A primeira publicação da escritora caribenha Jamaica Kincaid é o compilado de contos At the bottom of the river (1983). São dez contos que trazem temas intimamente relacionados às vivências da autora, intrincadas em sua identidade de mulher negra diaspórica.

Temos, como primeiro conto, o icônico “Girl”. Ele foi publicado pela primeira vez na revista The New Yorker, em 1978. Mesmo tendo sido escrito há quatro décadas, o conto continua atual tanto pela temática que aborda quanto pelas técnicas literárias de que faz uso. O conto de apenas uma página não possui nenhum ponto final. É escrito de maneira errática, direta, respirando por vírgulas e ponto-e-vírgulas e finalizando com um ponto de interrogação. É um conto não-linear, que quebra com as estruturas tradicionais de narrativa. “Girl” traz uma lista de obrigações que são impostas de mãe para filha; uma lista autoritária, machista, sufocante. São obrigações que toda menina e toda mulher já ouviram, muitas e muitas vezes, provavelmente da mesma forma austera que se apresenta no conto, vindas de todas as camadas da sociedade. No caso específico do conto de Kincaid, é da mãe que vem um conjunto de cobranças que só seriam destinadas a uma filha mulher, e jamais a um filho homem. A mãe, que também sente na pele o peso de ser mulher em uma sociedade machista, ao não refletir sobre os comportamentos a que foi sujeita, sujeita também a filha às mesmas agressões.

Segue trecho do conto:

(…) this is how you smile to someone you don’t like too much; this is how you smile to someone you don’t like at all; this is how you smile to someone you like completely; this is how you set a table for tea; this is how you set a table for dinner; this is how you set a table for dinner with an important guest; this is how you set a table for lunch; this is how you set a table for breakfast; this is how to behave in the presence of men who don’t know you very well, and this way they won’t recognize immediately the slut I have warned you against becoming (Kincaid, 1983, p. 4).[1]

Percebe-se aqui que há diferentes tipos de imposições: a primeira é em relação aos afazeres domésticos (arrumar a mesa para o chá, para o jantar, para o almoço…), histórica e culturalmente associados às mulheres como algo inato e de responsabilidade total delas. Há um enfoque no conto kincaidiano em relação às refeições, como se deve arrumar a mesa para cada uma delas, como arrumar a mesa para receber um convidado importante e para outras situações. Em outras partes do conto, há direções sobre como cozinhar tipos específicos de comida:

cook pumpkin fritters in very hot sweet oil”, “soak salt fish overnight before you cook it”, “this is how to make a bread pudding; this is how to make doukona; this is how to make pepper pot (Kincaid, 1983, p. 4).[2]

Instruções de plantio também são encontradas no conto, como no seguinte trecho:

(…) this is how you grow okra—far from the house, because okra tree harbors red ants; when you are growing dasheen, make sure it gets plenty of water or else it makes your throat itch when you are eating it (Kincaid, 1983, p. 4).[3]

Fica evidente, no conto “Girl”, que, para a mãe, é fundamental que a filha seja totalmente dedicada ao preparo das refeições; ao plantar, cozinhar e servir. Servir, principalmente. Aqui podemos levantar alguns questionamentos: a mãe acredita que a felicidade vem da vida doméstica? Ou que servir o seu homem é a coisa mais importante na vida de uma mulher? Ou ainda que a própria mulher é que se serve ao marido como se fosse uma refeição?

No final do conto, as últimas frases são também sobre o trabalho na cozinha:

always squeeze bread to make sure it’s fresh; but what if the baker won’t let me feel the bread?; you mean to say that after all you are really going to be the kind of woman who the baker won’t let near the bread? (Kincaid, 1983, p. 4-5).[4]

A tradição de frequentar a padaria todos os dias para comprar pães frescos, com todo o ritual de checar se os pães estão apropriados para o consumo, faz parte de uma rotina provinciana, das donas de casa respeitadas, valorosas, que são parte integrativa da sociedade em que vivem. É isso que a mãe almeja para a filha, que ela faça um bom casamento (um bom casamento nesse contexto parece significar estar com um homem de boas condições financeiras, ter uma boa casa, e ser a senhora dessa casa).

Para a mãe, parece haver poucas opções de vida para uma mulher: ficar solteira e, por isso, nunca ter a sua própria casa, nem nenhum tipo de bem material, tampouco respeito e validação na sociedade; se casar com um homem pobre ou cruel ou com qualquer outra característica que faça dele um mau marido; e, finalmente, fazer um bom casamento, que dentre essas poucas opções de vida, claramente é a mais interessante. Desse modo, a mãe estaria, na sua voz autoritária e machista, preparando a filha para o mundo real.

Ela repete e enfatiza as instruções para a lavagem de roupas:

Wash the white clothes on Monday and put them on the stone heap; wash the color clothes on Tuesday and put them on the clothesline to dry (Kincaid, 1983, p. 4).[5]

A obsessão com a limpeza das roupas, da casa e de si própria, além das instruções em relação ao preparo dos alimentos (do plantio até a mesa posta), formam um conjunto de imposições em relação a ser uma dona de casa exemplar, algo fundamental e primário para a sobrevivência de uma mulher como tal numa sociedade colonial, machista e opressora.

A segunda imposição é em relação aos comportamentos (como sorrir, para quem sorrir etc). Aqui há um tolhimento muito pesado, que é em relação ao modo como se sorri. O sorriso, a risada, a gargalhada, é algo espontâneo e natural, quase como uma impressão digital, uma marca própria, já que cada indivíduo tem uma maneira muito particular de se expressar. Tolher isso é uma faceta de violência bastante peculiar, uma necessidade de ajuste às normas da sociedade, em todos os níveis, até mesmo em relação ao sorriso, assim como outras formas de comportamento (como se sentar, como andar, como falar, em que tom de voz).

A terceira forma de imposição é como agir perante os homens, o que fazer e dizer (e o que não fazer ou dizer) para passar a impressão de ser uma mulher honrada, de valor, a tal da boa moça, mulher para casar, que se opõe à figura da “biscate”, colocada no próprio texto como a pior coisa que uma mulher pode ser. A repetição do termo slut no texto, que pode ser traduzido como biscate ou vadia, aparece como alerta: “this way they won’t recognize immediately the slut I have warned you against becoming” (Kincaid, 1983, p. 4).[6]

A mãe teme que a filha se torne essa biscate, e que não consiga um “bom” marido, ou seja, não consiga seu espaço na sociedade. Ela dá instruções à filha para que ela saiba com que tipo de homens deve ou não se relacionar.

Não há escapatória para o casamento. No mundo colonizado, machista e opressor, não só da Antígua descrita por Kincaid, mas de tantos outros lugares, é somente um o destino da mulher: se casar e ser dona de casa. Outras possibilidades, incluindo estudos e trabalho, ter uma carreira, investir nos seus potenciais e talentos, não aparecem como uma vida provável para uma mulher.

 


[1] Tradução nossa: é assim que você deve sorrir para alguém que você não gosta muito; é assim que você deve sorrir para alguém que você não gosta de jeito nenhum; é assim que você deve sorrir para alguém que você gosta completamente; é assim que você deve arrumar a mesa para o chá; é assim que você deve arrumar a mesa para o jantar; é assim que você deve arrumar a mesa para o jantar ao receber um convidado importante; é assim que você deve arrumar a mesa para o almoço; é assim que você deve arrumar a mesa para o café da manhã; é assim que você deve se comportar na presença de homens que você não conhece muito bem, assim eles não vão reconhecer imediatamente a biscate que eu avisei que você se tornaria

[2]Tradução nossa: Frite os bolinhos de abóbora em óleo bem quente, deixe o peixe marinando de um dia para o outro antes de prepará-lo, é assim que você faz pudim de pão; é assim que você faz doukona (prato típico caribenho, adocicado e apimentado, servido na folha de banana); é assim que você faz pepper pot (um tipo de sopa apimentada, um prato único, servido em caçarola)

[3] Tradução nossa: é assim que você cultiva quiabo – longe da casa, porque pés de quiabo trazem formigas vermelhas; quando você cultivar inhame-coco, se certifique de colocar bastante água ou de outra forma sua garganta vai coçar quando você for comê-lo

[4] Tradução nossa: Sempre aperte o pão para se certificar que está fresco; mas e se o padeiro não me deixar apertar o pão? Quer dizer que depois de tudo você ainda vai ser o tipo de mulher que o padeiro não deixa chegar perto do pão?

[5] Tradução nossa: Lave as roupas brancas na segunda e coloque-as na pedra para esfregar; lave as roupas coloridas na terça e coloque-as no varal para secar

[6] Tradução nossa: assim eles não vão reconhecer imediatamente a biscate que eu avisei que você se tornaria