Em um dado momento no recente SciCast sobre a história da MPB, pincelamos as questões: o que é, afinal, a música popular, como ela se difere da música chamada erudita, e por que essa definição é importante? Visto que este é um problema extremamente relevante para o universo da música contemporânea, gostaria de tomar os próximos parágrafos para compartilhar com o leitor uma reflexão a respeito.

Quando se trata dessa distinção, o mais comum é que coloquemos de um lado a música “clássica” de concerto, normalmente executada por orquestras, e derivada da enorme linhagem europeia de tradições formais, e do outro… bem, todo o resto. Cantores de soul, guitarristas de rock e blues, percussionistas de samba, grupos de maracatu, bandas de axé e heavy metal, DJs e MCs do hip hop. Todos se encaixam sob esse enorme guarda-chuva que convencionamos chamar de “música popular”. Ora, não é possível que o universo da música seja grosseiramente dividido entre um escopo tão específico e limitado e um outro tão vasto e diverso. Ou será que é?

Para melhor entender essa questão, vamos tentar analisá-la sob algumas óticas distintas.

Primeiro, acho relevante que tratemos da questão temporal. Nós que estudamos a história da música já estamos habituados a conhecer uma vasta e detalhada genealogia das tradições europeias. Essa genealogia vai desde a música sacra puramente vocal do início do segundo milênio até as aventuras atonais de Schoenberg no início do Século XX, passando por Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven, entre tantos outros. Literalmente séculos de documentos e partituras que contam, passo a passo, a evolução das técnicas musicais europeias e compreendem aquilo que chamamos de música erudita.

Por outro lado, estamos também acostumados a ouvir falar da música popular como fenômeno recente, com suas origens quase sempre remontando ao Século XIX, e, portanto, desprovida da enorme profundidade e complexidade que a música erudita supostamente teria. Desnecessário dizer que essa visão parte de uma perspectiva eurocêntrica, cujo princípio de dissolução é um fenômeno relativamente recente entre nós.

O recorte temporal é, no fundo, uma perspectiva que privilegia as tradições escritas, enquanto ignora a existência e potencial expressivo de tradições orais. Dá, assim, a falsa impressão de que emanações populares só passam a de fato existir quando de alguma forma se mesclam às tradições escritas, permitindo-se ser de alguma forma registradas e catalogadas de acordo com elas. O que me leva a um segundo ponto importante.

Quase todos os gêneros que hoje reconhecemos como parte do panteão da música popular derivam de alguma forma de miscigenação cultural entre elementos europeus, africanos e indígenas ocorrida nas Américas. Isso é inegável e já discorri a respeito em textos passados, tanto tratando sobre o blues na América do Norte quanto sobre as linhagens do samba e do choro no Brasil.

Mas o fato é que frequentemente encontramos dificuldade em admitir – ou mesmo em perceber – que os ingredientes não-europeus dessas misturas não vieram do nada. No momento em que se encontraram com a cultura dos colonizadores, eles também contavam com seus séculos de desenvolvimento minucioso, e efetivamente representavam os povos a que pertenciam. Dessa forma, me parece estranho dizer que o resultado dessas misturas foi a música popular, e não uma nova música popular, para um novo povo que surgia.

Por fim, é fundamental que falemos sobre contextos e propósitos da música nos momentos em que é produzida e consumida.

Dada a sua longa correlação com a tradição escrita e com o desenvolvimento da intelectualidade formal europeia, não seria de todo errado ou imprudente traçar um paralelo entre a música erudita e as ciências puras. Assim como a física, a química e a biologia passaram por constantes expansões de suas fronteiras pelo bem do próprio conhecimento – sem necessariamente levar em consideração as consequências ou a aplicabilidade daquilo que buscam – a música erudita europeia desenvolveu, ao longo dos séculos, um similar refinamento técnico, pelo mero bem da expressão artística.

Esse estado de aparente pureza expressiva, que Mário de Andrade define como a arte “desinteressada”, talvez seja um elemento importante para definir a música erudita nos dias de hoje e diferenciá-la de sua contraparte. A música popular, afinal, dificilmente nega estar a serviço de propósitos e intenções que vão além do som pelo próprio som. Seja pelas críticas sociais no rap e no punk rock, pela fantasia escapista no heavy metal ou pelos estímulos à sensualidade e ao romantismo em absolutamente todos os gêneros, quase sempre há, no repertório popular, uma tentativa de se utilizar a obra musical para atingir objetivos que estejam além da música, conferindo-lhes uma certa camada de utilidade, ou interesse.

 Com base nessas reflexões, talvez fosse seguro, então, classificar como erudita a música pura e desinteressada que encontra seu lugar claro nessa linhagem de tradições europeias, ao passo que consideramos popular a música que, em maior ou menor grau, deriva de tradições orais e que consistentemente expressa algum tipo de interesse ou função social.

Mas, então, o que diríamos da música de cinema, que ao longo de todo o século XX se valeu das técnicas e rigor formal das escolas europeias para deliberadamente servir a produtos de entretenimento, por vezes gerando melodias extremamente acessíveis e memoráveis? Vou além: o que diríamos de temas famosos compostos por Bach, Beethoven ou Mozart que, ressignificados, tornaram-se ícones da cultura pop?

 

 

Ou então, o que dizer de vanguardas como o bebop, que, surgido como resposta ao ápice de popularidade e sensualidade do jazz nos anos 1930, inaugurou sua linhagem mais desinteressada, hermética e intelectualizada, que até hoje permeia cursos universitários de música e é tida como “música para poucos?

 

 

Como podemos ver, hoje em dia dificilmente haverá campo seguro para se definir em absoluto o que é popular e o que é erudito. Talvez seja mais justo deixarmos de tratar essa dicotomia como um sistema binário que só comporta duas respostas possíveis, e passarmos a tratá-la como um espectro amplo, em que pouco se encaixa perfeitamente em qualquer uma das pontas e muito povoa o vasto espaço entre ambas.

Talvez só assim seja possível dar conta da enorme complexidade que o universo da música adquire em nossos tempos.