O ano é 2023. Vivemos a sociedade da informação, na qual a maior arma de todos os tempos é (ironicamente) a desinformação, um meio de bombardear pessoas com notícias falsas ou enganosas, com conteúdo forjado, fora de contexto ou, ainda, manipulado, para nos levar a conclusões diferentes do que efetivamente se apura.

Nisso, entra o assunto do momento, a Demissão Sem Justa Causa.

Recentemente, diversos grupos, especialmente alinhados às políticas de extrema direita no Brasil e ao antigo governo ultraconservador e (dito) liberal, têm se manifestado de forma alarmista contra um julgamento a ser retomado no Supremo Tribunal Federal no tocante ao tema. Em suas redes sociais, os deputados estaduais Gilberto Gomes da Silva e Bruno Souza e o deputado federal Kim Kataguiri apresentaram postagens contrária ao tema. Veja-se, a exemplo:

Reprodução de rede social Twitter. Postagem do perfil do Deputado Kim Kataguiri alertando sobre possibilidade de STF proibir demissão sem justa causa. Disponível em: <https://twitter.com/KimKataguiri/status/1610313211382743042>. Acesso em 12 jan. 2023.

Contudo, será que o STF malvadão quer mesmo acabar com a livre iniciativa e intervir nas empresas? Evidentemente que não.

 

Origem da controvérsia

Todo o conflito que temos hoje teve início em 1996, ainda na primeira gestão presidencial de Fernando Henrique Cardoso.

FHC foi um dos mais conhecidos políticos do Partido Social Democrata do Brasil, o PSDB, que representava a imagem da Direita no país. Uma das principais bandeiras partidárias era, inclusive, o liberalismo econômico e social. Os dois mandatos de FHC, cabe dizer, foram marcados por inúmeras privatizações de empresas estatais, especialmente no setor de telecomunicações, com a entrada no Brasil de empresas como Telefonica, atual VIVO, por exemplo.

Apesar disso, o governo FHC teve preocupações com políticas sociais, tais quais a criação de projetos de auxílio e bolsas populares, que foram posteriormente unificados pelo governo Lula no Bolsa Família. O lema da campanha que levou à eleição de FHC, inclusive, foi a chamada Campanha Mão Aberta, que tinha como análise 5 prioridades, dentre elas o emprego.

Se quiser saber mais sobre a campanha do FHC, há uma antiga matéria, preservada do Internet Archive, que trata do tema, aqui (link).

Foi durante esse período que se discutiu a ratificação de uma importante norma da Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma das agências internas da Organização das Nações Unidas, da qual o Brasil é membro.

Em 1982, a OIT expediu a Convenção de nº 158 (link), a qual, dentre as suas disposições, traz as seguintes determinações:

Art. 4 — Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço.

Art. 7 — Não deverá ser terminada a relação de trabalho de um trabalhador por motivo relacionados com seu comportamento ou seu desempenho antes de se dar ao mesmo a possibilidade de se defender das acusações feitas contra ele, a menos que não seja possível pedir ao empregador, razoavelmente, que lhe conceda essa possibilidade.

De acordo com o artigo 1º da Convenção, essa só seria aplicada se fosse incorporada à legislação dos países, o que o Brasil fez por meio do Decreto Legislativo nº 68/1992 (link), aprovado pelo Congresso Nacional.

O governo de Fernando Henrique, no entanto, se opôs à aceitação da referida norma e, em dezembro de 1996, editou o Decreto nº 2.100 (link), em ato privativo do Presidente da República, pelo qual editou que, a partir de novembro de 1997, deixaria de fazer vigorar no Brasil a Convenção nº 158 da OIT. Observe-se o curto texto do Decreto:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, torna público que deixará de vigorar para o Brasil, a partir de 20 de novembro de 1997, a Convenção da OIT nº 158, relativa ao Término da Relação de Trabalho por Iniciativa do Empregador, adotada em Genebra, em 22 de junho de 1982, visto haver sido denunciada por Nota do Governo brasileiro à Organização Internacional do Trabalho, tendo sido a denúncia registrada, por esta última, a 20 de novembro de 1996.

Brasília, 20 de dezembro de 1996; 175º da Independência e 108º da República.

É importante mencionar que esse Decreto contrariou outro ato do próprio FHC, o Decreto nº 1.885, de abril de 1996 (link), ou seja, pouco meses antes do novo ato, que previa que “A Convenção número 158, da Organização Internacional do Trabalho, (…) deverá ser executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém.”.

Isso acabou por gerar um conflito interno com entidades de trabalhadores no Brasil e, em agosto de 1997, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) ingressou com uma Ação Direita de Inconstitucionalidade de nº 1.625 em face da Presidência (link), a qual discute a validade do Decreto presidencial que declarou a invalidade da norma internacional.

Em sentido contrário, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e outros sindicatos patronais ingressaram com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade de nº 39 (link), pedindo o reconhecimento de validade do Decreto presidencial.

 

A controvérsia em si

Como se pode observar das datas e do texto da Convenção, ela, de fato, alterou e limitou as possibilidades de demissão para três hipóteses:

  • Motivos econômicos: quando a empresa tiver problemas financeiros e, por isso, precisa reduzir gastos e cortar funcionários;
  • Motivos técnicos: quando, por exemplo, a função daquele empregado deixar de existir, ou quando a empresa, por alteração de estratégia de trabalho, deixar de atuar na área em que se exigia o funcionário;
  • Motivos de análise de desempenho: quando, analisando o comportamento e os resultados do empregado, a empresa entenda que esse não se adequa aos padrões esperados.

Vejam que as motivações descritas pela Convenção da OIT são bastante razoáveis e esperam um mínimo de justificação para a demissão. Em outras palavras, o empregado poderia continuar sendo dispensado caso não se adequasse ao esperado à função, somente impedindo demissões como, por exemplo, um chefe que não iria com a sua cara ou por falta de alinhamento ideológico.

A Convenção, aliás, chegou a ser aplicada no Brasil entre 1992 e 1997 sem que, com isso, se tenha feito, à época, o sensacionalismo que ora se faz sobre o assunto.

A bem da verdade, a dispensa “sem justa causa” apenas estaria sendo alterada para um critério de “dispensa motivada sem culpa do trabalhador”, o que permitiria discutir, com base no artigo 7º da Convenção, acima citado, que o trabalhador tivesse um mínimo direito de defesa contra um ato de demissão, evitando arbitrariedade.

O Decreto nº 2.100/1996, no entanto, trouxe, por um ato discricionário do então Presidente da República, uma revogação direta a um ato do Poder Legislativo, o citado acima Decreto Legislativo nº 68/1992. Ainda, criou conflitos com relação à validade das Convenções Internacionais.

De outra parte, a Constituição Federal de 1988 (link) prevê, no inciso I do artigo 7º, que a regulamentação contra demissões arbitrárias ou sem justa causa deveria ser regulamentada por Lei Complementar, um tipo de Lei especial que tem uma validade hierárquica muito maior que Leis comuns ou Decretos presidenciais (para saber mais sobre isso, recomendo ler um outro texto meu, aqui, ou, ainda, ouvir nosso SciCast de Poder Legislativo, aqui).

No caso, um ato conjunto do Congresso Nacional, tal qual o Decreto Legislativo que citei acima, seria suficiente para atender tal critério, ao menos em tese.

A discussão da citada acima Ação Direita de Inconstitucionalidade de nº 1.625 se funda no artigo 49, inciso I, da Constituição Federal, lembrando da competência do Congresso Nacional para a aplicação ou não de tratados, acordos e convenções internacionais no Brasil. E isso não poderia ser afastado por um simples decreto presidencial.

Se tiver interesse, você pode ler a Petição Inicial da ADIn nº 1.625 bem aqui (link).

 

E onde o STF entra nesse assunto?

Como qualquer processo judicial, o Poder Judiciário não age sozinho. Somente quando alguém pede algo é que qualquer órgão do Poder Judiciário vem decidir. Aliás, recomendo, para quem quiser saber mais do Poder Judiciário, vai ver nosso SciCast sobre isso, nesse link aqui.

O STF tem sido extremamente vagaroso na análise dessa controvérsia. A última vez que o tema, efetivamente, passou por uma discussão foi em 2016, na transição entre os governos Dilma e Temer (conforme essa notícia aqui).

Desde então, houve tentativa de marcação de julgamento nos anos que se seguiram, com diversos adiamentos e quase nenhuma decisão efetiva. Na verdade, parte dos votos e decisões feitas no processo foram de ministros que já não mais trabalham no Tribunal.

A questão é que, julgando esse assunto, o STF criará um precedente de extrema relevância não só em relação à norma trabalhista, mas também sobre o alcance dos poderes do Presidente da República em poder revogar, por ato unilateral, um ato que, teoricamente, seria privativo do Congresso Nacional, representado por todos os deputados e senadores e, em regra, com maior reflexo de representação dos interesses conjuntos da população.

Com certeza, por isso, o assunto é tão espinhoso, e demora tanto para ser resolvido, porque poderia servir de justificativa para dar superpoderes ao Presidente da República e geraria um conflito republicano entre os Poderes Executivo e Legislativo.

Não que justifique a morosidade, né?

 

Tá, mas e o meu emprego? Ou, ainda, e minha empresa?

Bom, com relação ao objeto em julgamento, é muito provável que tenhamos um meio termo, em que, na prática, as coisas não mudem muito de como estão.

Até 2016, tínhamos 6 votos favoráveis à inconstitucionalidade do Decreto nº 2.100/1996, declarando procedência total ou parcial do pedido. Votaram, à época, os falecidos Maurício Corrêa e Teori Zavascki, e os ora aposentados Ayres Britto, Nelson Jobim e Joaquim Barbosa. A única votante ainda em atividade é a ministra Rosa Weber. Nisso, ainda votariam os que ainda permanecem desde a época Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Lewandowski, e o ministro Kassio Nunes Marques, substituto de Celso de Mello, ministro à época.

Tendo em vista a tendência dos votos, é possível que seja declarada a inconstitucionalidade do Decreto presidencial. Porém, o que pode acontecer é que se declare que o assunto deva ser novamente submetido à análise do Congresso Nacional, para ratificar se afastaria ou voltaria a trazer à vigência a norma de limitação da demissão. Há, ainda, a possibilidade de um meio termo, em que o Congresso poderia gerar uma nova norma que modularia como essa limitação seria exercida.

Agora, mesmo que se aplique a Convenção nº 158 da OIT, isso não impede que o empregador analise o desempenho do trabalhador e o demita.

Lembrem-se que, como citado no artigo 7º da Convenção, está claro que existe a possibilidade de demissão por avaliação de desempenho. O que existiria, nesse caso, seria uma etapa administrativa e burocrática, em que seria aberto ao trabalhador discutir os argumentos de sua demissão.

Como disse, sairia de cena uma demissão sem justa causa para, apenas, se exigir uma justificativa, uma motivação, que não necessariamente configurasse a “justa causa”, a qual tem consequências mais drásticas contra o trabalhador, em decorrência de falta grave.

Isso, a meu ver (e aqui faço uma análise pessoal), não criaria qualquer limitação à Livre Iniciativa e não implicaria, de forma alguma, no STF malvadão tentando “mandar” na sua empresa. O que se faria é esperar do empregador uma mínima justificativa, concedendo ao trabalhador uma satisfação mínima, uma avaliação de motivos de seu desemprego. Isso, inclusive, seria benéfico, pois limitaria demissões arbitrárias, por exemplo, motivadas por atos de preconceito do superior contra seus subordinados (como sabemos que, infelizmente, ocorre contra etnias e sexualidades, por exemplo).

Então, muita calma nessa hora, gente! Não vamos cair em desesperos midiáticos ou narrativas extremistas. Mesmo com a entrada em vigor da norma da OIT, o mundo vai continuar girando e não haverá uma implosão das empresas ou simples desempregos em massa. O mesmo argumento era dito, antigamente, para licença maternidade, seguro-desemprego, auxílio-doença e auxílio-acidente, por exemplo. E também não vai impedir que um funcionário seja demitido se estiver agindo mal ou não esteja entregando o mínimo esperado, gerando um mar de funcionários improdutivos e intocáveis.

Cabe mencionar que, na lista de países que ratificaram a Convenção nº 158 da OIT estão Austrália, Finlândia, França, Portugal, Espanha e Suécia, todos que se encontram entre os 50 países melhores avaliados no Índice de Liberdade Econômica (lista em link). Assim, não será a modulação dos limites de demissão que irá, de uma hora para outra, destruir a Livre Iniciativa e a economia do Brasil.

Por fim, embora tenha me dedicado a ter sido claro aqui, gostaria de destacar que Direito Trabalhista não é minha área de formação profissional, e aceito todas as críticas que possam ser direcionadas ao meu parecer.

 

Na dúvida, como sempre, procure seu/sua advogado/a! =)

 

– Túlio Monegatto Tonheiro “


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