Em textos passados foi abordada a problemática da alimentação junk food no Brasil, mas deixado em aberto para falar sobre a vertente que vem crescendo no país e que possui um público alvo oposto e que também precisa de uma discussão séria, principalmente por seus reflexos na saúde tanto corporal quanto psicológica. Hoje vamos falar sobre a cultura gastro-anômica, a vertente da cultura alimentar que veio ao país alinhada a um estilo de vida fitness (“ginástica” que reflete um estilo de vida saudável). Com este texto, espero que possamos refletir de forma mais responsável sobre as escolhas de dieta que fazemos em alguns momentos de nossa vida, mas não dizer que existe um estilo de vida mais certo do que outro, pois esta é uma responsabilidade de cada pessoa, certo?

A vertente cultural gastro-anômica surgiu por causa do aumento de fluxo de informações sobre o estilo de vida saudável e os malefícios da alimentação sem responsabilidade, bem como do sedentarismo, geralmente com ênfase no corpo e no seu completo desempenho das mais variadas formas, inclusive por meio de estímulos como os alimentos. Já pensou como ginastas e pessoas com dietas costumam tratar a alimentação de uma forma totalmente diferente do comum por seus amigos ou familiares? Pois é justamente disso que trata os estudos da gastro-anomia. O termo foi criado por Claude Fischler como um neologismo com a palavra gastronomia e anomia, que indica a completa ausência de conhecimento por parte das pessoas em virtude da quebra de tradições que antigamente davam algum sentido de ordem sobre os alimentos e seus efeitos [1]. Hoje em dia, para a visão popular, não tem como saber se algo faz mal ou não por meios tradicionais (o ovo hoje faz bem ou faz mal?  E amanhã?). A fragmentação de individualismos e de grupos sociais por processos de globalização tiveram o efeito indireto de aumentar a gastro-anomia das mais diferentes formas em todo o mundo. Por ser um fenômeno trans-cultural (surgiu ao mesmo tempo em mais de uma cultura) e da globalização, não se pode estimar onde e quando a tendência surgiu com mais força, porém o estilo de vida de quem realiza as atividades físicas é sempre acompanhado dos benefícios modernos da globalização, como se observa em países democráticos, livres, sem discriminação de gêneros e com estrutura o suficiente para a abertura de estabelecimentos comerciais como academias.

A modernidade nos apresenta um paradoxo interessante, nunca soubemos tanto sobre os efeitos dos alimentos no corpo e, da mesma forma, nunca tivemos tantos problemas relacionados a alimentação quanto nesta época (ignorância nem sempre é uma bênção, sempre bom lembrar). Informação em excesso, em vez de ajudar, parece atrapalhar na escolha de dietas e metas [1]. A forma como as pesquisas científicas trataram a gordura e o açúcar, hora como heróis, hora como vilões, reflete um pouco da desinformação que chega para a pessoa comum. Neste novo contexto, corpos flexíveis e magros, ou com músculos extremamente “inchados”, parecem representar o padrão de beleza mais aceito e, portanto, mais buscado das mais diferentes formas. A cultura gastro-anômica visa dar novo sentido as culinárias locais e globais não mais em seus efeitos hedônicos (de sabor), turísticos ou historiográficos, mas agora em seus efeitos na sua maior ferramenta de interação com o mundo, seu próprio corpo. Alimentos que antes eram aceitos por seu sabor, como a feijoada, o frango frito, a rabanada e a batata frita, agora são considerados pecaminosos e proibidos. A lightização foi um fenômeno industrial que refletiu este movimento. Com a diminuição da quantidade de calorias, gorduras, açúcar e sal, alimentos antes considerados pecaminosos são mais aceitos por uma grande parcela dos fitness, que busca alimentos “puros” e “leves” para a comida, ricos em fibras, ômega 6, 3, 9, vitaminas hidro e lipossolúveis, ausência de glúten e macrominerais, com a captura de jargões técnico-científicos para justificar as mudanças estéticas e comportamentais [5]. A ressignificação de preparos, como a retirada da gordura do porco da feijoada e de carne de segunda do barreado [2]; de alimentos, como a tapioca e os grãos integrais, são responsáveis por mudar o estilo de vida alimentar, mais adequado aos exercícios que são praticados pelas mesmas pessoas.

A alimentação neste novo contexto é vista como uma forma de aumentar os efeitos de exercícios e melhorias físicas. Na foto, a reportagem do Portalodia.com elucida sobre como a alimentação saudável combinada com exercício ajuda na perda de peso, ao mesmo tempo que condena dietas da moda [3].

A conotação quase religiosa de como o ginasta pode tratar seu corpo também é percebida por Lígia [4], para quem o culto ao corpo é visto como um reflexo do antropocentrismo moderno exacerbado. A tríade do corpo, o comer e a comida, como revela a autora, implica em discussões de desvios a norma, originando a anorexia ou a obesidade como sendo os estados mais “defeituosos”, por não retratarem o “corpo perfeito” (estado utópico sempre buscado no culto). A autora também reflete o como os novos paradigmas da segurança alimentar podem estar influenciando os novos comportamentos, pelo efeito de notícias como a gripe aviária, gripe suína e a monocultura transgênica e seus efeitos ambientais. O que fazer quando não temos garantia mínima da qualidade de nossos alimentos mais básicos?  A forma como alguns praticantes de vida saudável tentam mudar sua vida e de pessoas próximas (algumas vezes de maneira bem exagerada) pode, em vez de ajudar, atrapalhar no seu bem-estar, causando ansiedade, potencializando quadros de depressão, bulimia, disfunção renal, problema hormonal e outras psicopatologias, como bem relatado no livro da Lígia. Como uma religião messiânica, o fitness ganha pontos ao convencer alguém sobre a importância do seu estilo de vida e na condenação dos outros estilos de vida e alimentação.

Não se sabe quando a nova cultura alimentar estará em harmonia com a cultura local, em estado de hibridização cultural. Alguns autores reforçam a tese de que a tendência natural destes hábitos será a extinção ou submissão completa da gastronomia local pelos valores gastro-anômicos. Os extremismos representados por César Sabino são percebidos pela suplementação alimentar por frequentadores assíduos de academia [5], com a utilização de pílulas de creatina e albumina vendidas em lojas especializadas, no lugar de refeições comuns. A radicalidade é um aspecto visto tanto em academias de musculação intensiva, fitness e de dentro do grupo bodybuilder, com alguns representantes de grupo consumindo 9.000 kcal/dia e com taxas de adiposidade em 2% a 5%, enquanto uma pessoa comum tem uma dieta de calorias de 2.000 a 2.500 kcal/dia e uma taxa de adiposidade (gordura no corpo) em 18% para o sexo masculino. O autor ainda reforça a visão de culto demonstrada mais cedo, em que alimentos podem, segundo sua visão, serem considerados ‘sacros’ como a carne branca (aves e pescados) por não conter muita gordura, bem como gorduras e carnes ‘viscosas’ como a de porco são vistas como vilãs e impuras para o bom desempenho corporal, com comentários debochados como “torresmo” para os homens em sobrepeso que frequentam o espaço de academia, segundo a fonte.

Como diversos outros fenômenos da globalização, o principal espaço de propagação das ideias e discussões é a internet. A linguagem fitness tem aberto um espaço muito grande em diferentes tipos de mídias, criando um público voltado ao consumo da chamada ‘gastronomídia’, segundo Helena Jacob [6]. A autora ainda reforça os padrões nos quais os discursos tanto do corpo fitness, quanto da alimentação fitness podem se propagar pela mídia online (em especial as redes sociais). Geralmente as imagens contêm hashtags motivadoras (#foco, #força, #fé etc), fotos que mostram as refeições (apetitosas ou não, este ponto não faz diferença), fotos de antes e depois (quando bem percebidos as diferenças) e fotos sensuais, grande parte das vezes descontextualizadas e com poemas e frases soltas. É um cenário muito diferente das revistas com atrizes famosas de biquíni da década de 90, não é mesmo? O grupo é bem flexível quanto ao espaço de propagação, apesar da indústria da lightização não conseguir acompanhar as novas tendências de forma tão rápida. O uso de termos científicos nestes meios é incentivado para que o efeito da mensagem seja potencializado, mesmo que a informação passada esteja incompleta ou falsa.

Mudanças no padrão de vida e alimentar têm levado pessoas a experimentar dietas restritivas sem nenhum apoio profissional, baseado em um conhecimento de termos científicos muitas vezes errado e descontextualizado. Na foto, a reportagem do iBahia demonstra os prós e contras de dietas modernas como lowcarb, cetogênica e o jejum intermitente [7].

Claude Fischler, sociólogo que criou o termo gastro-anomia em 1979, nos diz em entrevista que o processo de individualização pelo qual perdemos a sintaxe que escrevemos as regras implícitas do ato de se alimentar têm gerado a perda de códigos complexos e elaborados pelos quais comunidades criaram história (comparação entre alimentação e linguagem é o que não falta na obra de Fischler). É como se o ato de se alimentar fosse uma espécie de linguagem pelo qual documentamos nossa história. Ao reduzirmos a alimentação apenas em seus níveis atômicos e de nutrientes, não conseguimos acompanhar o surgimento de códigos sobre maneiras a mesa, culinárias, regras sobre os pratos, o que pedir primeiro, o que pedir como prato principal, o que pedir como sobremesa, como comer, o que combina com o que, o que não combina, o que beber etc [8]. O excesso de informações é levantado novamente como a causa mais importante para psicopatologias, uma vez que um alimento, como o chocolate, ao mesmo tempo ocupa o papel de herói para alguma coisa e vilão maléfico para outra. A responsabilidade da pessoa sobre o que colocar na boca é a máxima deste movimento (já que, afinal, somos aquilo que comemos).

O equilíbrio entre os aspectos higienistas, identitários, hedonistas e estéticos precisam de mais atenção por cada pessoa em particular, para que não sejamos tão sugestionáveis com a propaganda gastro-anômica e saibamos nos comportar com a informação passada pelas mais diferentes formas na gastronomídia. Como saber reconhecer estes processos caóticos e desta forma saber o que preservar na nossa cultura gastronômica e alimentar? Bem, abordar estas estratégias pode ser uma boa ideia para os próximos textos! Por enquanto comente o que você achou desta redação e conte-nos sua impressão sobre o assunto, até a próxima!

 

Referências:

[1]: MEDEIROS, Michelle; GALENO, Alex. Looking at contemporary food: gastro-anomy and Botero’s bodies. Revista de Nutrição, v. 26, n. 4, p. 465-472, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-52732013000400008&script=sci_arttext>Acesso em: 2 jan. 2020;

[2]: ABREU, L. G. (Tata). Entrevista. Antonina, 18 de março de 2008. MP3, 0h08
min. Barreado: sabor, história e cultura no litoral paranaense, UFPR. Disponível em: < https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/25740> Acesso em: 22 dez. 2019;

[3]: SWAMY, Sandy. Alimentação saudável e exercícios podem ajudar na perda de peso: Nutricionista condena dietas da moda e muito restritivas, e defende a regularidade da prática de atividade física e do plano alimentar. 2020. Portalodia.com. Disponível em: <https://www.portalodia.com/noticias/piaui/alimentacao-saudavel-e-exercicios-podem-ajudar-na-perda-de-peso-373005.html>. Acesso em: 3 jan. 2020;

[4]: SANTOS, LAS. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no
mundo contemporâneo [online]. Salvador: EDUFBA, 2008. 330 p. ISBN 978-85-232-0503-4.
Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

[5]: Sabino, César; Luz, Madel T.; Carvalho, Maria Cláudia O fim da comida: suplementação alimentar e alimentação entre frequentadores assíduos de academias de musculação e fitness do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 17, núm. 2, abril-junho, 2010, pp. 343-356. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Brasil. Disponível em: < https://www.redalyc.org/pdf/3861/386138049005.pdf> Acesso em 5 jan. 2020;

[6]: JACOB, Helena. Redes sociais, mulheres e corpo: um estudo da linguagem fitness na rede social Instagram. Universidade Cásper Líbero. Revista Communicare: Dossiê Feminismo, São Paulo, v. 14, n. 1, p.88-105, jan. 2014. Disponível em: <https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2015/08/Redes-sociais-mulheres-e-corpo.pdf>. Acesso em: 3 jan. 2020.

[7]: Coutinho, M. Cetogênica, lowcarb ou jejum intermitente? Os prós e contras de cada dieta: descubra qual delas pode te ajudar a queimar os exageros do fim de ano. 2 jan. 2020. iBahia. Disponível em: <https://www.ibahia.com/saude/detalhe/noticia/cetogenica-lowcarb-ou-jejum-intermitente-os-pros-e-contras-de-cada-dieta/> Acesso em: 3 jan. 2020;

[8]: GOLDENBERG, Mirian. Cultura e gastro-anomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horizontes antropológicos, v. 17, n. 36, p. 235-256, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ha/v17n36/v17n36a10.pdf> Acesso em 3 jan. 2020.


Lênin Machado Lopes. Amante de cultura pop americana e japonesa, futuro cientista de alimentos que busca o equilíbrio na força entre a alimentação, a ciência dos alimentos e a saúde coletiva! Entusiasta científico, tenta manter a paixão pela parte boa do mundo sempre que possível.