Você conhece o SUS? Mas tipo, conhece mesmo ou ele é só aquele colega distante que você cumprimenta por educação? Se você leu meu texto anterior aqui, sabe que quero transformar você e o SUS em grandes amigos. Então vamos a terceira parte dessa série? Hoje falando de um tema polêmico e, muitas vezes, mal compreendido: a humanização da saúde. Será que estamos precisando humanizar os humanos?

Lembram que no texto passado eu falei sobre a organização em rede do SUS? Esse tipo de modelo exige dos trabalhadores muita articulação e comunicação, mas nem sempre isso é possível, principalmente se levarmos em consideração dois grandes fatores: a rotatividade dos profissionais de saúde – em especial na Atenção Básica (AB), que é a ordenadora do cuidado – e a alta demanda na Rede de Urgências e Emergências de usuários crônicos que deveriam ser acompanhados na AB, como diabéticos e hipertensos.

Isso combinado à má gestão de recursos, feita muitas vezes sem conhecer a realidade dos serviços de saúde, à desvalorização dos trabalhadores e superlotação de serviços, contribui para um certo automatismo no cuidado. De tanto estarem em contextos estressantes e de precariedade, é comum que profissionais se “acostumem” às más condições e caiam em um certo fatalismo bem desmotivador.

Exemplo ilustrativo de desmotivação

Diálogo: “- Doutor, eu tô com falta de ar…”
” – Só? Pois esse hospital está com falta de leite, falta de médico, falta de medicamento, falta de verba…”

Duvida? Pensa assim, você tem uma geladeira antiga e bem barulhenta em casa. No começo isso incomodava bastante e você passava o dia inteiro percebendo o som, mas depois de um tempo só percebe o ruído quando alguma visita te pergunta como você aguenta uma geladeira assim.

Algo semelhante acontece nos nossos dispositivos de saúde e acabamos percebendo duas grandes situações diante dos desafios do SUS: ou os trabalhadores ficam imersos nas problemáticas, muitas vezes adoecendo, ou então acabam se distanciando disso e automatizando seu cuidado.

Foi pensando nisso que surgiu a Política Nacional de Humanização (PNH). A PNH vem como tentativa de resolver a fragmentação do trabalho, das redes e da comunicação entre as equipes, buscando romper com o burocratização e hierarquia rígida do SUS na prática. Para isso, entende que deve haver um maior investimento na qualificação profissional, de modo que este consiga compreender o indivíduo também na sua dimensão subjetiva e não apenas o entendimento do seu problema de saúde, o que muitas vezes pode gerar situações de conflito e desrespeito aos direitos dos usuários.

Mas a PNH vai ainda mais além, atentando a uma formação profissional inadequada ao contexto do SUS, distante do debate sobre as políticas públicas de saúde, muito centrada no automatismo “queixa-conduta”, ou seja, o paciente traz os sintomas e o profissional simplesmente exerce o protocolo padrão, com pouco ou nenhum vínculo com aquele usuário.

Logo da PNH

É uma proposta que, apesar de antiga, não é muito conhecida. A PNH foi criada em 2003 e, se pudermos resumi-la, seu objetivo principal é qualificar a gestão e a atenção na saúde pública. Mas por que não se fala tanto nessa política? Basicamente porque ela mexe com todo mundo envolvido no SUS, desde os gestores em todas as esferas (federal, estaduais e municipais), passando pelos trabalhadores da saúde até os próprios usuários. Isso mesmo, a PNH também fala da nossa responsabilidade enquanto pessoas que usam o sistema de saúde.

Seríamos nós desumanos? 

De acordo com os preceitos da PNH, a humanização no âmbito da saúde seria então o repensar de práticas tidas como desumanas na saúde pública. Até aqui já era meio óbvio, não é? Se liga que a inovação vem agora: essas práticas desumanizadas não vão ser entendidas como frutos do trabalho individual, mas sim como produções coletivas a partir de concepções e modos de desenvolver o trabalho.

Sem meias palavras, as atitudes desumanas não vão ser culpa de fulano que não é humanizado, mas sim de todo o coletivo que ali trabalha e precisa rever suas práticas. Mas, muito além de rever esses comportamentos problemáticos, a PNH tem como foco fornecer ferramentas para produzir novas atitudes em trabalhadores, gestores e usuários do SUS que sejam capazes de superar os desafios do trabalho cotidiano.

Antes disso, porém, é interessante a gente falar um pouco sobre os 3 princípios que regem a PNH porque são através deles que a gente vai entender a essência dessa política e tudo o que ela propõe em termos práticos. Os nomes são meio estranhos, mas não é nenhum bicho de sete cabeças:

  1. Indissociabilidade entre atenção e gestão dos processos de produção de saúde: sabe aquele negócio que a gente sempre escuta que “isso aí só com a gestão” ou “o problema é a gestão”? Então, a PNH vai apontar que cada trabalhador em maior ou menor grau gere seus processos de trabalho, suas equipes e tarefas – ou seja, não dá para colocar a culpa de tudo na gestão, o profissional também precisa se responsabilizar por aquilo que dele depende. Além disso, compreende que as decisões da gestão impactam diretamente nos processos de trabalho, devendo serem pensadas conjuntamente.

    Diálogo: “- Meu problema, doutor é digestão.”
    “- O nosso é parecido! É de gestão!”

Esse tópico rende muito debate por conta da grande rigidez e burocracia que existe no serviço público, mas vou colocar um exemplo bem prático e hipotético: a gestão decide que o posto de saúde vai passar por uma pintura, ficando fechado 2 dias e com todas as atividades suspensas nesse período.

Uma atitude de responsabilização da equipe seria, por exemplo, utilizar esses dias para realizar atendimentos domiciliares – que é responsabilidade da Estratégia Saúde da Família (eSF), além de evitar deixar a população sem assistência. E o que seria uma atitude “desumanizada” nesse caso? Simplesmente fechar o postinho e ninguém ir trabalhar.

  1. Transversalidade: a PNH deve estar presente em todos os espaços, políticas e programas do SUS, aumentando o grau de comunicação entre diferentes especialidades, colocando-as como equivalentes em graus de importância.
  2. Protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos: as decisões devem ser tomadas conjuntamente entre gestão, trabalhadores e usuários do SUS, reconhecendo o papel de cada um desses entes na atenção à saúde e respeitando sua autonomia – nesse último caso, mais voltados aos usuários, que nem sempre tem sua vontade respeitada pelas equipes de saúde.

Bom, agora que já vimos a certidão de nascimento da PNH e sua “personalidade”, que tal conversamos sobre os caminhos que ela segue e seu funcionamento na prática?

Diretrizes e dispositivos da Política Nacional de Humanização

Quando comecei a estudar sobre a PNH, isso me confundia demais! Nunca lembrava a diferença entre diretrizes e os dispositivos. Eis que um dia percebi que as primeiras são as direções que a política irá tomar, os seus caminhos mesmo, enquanto os dispositivos são ferramentas que ajudam a fazer a coisa toda acontecer no dia-a-dia.

Então, mais uma vez vamos ver um montão de nomes diferentões, mas não se assustem, são coisas simples e importantíssimas. Comecemos pelas diretrizes:

  1. Cogestão: estímulo ao diálogo entre gestão, trabalhadores e usuários para tomada de decisões, tornando o processo mais horizontal e atento as demandas reais;
  2. Clínica ampliada: o entendimento que o paciente é muito mais do que o seu diagnóstico, o que leva a uma mudança na forma de se realizar a clínica, de modo que o profissional não se sinta superior ao usuário, mas sim detentor de um saber diferente deste. Além disso, essa diretriz aponta a necessidade de equilíbrio entre danos e benefícios gerados pelos procedimentos de saúde;
  3. Acolhimento: a equipe é responsável pelo usuário desde a hora que chega ao serviço até quando ele sai, devendo ouvir não apenas sua queixa de saúde como também suas preocupações, orientando-o e garantindo um atendimento integral e resolutivo através da articulação com as demais redes;
  4. Ambiência: promover em conjunto um ambiente mais acolhedor não apenas em termos físicos, mas também relacionais, atentando tanto às tecnologias disponíveis, quanto aos componentes estéticos, sensíveis (luminosidade, ruído) e culturais;

    Como a ambiência transformou a sala de tomografia do Hospital Municipal Jesus, no Rio de Janeiro, em algo mais amigável às crianças.

  5. Valorização do trabalho e do trabalhador: tanto em termos salariais e de condições de trabalho, como investindo na capacitação profissional;
  6. Garantia dos direitos dos usuários: como o acesso ao seu prontuário, informações sobre seu tratamento e medicamentos utilizados, escolher a equipe que acompanhará seu caso quando for possível, decidir realizar ou não o tratamento e o direito à visitação quando em regime de internamento;
  7. Incentivo a coletivos e redes: ou qualquer grupo de usuários que desejem acompanhar as decisões quanto à saúde, bem como reivindicar por melhorias no atendimento às peculiaridades de cada população (por exemplo, indígenas, populações ciganas, quilombolas, ribeirinhos, etc);
  8. Memória do SUS que funciona: estímulo ao registro e divulgação de ações exitosa no SUS, de modo a exibir midiaticamente não apenas suas dificuldades e falhas, mas também suas funcionalidades, inovações e avanços.

E na prática, como a banda toca? Tem bastante coisa e juro que tentei resumir ao máximo! Então vamos aos dispositivos:

Acolhimento com classificação de risco: um sistema de triagem no qual quem está com um problema mais grave é atendido primeiro. Alguns lugares usam cores nessa setorização.

Como funciona a classificação de risco com base no Protocolo de Manchester

– Grupo de Trabalho em Humanização (GTH) e Câmara Técnica de Humanização (CTH): são espaços de debate das situações vividas no cotidiano dos serviços e de como propor mudanças em prol da humanização. São abertos a participação de gestores, trabalhadores e usuários do SUS. Inclusive, eu faço parte do GTH da cidade onde moro e no mês de julho realizamos uma oficina sobre a PNH para todos os trabalhadores da Atenção Básica e foi sensacional ouvir os seus relatos de como eles já tinham incorporado a humanização em suas práticas e nem tinham percebido!

– Projeto Terapêutico Singular (PTS), Projeto de Saúde Coletiva (PTC): nada mais são do que o planejamento multiprofissional de ações em saúde feito de acordo com a população ou usuário atendido e suas necessidades.

– Equipe de referência e apoio matricial: quem me ouviu falando sobre meu estágio no Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) sabe bem o que é isso. De modo geral, é a comunicação entre a equipe que está cuidando daquele usuário no momento e especialistas ou profissionais que acompanham esse paciente de modo contínuo.

– Sistemas de escuta qualificada: para usuários e trabalhadores da saúde. São as ouvidorias, grupos focais, gerência de porta aberta e pesquisas de satisfação que buscam entender os pontos fortes e fracos de determinado serviço.

Ouvidoria do SUS para reclamações, elogios e sugestões dos usuários.

– Visita aberta e direito à acompanhante: crianças, idosos, pessoas com deficiência e gestantes tem direito à acompanhante durante internação e tratamento. Porém, toda e qualquer pessoa tem direito a receber visitantes, que são seu contato com o mundo externo ao hospital. Dessa forma a visita aberta é ousada propondo o aumento do tempo destinado a isso para até 10 horas diárias (tendo em vista que grupos não prioritários não possuem direito a acompanhante).

– Construção coletiva da ambiência: projetos de melhoria dos ambientes físicos dos estabelecimentos de saúde, como a inclusão de uma brinquedoteca com uma monitora ou monitor em um hospital com alta incidência de crianças, por exemplo.

Setor de oncologia infantil do Hospital Márcio Cunha, em MG.

– Projeto de Acolhimento do Familiar/Cuidador: oferecer suporte e cuidados a familiares e cuidadores de pessoas em situação de leito ou com graves condições de saúde que impactam diretamente no bem estar dos familiares e cuidadores, como idosos com doenças neurodegenerativas ou pacientes terminais.

– Programa de Formação em Saúde do Trabalhador (PFST) e Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP): espaços de formação baseados no diálogo e no cotidiano de trabalho no SUS.

– Projeto Memória do SUS que dá certo: espaços como a Rede Humaniza SUS, Comunidade de práticas e demais espaços de discussão e divulgação de ações inovadoras e exitosas em saúde.

A RHS é uma espécie de rede social/fórum dos profissionais do SUS, para troca de experiências.

O quê esperar da humanização na saúde pública?

De acordo com a PNH, são 4 marcas esperadas: redução da filas e maior resolutividade dos serviços; todo paciente deverá saber quem são os responsáveis pela atenção à sua saúde; as instituições de saúde deverão prestar informações aos usuários, permitindo visitas e acompanhantes de acordo com a escolha do usuário, respeitando o Código dos Usuários do SUS; e a garantia da promoção de educação permanente aos trabalhadores, bem como da participação destes nos processos de gestão. São metas bem audaciosas, não é?

E, se o SUS ainda é uma reforma em andamento, o que dizer da Política Nacional de Humanização, não é mesmo? Ela possui alguns eixos de trabalho que servem de auxílio a sua implementação:

  1. Instituições: estímulo à inclusão da PNH nos Planos Nacional, estaduais e municipais de saúde, com pactuação dos Conselhos de Saúde correspondentes;
  2. Gestão do trabalho: participação dos trabalhadores nos processos de discussão e decisão;
  3. Financiamento: destinação de recursos específicos voltados à programas de humanização, repassados fundo a fundo mediante pactuações firmadas entre os gestores;
  4. Atenção: ampliação do cuidado integral e incentivo a intersetorialidade das equipes;
  5. Educação permanente: além da presença da PNH nos fóruns e núcleos de educação permanente dos profissionais que já estão inseridos no SUS, propõe-se a inclusão da política como componente curricular dos cursos de graduação e pós-graduação em saúde;
  6. Informação/comunicação: utilização da mídia para ampliar o debate sobre o tema entre todos os atores envolvidos nos processos de produção de saúde;
  7. Gestão da PNH: realização de levantamentos e avaliações sistemáticas sobre as ações de humanização desenvolvidas, sua efetividade e a necessidade de novas estratégias baseadas nas peculiaridades do território.

Além desses eixos, foram formulados parâmetros que irão servir de avaliadores da implementação da PNH na AB, na Atenção Secundária, na Urgência e Emergência e na Atenção Especializada que vocês podem conferir nos links que estão aqui embaixo. Fiquem à vontade para comentar, compartilhar e tirar dúvidas! Ainda há muito o que melhorar, mas o SUS tem dado certo mesmo com tanta precarização e é isso que você vai acompanhar no meu próximo texto!

REFERÊNCIAS (é só clicar e você vai direto para o texto):

Caderno de textos – Cartilhas da Política Nacional de Humanização

Cadernos HumanizaSUS – Volume 1: Formação e intervenção

Política Nacional de Humanização – Documento base para trabalhadores e gestores do SUS

Política Nacional de Humanização (PNH) – Folheto informativo