Nesse ano, devido à presença do coronavírus, nunca se falou tanto em vacina e vacinação. Por esse motivo, o texto de hoje será referente ao objetivo da vacina, a conhecida Memória imunológica.

Primeiro, o que é memória imunológica?

Para ajudar a responder essa pergunta vou usar um trecho do livro Imunologia Celular e Molecular, ABBAS.

“A exposição do sistema imune a um antígeno estranho aumenta sua capacidade de responder novamente àquele antígeno”. Ou seja, “uma segunda exposição ou exposições subsequentes ao mesmo antígeno, chamadas de respostas imunes secundárias, são normalmente mais rápidas, de maior magnitude e, com frequência, quantitativamente diferentes da primeira resposta imune (ou primária) àquele antígeno”.

Bom, mas o que quer dizer esse trecho?

Basicamente, ao entrarmos em contato com um microrganismo pela primeira vez, ativamos nosso sistema imune, combatemos o microrganismo e alguns “soldados imunológicos” (células T, B) vão continuar presentes, mas com um aprendizado. Serão veteranos daquele combate e aprenderão com o inimigo, lembrarão do seu rosto (antígenos).

Esses veteranos de guerra vão passar o conhecimento para as futuras gerações, pelo processo de mitose (divisão celular) e diferenciação celular. Logo, criam células experientes a combater o microrganismo específico.

Esses novos soldados, os quais aprenderam sobre o inimigo e adquiriram uma memória, vão para lugares específicos do corpo, como o baço e linfonodos.

Como esse mecanismo – o de criação de uma memória imunológica – funciona em nosso organismo? Qual a relação com a vacina?

O nome do nosso personagem é Edward Jenner (1749-1823). Médico formando em Londres e nascido em um condado chamado Berkeley. Ele, por sua vez, tem toda relação com o surgimento da primeira vacina.

Claro que ele não tirou essa ideia do ar, mas foi influenciado por outros trabalhos científicos, os quais buscavam inocular a “doença” – nesse caso foi para o combate da varíola – para tentar a cura ou prevenir uma infecção mais grave. Uma dessas influências foi a escritora inglesa Mary Wortley Montagu (1689-1762), pois ela conheceu essa técnica no Império Otomano e influenciou o “andar da carruagem” para o desenvolvimento das vacinas.

Além disso, Mary Montagu publicou um artigo sobre a inoculação e como esse método foi utilizado na Inglaterra. Mas, como a oposição a novas ideias e  novos métodos é forte, usaram argumentos não científico, sexista e racista para desqualificar essa técnica. Porém, tudo indica que esse artigo pode ter influenciado, além de Edward Jenner, também Louis Pasteur e Robert Koch em suas pesquisas.

Vale lembrar que Jenner não fora um gênio, mas se utilizou de outras influências, inclusive de Mary Montagu, para guiar seus experimentos. Portanto, baseado nisso, Jenner propôs que a vacina poderia prevenir doenças infecciosas.

Em 1789 já se conhecia a varíola, e ela ocorria em vacas (“versão mais leve da doença”) e em humanos. Essas vacas apresentavam algumas feridas iguais às em humanos, quando apresentavam varíola. Logo, esse fato chamou a atenção do médico. Depois de anos de pesquisa, já em 1796, Jenner resolveu seguir um conhecimento popular que era conhecido à época: mulheres que ordenhavam vacas não contraiam varíola humana (ou contraiam uma forma mais leve).

Com essa ideia, para iniciar os testes da sua hipótese, usara seu filho de oito anos para o experimento. Assim, se utilizou da técnica de inoculação vista por Mary Montagu em seu filho. Para isso, Jenner coletou material das feridas presentes nas vacas e colocou em contato com o sangue do filho através de arranhões provocados pelo médico.

Após semanas, ao entrar em contato com a varíola humana, o filho de Jenner passou ileso à infecção. O que não se sabia à época é que essa proteção se deve às células de memória e a semelhança entre os tipos de varíola. Logo, criou-se um princípio para a vacina. Claro que isso não provou nada para a comunidade cientifica, por isso mais experimentos foram realizados. Mas, para nós, deu um ponta pé para o estudo do sistema imune, principalmente do desenvolvimento de células de memória.

E agora?

Depois de alguns séculos chegamos em 2020 e uma corrida para o desenvolvimento de vacina. Pois, agora se entende muito mais do funcionamento destas do que antes (apesar de muitas pessoas não acreditarem), e que ela já salvou muitas vidas ao longo dos anos.

Hoje, depois de muita pesquisa, sabe-se que existem vários tipos de células de memória no sistema imunológico, tais como: Célula T central de memória (Tcm), célula T efetora de memória (Tem), Célula de memória tecidual residente (Trm), Célula T regulador de memória (mTreg), Célula T de memória com propriedades semelhantes à célula tronco (Tscm), dentre outras.

Muitos fatores podem influenciar essa memória, mas uma imagem que exemplifica bem é a encontrada no livro ABBAS.

Figura 01: Expansão clonal das células T e o desenvolvimento de células de memória.

Agora, voltando ao nosso exército de defesa, após os soldados se distribuírem nos mais diversos locais do corpo, eles ficam de vigília esperando para entrar em combate. Contudo, como toda a memória, podemos ser enganados.

Imagine o vírus da gripe. Já se perguntou o motivo de tomar todo ano uma vacina diferente para a gripe?

Digamos que o vírus da gripe entrou em contato com você em janeiro de 2019, você acabou tendo alguns sintomas leves, tais como febre baixa, dor no corpo e coriza. Esse vírus foi identificado como uma “bola azul”, todo o seu sistema imunológico, após combater esse vírus, conhecido em todos os cartazes como “bola azul”, vai combater se ele aparecer novamente.

Figura 02: Vírus “bola azul”

 

Após 1 mês e o famoso “bola azul” reaparece em seu corpo, mas você nem percebe, suas células de memória estão preparadas, o contra-ataque é rápido e eficaz. Além disso, cada vez que “bola azul” entra em seu corpo, a memória se amplifica e fica cada vez melhor.

Contudo, “bola azul” não é mais o mesmo, a vida é difícil, vários humanos o expulsam rapidamente do organismo. Triste fim para “bola azul”?

Mas é claro que não.

Agora “bola azul” vai passar em uma loja de disfarces e compra um item, um disfarce (sofre mutações) para “desaparecer” aos olhos do sistema imunológico de memória.

Novamente, chega janeiro de 2020 e “bola azul” repaginado entra em cena. O sistema imunológico olha desconfiado, uma leve lembrança, mas deixa a “bola azul com bigode” passar, pois elementos (antígenos) essenciais estão diferentes. Causando, novamente, aqueles sintomas da gripe.

Figura 03: Vírus “bola azul com bigode”

 

Agora, outro processo se inicia, novas células de memória são criadas, e se a “bola azul com bigode” entrar em seu corpo novamente, o sistema imune já está pronto. Contudo, se você se vacinar para o próximo vírus, que sofreu outra mutação e se transformou no “bola azul com sobrancelha”, seu sistema imune estará pronto para o combate e com um cartaz na mão com: PROCURA-SE.

Agora pode me perguntar: e as células de memória contra “bola azul”? Essas células apresentam uma sobrevida longa, que pode variar para cada microrganismo, mas se não tiver mais estímulo (nosso corpo não entrar mais em contato), vamos simplesmente esquecer e as células de memória vão morrer. Triste. Por isso algumas vacinas, como tétano, precisam ser renovadas a cada período de 10 anos.

 

Se ficou interessado em conhecer um pouco mais sobre o sistema imunológico, deixe seu comentário e faça uma pergunta ou sugira um próximo texto. Até a próxima.

 

BIBLIOGRAFIA

 

Abbas, AK., et al. Imunologia celular e molecular. 9. Ed Rio de Janeiro, Elsevier, 2019.

Ratajzak, W. et al. Immunological memory cells. Central European Journal of Immunology. 2018.

Durães, FAA., et al. Edward Jenner e a primeira vacina: Estudo do discurso expositivo adotado em um museu de ciência. Khronos, Revista de história da ciência. 2019.

Extra:

Scicast sobre Covid-19 e vacinas