Em toda aventura clássica baseado no Herói de Mil Faces de Joseph Campbell temos a figura do mentor que está lá para guiar o herói e no fim acaba morrendo. A Física tem sua própria versão da jornada do herói, mas nessa aventura o mentor é o herói. Um físico lendário, nobelista, admirado de por muitos, odiado por outros, divulgador científico e herói nacional na Rússia… Sim, tinha que ser na Rússia.

Talvez você não esteja familiarizado com esse nome. Não sei o motivo, mas Lev Landau não é muito conhecido fora do círculo da Física. Sabe quando você houve falar de nomes conhecidos como John von Neumann, Max Born, Werner Heisenberg, Wolfgang Pauli, Ernest Rutherford e Niels Bohr? De alguma maneira Landau estava lá participando das grandes descobertas em torno desses nomes.

Lev Landau

O generalista

É muito comum físicos serem altamente treinados na sua grande área de pesquisa, serem ainda mais especialistas em um pequeno tema que envolve sua pesquisa e serem de certa maneira “ignorantes” em outras grandes áreas. Isso é compreenssível devido ao tamanho de conhecimento que a humanidade já construiu em cada área. Se um físico hoje quisesse compreender todas as grandes áreas ele provavelmente gastaria tanto tempo estudando que nem conseguiria fazer seu trabalho e acabaria perdendo as verbas para sua pesquisa por não publicar seus artigos.

Lev Landau era um desses caras generalistas, ele conhecia muito sobre praticamente tudo que envolvia Física, Química e Matemática. Ele iniciou seus estudos na faculdade em 1922, com 14 anos de idade, nos departamentos de Física e Matemática e no de Química. Colaborou para a ciência até 1962 quando um acidente de carro o deixou muito debilitado.

Tudo bem que nessa época a quantidade de conhecimento adquirida pela humanidade era bem menor do que hoje, mas esse cara foi fundo em diversas áreas muito distintas, da mecânica dos fluídos à teoria quântica de campos. Ele formulou uma teoria termodinâmica geral para transições de fase de segunda ordem, construiu uma teoria completa para fluidos quânticos em baixas temperaturas e produziu uma grande quantidade de artigos em física da matéria condensada.

Se isso não parece impressionante, saliento que pouco se sabia sobre estas áreas. Ele ajudou a fundamentar vários aspectos do que chamamos hoje de física moderna.

Em 1962 ele foi laureado com o Nobel de Física por seu trabalho pioneiro em matéria condensada e principalmente em hélio líquido.

O Escritor

Usualmente a primeira vez que um estudante de física houve falar em Lev Landau é através de seu trabalho escrevendo livros para o ensino de Física. Não há, na minha opinião, uma coleção de livros de Física mais completa, profunda, difícil e matematicamente acurada do que a série de livros Curso de Física Teórica iniciada por Landau com seu ex-aluno Evgeny Lifshitz.

A coleção é composta por 10 volumes:

  1. Mecânica
  2. Teoria Clássica de Campos
  3. Mecânica Quântica: Teoria Não-Relativística
  4. Teoria Quântica Relativística (passou a se chamar Eletrodinâmica Quântica a partir da segunda edição)
  5. Física Estatística, parte 1
  6. Mecânica dos Fluidos
  7. Teoria da Elasticidade
  8. Eletrodinâmica dos Meios Contínuos
  9. Física Estatística, parte 2
  10. Cinética Física

Os nomes não refletem toda a complexidade dos livros. Eles podem ser usados por estudantes de mestrado e doutorado em Matemática, Física e Química e todos inevitavelmente vão passar por estados de frustração, ódio, compreensão, entusiasmo e felicidade extrema ao conseguir entender um único tópico.

Sabe aquela famosa frase usada em muitos livros “Disso é fácil concluir que:” e você fica chocado por não fazer a mínima ideia de como poderia concluir aquilo? Não sei se é herança de Landau, mas você encontra esse tipo de frase o tempo todo nesses livros.

Certa vez conversando com uma amiga russa, ela me contou que todo russo sabe quem foi Lev Landau e eles ainda tem algumas piadas envolvendo ele. Ela me contou a seguinte piada:

Lifshitz: “Landau, temos um problema. Perdemos aquelas 20 páginas usdas para provar aquele novo teorema que vamos colocar no próximo livro. O que vamos fazer?”
Landau: “Vamos fazer o de sempre, colocamos o teorema e dizemos que é tão simples de provar que nem vamos colocar no livro”.

Tenho certeza que Fermat ficaria orgulhoso disso.

Minha experiência pessoal envolve muito o volume 2 da coleção. Nele você encontra mecânica relativística, teoria clássica de campos, relatividade especial, eletromagnetismo e relatividade geral. Tudo isso em um volume e com o exato rigor matemático necessário.

De todos os livros que usei para estudar relatividade geral, o livro de Landau foi o que mais me abriu a cabeça e também aquele em que fiquei mais tempo em cima. Gostaria de compartilhar uma imagem dele cheio de papeis dentro e com muitas anotações das demonstrações “fáceis demais de demonstrar para estarem ali”. Infelizmente meu volume não está em minhas mãos agora.

O Mentor

Essa é a minha faceta favorita de Landau e a parte mais cheia de momentos absurdos demais para serem verdade. Lembre-se que estamos falando de um físico russo.

Ao longo da sua carreira Landau tinha um método bem peculiar para escolher as pessoas que seriam orientadas por ele. Aconselho você ler o livro de Leonard Susskind, Theoretical Minimum (Mínimo Terórico). O início do primeiro volume, assim como o título da série de livros, é referência a Landau.

O termo mínimo teórico se trata de uma quantidade de conhecimento sobre física que Landau julgava ser o mínimo necessário para que ele cogitasse orientar um candidato. É claro que o mínimo teórico dele era o equivalente a uma vida de estudos para uma pessoa normal.

Talvez seja esse o motivo de Landau ter orientado apenas 9 pessoas em sua carreira e todos terem atingidos feitos impressionantes em suas vidas.

A parte mais cinematográfica disso tudo era como uma pessoa era avaliada nesse mínimo teórico. Landau fazia o candidato passar por nove provas, sendo cada uma focada em uma diferente área da Física. Elas eram compostas de um problema assustadoramente díficil e várias pessoas estudavam anos se preparando para isso. Neste texto o cientista Boris L. Ioffe conta como foi sua experiência.

A primeira prova já é um bom exemplo. Boris perseguiu Landau por muito tempo até que este lhe concedeu uma chance de mostrar seu talento. Boris foi chamado na casa de Landau certo dia e ao chegar lá foi levado até um cômodo da casa em que a primeira prova o esperava sobre a mesa. Ele foi então deixado sozinho lá. De hora em hora o físico aparecia e olhava por cima dos ombros do estudante. Muitas vezes nesse momento o candidato já era mandado embora e nunca mais poderia tentar os testes.

No caso de Boris, Landau aparecia e balbuciava algo. Se não demonstrava raiva era um indicativo de que a resolução seguia um bom caminho. Depois de algumas horas Landau se irritou e mostrou que Boris nunca chegaria numa solução correta daquela maneira. O estudante tomou coragem e explicou seu ponto e ficou surpreso ao perceber que havia resolvido o problema de uma maneira que Landau desconhecia.

Assim, Boris foi convidado a ficar para o jantar e iniciou seu caminho para ser aceito por Landau.

Fala sério, eu assistiria esse filme fácil.

O humor afiado

Para terminar esse texto acho justo falar um pouco mais sobre a personalidade deste homem. Há várias passagens famosas sobre Landau e vou citar as minhas favoritas. Os fãs de Feynman vão gostar.

Havia um físico no departamento de Física em que Landau trabalhou certa vez que tinha muitas publicações, a maioria delas envolvia plágio. Certo dia ele recebeu uma carta dizendo que ele havia sido indicado ao Nobel e por isso deveria preparar duas cópias de todos os seus artigos científicos (com uma máquina de escrever, pois não havia computadores naquela época). Estas cópias deveriam ser entregues ao chefe do departamento de Física Teórica (Landau) até o dia primeiro de abril (aparentemente ele não estranhou a data). Este cientista passou muito tempo digitando todos os seus artigos e nesse meio tempo acabou ficando arrogante e parando de cumprimentar seus colegas. Ao terminar o trabalho levou a imensa quantidade de papel até a mesa de Landau que prontamente perguntou: “Você realmente acha que o prêmio Nobel poderia ser dado a esse tipo de lixo?”

Após o acidente de carro Landau nunca conseguiu se recuperar totalmente e voltar a trabalhar. Certa vez um psiquiatra estava tentando identificar possíveis lesões cerebrais em Landau. O diálogo que se seguiu foi:

Médico: “Por favor, desenhe um círculo.”
Landau desenhou uma cruz.
Médico: “Por favor, desenhe uma cruz.”
Landau desenhou um círculo.
Médico: “Por que você não faz o que estou pedindo?”
Landau: “Se eu fizer você vai achar que eu tenho algum problema mental.”

E para finalizar, você vai lembrar do Sheldon. Landau sempre que possível fazia piadas com o físico Yakov Zeldovich. Após o acidente ele disse que seu cérebro já não era o mesmo e temia que nunca mais poderia fazer Física como Landau, mas que talvez ainda conseguiria fazer física como Zeldovich.

Um homem a ser lembrado

Bom, o texto ficou maior do que eu imaginava, mas acho que esse é um desses cientistas que todos deveriam conhecer e acredito que ele merece ser colocado ao lado dos grandes famosos, seja pela polêmica personalidade ou pela genialidade.

Como eu disse, eu assistiria fácil um filme sobre sua vida. Acredito que se fosse americano já teríamos essa obra.