição se coadunava com a manutenção de um sentimento anti-hispânico bastante acentuado […]. A República não destruiu as distâncias entre o Brasil e a América Hispânica, pois as diferenças, muito mais que as semelhanças, continuavam a ser destacadas. As visões da distância que nos separava contribuíram para a construção de um imaginário que forjou uma memória transformada em senso comum e que remetia ao passado histórico apresentado como legitimador do presente” (PRADO, 2001, p. 146).

A historiadora Maria Lígia Coelho Prado

O fato curioso deste texto escrito no ano 2001 é que ele refletia uma aspiração da autora de que a criação do Mercosul pudesse promover pontes que finalmente aproximasse-nos de nossos vizinhos tornando os laços de “hermandade” de fato reais. Quase vinte anos depois, seguimos distantes, olhando para o continente por sobre os ombros, mirando outros modelos que nos façam sentir mais civilizados e, ao mesmo tempo, sem termos um único libertador (de fato) para chamar de nosso, para nos sentirmos parte legítima de um torneio que reverencia os libertadores do passado que insistimos em não termos em comum.

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PRADO, Maria Lígia Coelho. O Brasil e a Distante América do SulRevista de História, 145 (2001), 127-149.

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