Foi numa disciplina do Mestrado (faço Mestrado em Estudos Literários) com um nome um pouco assustador, que resgatei toda a minha paixão pela Billie Holiday. Mas demorei para chegar lá. A disciplina denominada Inespecificidade, Colagens e Deslocamentos na Arte e na Literatura me deu bastante dor de cabeça no começo. Fiz uma síntese crítica, primeira avaliação da disciplina, que fugiu totalmente do tema, penei, e não conseguia assimilar completamente o conceito de inespecificidade (que foi o primeiro que estudamos). A grosso modo, podemos pensar que são criações artísticas que não cabem em uma caixinha só, em uma definição específica de arte. Seria uma obra literária que não é nem prosa, nem poesia. Uma instalação que é escultura, pintura e apresentação musical; tudo isso junto, e ao mesmo tempo nada disso. Mas antes de cair em reducionismos baratos, vou contar como cheguei a algum entendimento sobre o tema. Corri para algo que já me era familiar: a música. E esse foi meu ponto de partida.

Devido à minha paixão pelo jazz (e consequente trabalho como artista dentro desse gênero musical) já conhecia a Billie Holiday. Aliás, morro de saudades dos tempos pré-pandemia em que fazia todo tipo de evento com a banda Zagaia Jazz, corajosos jazzísticos que vão contra a maré numa cidade em que só se vê e ouve sertanejo. Nada contra o estilo musical, mas pluralidade cultural é importante, e aqui no interior do Mato Grosso, talvez até um pouco mais que no resto do Brasil, peca-se nesse sentido.

Essa foi uma das últimas postagens que fiz cantando com eles; um clássico dela mesma, Billie Holiday. Um dos meus favoritos, inclusive: All of me.

Além dessa inspiração, também estava apaixonada pelo filme The United States vs Billie Holiday (achei justíssima a indicação de melhor atriz para Andra Day). Para quem ainda não assistiu, fica a dica:

A música Strange Fruit é uma das mais icônicas dela (talvez a mais forte) e foi num livro da área de Inespecificidade com o mesmo nome da canção que acabei me encontrando. O compilado teórico chamado Frutos estranhos (no plural) de Florencia Garramuño, foi o texto que mais me ajudou a compreender e a me entremear nos sentidos da inespecificidade nas artes.

Strange fruit era cantada com toda a beleza da força de Billie Holiday, sempre ao final de suas apresentações, com as luzes apagadas, um único singelo foco de luz na cantora, e todos no bar em silêncio por vários minutos antes da canção sequer começar.

“Southern trees bear a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swingin’ in the Southern breeze
Strange fruit hangin’ from the poplar trees”

Árvores do Sul carregam um fruto estranho

Sangue nas folhas e sangue até a raiz

Corpos negros balançando na brisa do Sul

Fruto estranho pendendo da árvore de poplar

(tradução minha)

Esse grito de socorro era cantado por Billie, uma canção de denúncia dos linchamentos ocorridos no pós abolição da escravidão, mesmo após o Renascimento do Harlem. Falei mais sobre esse movimento político-cultural em dois textos publicados aqui no Portal Deviante: O renascimento do Harlem: música, literatura e empoderamento negro parte 1 e parte 2

Cantar Strange fruit foi um ato político que custou a paz e a saúde da cantora. Ela sofreu perseguição policial, e foi presa devido ao seu vício em drogas (na época vício era crime, mas usaram essa premissa para calar a voz potente e acusativa de Billie).

As imagens que a letra dessa música nos traz são perturbadoras, tem ares de um pesadelo confuso que nos faz despertar num pulo. Vemos uma árvore, que normalmente nos traz a ideia de sombra, frescor, refúgio, flores e frutos dando vida ao lugar onde ela se encontra. No contraste disso, percebemos que essa mesma árvore dá frutos podres, estranhos, bizarros. É uma árvore que, ao invés de vida, anuncia a morte. Essa contradição, essa quebra de expectativa, nos causa desconforto, agonia, uma das sensações mais impactantes que a arte tem o poder de nos causar.

Bom, disso vou para a obra de Nuno Ramos, uma escultura também chamada Fruto estranho, descrita no livro teórico de Garramuño, mencionado acima. Uma árvore de galhos esbranquiçados, dando frutos que são, ao invés de alimentos coloridos e suculentos como esperaríamos, destroços de aviões, criações humanas que poluem nossa Terra. Junto a isso, o monitor que mostra a cena de um icônico filme de Bergman e dois contrabaixos gotejam da árvore. De fundo ouvimos Billie Holiday, sua voz arrastada, cada palavra bem pronunciada, a dor de cada vida negra perdida em cada nota proclamada por ela.

Infelizmente não tive a oportunidade de ver a instalação de Nuno pessoalmente, mas pelas imagens na internet pude sentir o mesmo desconforto que sentia ao ouvir a canção de Billie Holiday, a mesma sensação de que algo está fora do lugar, a mesma denúncia de uma sociedade que se destrói. Na canção, uma sociedade que mata indivíduos inocentes. Na arte de Nuno, uma sociedade que desrespeita a natureza, que joga seus destroços em qualquer lugar, que polui, sufoca, e também, mata.

Importante diferenciar aqui os conceitos de especificidade/inespecificidade, já que a canção, por mais que tenha cunho político-social forte, e imensa relevância histórica, é especificamente uma canção, ao passo que a arte de Nuno entrelaça “a heterogênea combinação de natureza, tecnologia, literatura e cinema”, retomando e se apropriando inclusive da canção aqui analisada, sendo assim um belo exemplo para entendermos como funciona o operador conceitual de inespecificidade. (Foi nesse ponto que comecei a respirar um pouco mais aliviada ao perceber que estava finalmente esclarecendo e internalizando esses conceitos).

A data de lançamento da arte de Nuno, 2010, nos exemplifica que realmente, como afirma Garramuño, “o recurso à inespecificidade nas artes tem sido usado de maneira mais sistemática e frequente na contemporaneidade”. De fato, foi preciso tempo para se ganhar maturidade e coragem, para se demonstrar vulnerabilidade, necessárias para se chegar ao conceito das formas breves de Roland Barthes (outro teórico importante na área). Barthes afirma que “essas formas breves parecem encontrar no afeto, no momento do páthos – mais do que em seu relato – o lugar no qual se cristaliza nelas alguma coisa como uma ansiedade”, razão por que Barthes o chama “the moment of truth”, a “verdade escancarada nas artes”.

É o afeto direto e sincero, o sofrimento íntimo de cada um, que ao ser colocado para fora, por meio de uma representação artística, traz assim a verdade que é o que faz da arte, arte. “O pessoal e subjetivo valem mais como índice de vulnerabilidade – de ‘uniqueness”, diria Cavarero (uma relevante pesquisadora italiana). Essa “uniqueness” (Charisma, uniqueness, nerve and talent, é tudo que um artista precisa, não é mesmo? ) é o que faz de uma criação artística algo realmente notável, precioso, único.

Para se chegar ao páthos, à uniqueness e à vulnerabilidade é preciso “estar sempre fora de si”, ou seja, estar “fora de um lugar ou de uma categoria próprios, únicos, fechados, prístinos ou contidos”. É essa a aposta no inespecífico, que “põe em crise o específico” e “redefine os modos de conceitualizar o potencial político da arte contemporânea”.

A própria ideia do específico, da categorização, da rigidez, vai contra a essência da arte, da liberdade que a mesma representa. É na releitura, na ressignificação, no novo olhar e nas novas perspectivas, que nos transformamos. É nesse quebrar-se e remendar-se que podemos encontrar e expor nossos frutos estranhos, e assim caminhar na direção de árvores mais frondosas e frutíferas.

Foi essa ruptura que fez da Billie Holiday uma artista completa, consciente da problemática do seu tempo, atuante, corajosa. Ela nunca se alienou, nunca se limitou. O que ela diria da obra inespecífica de Nuno Ramos? Acredito que no mínimo ela acharia interessante, ficaria curiosa, estaria disposta a se abrir a essa aposta no inespecífico, no contemporâneo, na liberdade artística pela qual ela tanto lutou. Em tempos de frutos estranhos, podres, perturbadores, que assolam a nossa sociedade, precisamos ser mais como Billie: alertas, acusatórios, destemidos e, por fim, livres.