Qualquer processo somente ocorre se respeitar as leis da termodinâmica, porém uma rápida busca na internet ainda mostra muitos resultados relacionados a moto contínuos – dispositivos que infringem estas leis. Os supostos inventores reclamam de conspirações a nível mundial que impedem a democratização dessa “energia infinita”, com direito a distribuição de culpa para autoridades políticas e comunidade científica. Bom, eu fui lá e testei: amarrei minha gata a uma torrada com manteiga e soltei, mas ao invés de um moto contínuo obtive como resultado um chão imundo e uma felina bastante furiosa.

Figura 1 -Fonte: https://bit.ly/3hs6FzK

Brincadeiras à parte, já no século XIX era consenso entre os cientistas sérios que esse dispositivo era inviável. Contudo, volta e meia apareciam espertalhões para embolsar dinheiro de gente ingênua. Um exemplo é o que correu na Filadélfia, quando o carpinteiro J W. Kelly recebeu milhões durante décadas por um motor a vácuo hidropneumático que faria uma locomotiva se mover por cerca de cinco mil quilômetros com apenas um litro de água. A insistência por patentes foi tão grande, que a partir de 1918 o Escritório de Patentes dos EUA rejeitou qualquer análise de novas inscrições – embora algumas tenham passado disfarçadas.

Como vivemos na era das fake news e teorias conspiratórias, acho interessante explicar o motivo pelo qual não devemos dar crédito a essas pessoas que brotam das tocas mais obscuras. Basicamente existem dois tipos de moto contínuos: os que violam a 1ª lei da termodinâmica, que trata da conservação da energia (PMM1); e os que violam a 2ª lei (PMM2), que indica a direção em que um processo ocorre naturalmente e está relacionada com a entropia (grau de desordem de um sistema). Inclusive deixo registrado para aqueles que ouvem reclamações constantes que são bagunceiros, respondam à altura: apenas digam que abraçaram a sua entropia interior.

Bom, agora que introduzi ambas as leis, vou avançar em alguns outros conceitos. Um deles é o reservatório de energia térmica e aqui podemos usar a analogia de duas piscinas olímpicas: uma com água muito quente e a outra com água bem gelada atuando, respectivamente, como fonte e sumidouro de energia sem sofrer alterações em sua temperatura.

Os engenheiros estão sempre se preocupando com o desempenho dos equipamentos e em formas de evitar perdas de energia, que são inevitáveis quando realizamos um trabalho. Por exemplo, se eu girar um eixo de uma hélice em um tanque, parte desse trabalho será convertido em calor, aumentando o grau de agitação das moléculas de água. Contudo, se eu aquecer agora a água, não vou conseguir realizar o contrário, que é a movimentação da hélice. Na verdade, isso até pode ser feito – desde que eu acrescente ao processo uma máquina térmica.

Exemplos dessas máquinas inundam nosso cotidiano como os motores à combustão de automóveis e as usinas de potência a vapor. Embora o primeiro seja mais conhecido de todo mundo, tem alguns pormenores que podem tornar a explicação mais complexa, já que os gases de combustão são expelidos para fora do motor e então não temos um ciclo termodinâmico fechadinho (o fluido de trabalho é a todo momento renovado). Por isso vou dedicar algumas linhas a descrever as usinas termoelétricas, ok?

Figura 2 – Esquema de uma termoelétrica com destaque para o ciclo de funcionamento em vermelho. Adaptado de Moran & Shapiro (2009)

Nessas usinas temos uma caldeira que irá funcionar como uma espécie de panela gigante, esquentando a água em seu interior até que a mesma se transforme em vapor. Em seguida, o vapor atinge a turbina, causando a rotação do seu eixo acoplado a um gerador elétrico. Esse vapor perde um pouco de sua energia e ao chegar no condensador, retorna ao estado líquido novamente uma vez que o calor é rejeitado para o meio externo. Daí a água é empurrada com a ajuda de uma bomba até a entrada da caldeira novamente, onde o ciclo é reiniciado. O trabalho líquido responsável por acionar o eixo da turbina é dado pela diferença entre os calores que entram (na caldeira) e saem (no condensador).

Portanto, agora que você já viu um exemplo concreto, fica mais fácil compreender o que é uma máquina térmica. Bem, este dispositivo opera de modo cíclico (ou fechado) entre dois ambientes: uma fonte de calor e um sumidouro para poder gerar trabalho, conforme pode ser visto na figura abaixo. Se você é um pagador de boletos da vida como eu, deve estar pensando que energia é algo bem caro e ao melhor examinar o esquema pode estar se questionando: oras, que coisa tola jogar fora esse calor no condensador. Não é melhor tirar ele?

Figura 3 – Esquema de uma máquina térmica. Th e Tc representam, respectivamente, a fonte de elevada temperatura e o sumidouro a baixa temperatura. W é o trabalho líquido devido `diferença entre os calores recebido (Qh) e rejeitado (Qc). Fonte: P.wormer / CC BY-SA

Acontece que ao removermos o condensador do ciclo, ele deixa de operar. Imagine que a fonte que aquece a caldeira esteja a 500°C e transferiu uma certa quantidade de calor para a água que estava a 30 °C na caldeira. A água se elevou a 450°C, passou pela turbina e agora está a 420°C.  Sem o condensador, queremos agora transferir uma parte do calor que ainda existe no vapor a 420°C para a fonte de 500° C. Porém sabemos intuitivamente e experimentalmente que a transferência de calor espontânea sempre ocorre de um meio de temperatura mais elevada para um com temperatura mais baixa. E por isso o ciclo deixou de funcionar.

E agora que eu exauri o seu cérebro (não desista, está quase terminando) com essas explicações nem tão fáceis de digerir de primeira, fica mais claro de compreender o motivo pelo qual os moto-perpétuos são mero engodo sem fundamento científico. Máquinas reais sempre apresentarão uma perda de energia decorrente tanto do atrito entre as partes móveis entre si quanto da resistência do ar. Por isso não dá para criar um PMM1 (perpetual-motion machine of the first kind), pois não dá parar criar ou destruir energia, somente transformá-la em outro tipo. Já no caso dos PMM2, deixar de rejeitar calor para o ambiente interromperá o ciclo. Conforme o enunciado de Kelvin-Planck para a 2º Lei da termodinâmica, “Nenhuma máquina térmica pode ter uma eficiência térmica de 100%”.

Por isso não há motivos para dar créditos a essas pessoas de “bom coração” que alegam ter em suas garagens dispositivos que solucionariam a crise energética mundial. Além da termodinâmica fornecer todo o arcabouço teórico que permite contestá-los, garanto que um exame físico de 3 a 5 minutos no equipamento seria o suficiente para identificar alguma gambiarra do mal.

Referências Bibliográficas: