Continuando de onde paramos no texto anterior, vamos entender como ocorre o mecanismo de clareamento dos cabelos!

Existem dois produtos diferentes que são comumente usados para clarear os cabelos, as tintas permanentes e os pós descolorantes. O interessante é que nos dois casos, o clareamento acontece pelo mesmo motivo: o reagente que é misturado a estes produtos: a água oxigenada!

Antes de entender o que a água oxigenada tem a ver com o clareamento do cabelo, vamos relembrar algumas coisas. A melanina é o pigmento que dá a cor aos nossos cabelos, pele e olhos, sendo que a presença dos diferentes tipos de melanina em diferentes proporções no córtex do fio é o que dá as diferentes colorações naturais. Você pode ler um pouco mais sobre como existem as diferentes cores naturais dos cabelos aqui.

Bom, não se sabe exatamente a estrutura das moléculas de melanina, pois devido à sua insolubilidade e baixa reatividade, é muito difícil conseguir isolar a molécula sem degradá-la ou mesmo livre de outras proteínas ligadas. O que se sabe é que os diferentes tipos de melanina são polímeros de alta massa molecular sendo que, geralmente, a melanina de pigmentação escura (eumelanina) se apresenta mais aglomerada formando grãos, enquanto a melanina de pigmentação clara (feomelanina) se mantém mais difundida pelo córtex do fio. Ainda, é muito provável que esses grãos de melanina dispersos pelo córtex do fio sejam ligados à queratina (proteína da qual o cabelo é formado) por resíduos de polipeptídeos (ou seja, pontas soltas da queratina).

Possível arranjo de uma parte da estrutura da eumelanina (melanina com pigmentos de marrom a preto). (Passe o mouse na imagem para amplia-la)

 

Observando seções do cabelo durante o clareamento num microscópio, entende-se que a quantidade de grãos de melanina escura vai diminuindo, fazendo com que a pigmentação difusa provocada pela melanina clara se torne mais aparente, provocando uma coloração de fundo (aquela cor amarela ou laranja em que cabelos muito escuros ficam depois de uma descoloração). Isso indica que os grãos reagem mais fortemente com os oxidantes.

Na prática, o clareamento do cabelo se dá pela oxidação da melanina, porém como não se conhece ao certo sua estrutura, é difícil se fazer uma descrição desse mecanismo.
O consenso é que ocorra uma despolimerização, ou seja, a estrutura polimérica da melanina é degradada, resultando em diferentes derivados dependendo do grau de clareamento e da cor natural do cabelo. Esses derivados são solúveis em ambientes alcalinos, fazendo com que os grãos de melanina vão se desmanchando. Enquanto isso ocorre somente com os grãos de melanina, o cabelo fica com aquela coloração de fundo que já falei; quando todos os pigmentos vão sendo solubilizados e eliminados por lavagem, o cabelo chega ao ponto de se tornar branco/platinado.

 

Agora, pensando nos produtos utilizados para o clareamento capilar já sabemos do texto anterior que as tintas permanentes tem algum componente que dá caráter alcalino ao produto, geralmente uma solução aquosa de amônia. Ao mesmo tempo pós descolorantes apresentam em sua composição sais que agem de forma a deixar a mistura com pH alcalino. Em ambos os casos, deve-se fazer a mistura destes com a água oxigenada.

A mistura entre a água oxigenada e a tinta permanente já foi explicada que leva à oxidação do agente precursor presente na tinta, iniciando a formação do pigmento. Porém essa reação só ocorre devido à decomposição da água oxigenada.
A água oxigenada é uma solução aquosa de peróxido de hidrogênio e é comercialmente vendida para o público em geral com uma “concentração” em volumes (geralmente entre 10 e 40 volumes). Como o peróxido de hidrogênio é uma molécula instável, a decomposição desta ocorre naturalmente levando à formação de água e gás oxigênio que são moléculas mais estáveis. O valor em volumes indica a quantidade de oxigênio que é liberada quando o peróxido se decompõe. Por exemplo, uma água oxigenada 20 volumes significa que para cada parte da solução que seja decomposta, serão liberadas 20 partes de oxigênio. Logo, quanto mais volumes, mais oxigênio é liberado.

Porém, essa decomposição ocorre em taxas muito lentas e, por isso, há a necessidade do meio alcalino. O pH alto age como um catalisador da degradação do peróxido de hidrogênio, ou seja, de forma bem resumida: faz com que a reação ocorra mais rápido; agindo no tempo necessário para que seja feita a aplicação da tinta.

O peróxido de hidrogênio é decomposto em duas partes bastante reativas, sendo que no contexto de clareamento capilar essa reação de decomposição pode ocorrer de duas formas, como mostrado na figura abaixo.

Reações de decomposição do peróxido de hidrogênio. (A) reação catalisada por íons hidroxila (reação em meio alcalino) com formação de íons; (B) reação catalisada por íons metálicos com formação de radicais. (Passe o mouse na imagem para amplia-la)

 

A reação (A) ocorre da presença do peróxido de hidrogênio em meio alcalino, gerando o ânion perhidroxila (HOO-). Esse ânion é um agente oxidante relativamente fraco.

Já a reação (B) tem como produto radicais hidroxila, que são altamente reativos e oxidantes. A formação desses radicais está relacionado com a presença de metais de transição. O que isso tem a ver com o cabelo? Além daquela estrutura polimérica, a melanina também pode apresentar alguns desses metais em sua composição (principalmente Fe+3 e Cu+2), levando à formação desses radicais.

Independente de qual tipo de decomposição ocorra, caso não haja outras moléculas no meio reacional, os produtos reagem entre si, formando água e gás oxigênio.

Tanto o radical hidroxila quanto o ânion perhidroxila podem agir, em separado, como agentes oxidantes da melanina e, portanto, promover o clareamento do cabelo, em diferentes taxas. Porém, estudos indicam que o principal mecanismo de clareamento do cabelo ocorra devido à presença de ambos, como pode ser melhor entendido na reação proposta na figura abaixo.

Esquema simplificado da oxidação e, consequentemente, do clareamento da melanina. A molécula (I) é uma representação de um grupo presente na eumelanina. (Passe o mouse na imagem para amplia-la)

 

Na primeira linha onde vemos uma seta que vai para os dois lados, temos reações reversíveis, ou seja, elas podem acontecer e depois voltar ao estado original. Essas reações acontecem a partir da oxidação da melanina com o radical hidroxila, formado lá na reação (B) da decomposição do peróxido de hidrogênio. É por isso que a molécula (II) apresenta um oxigênio com uma bolinha em cima (isso representa que essa molécula também é um radical). Já a molécula (III) é transformada na (IV) por meio de uma reação irreversível promovida pelo ânion perhidroxila, formado na reação (A) da decomposição do peróxido. A reação irreversível é indicada pela seta com somente um sentido, pois nessa o produto não pode voltar ao que era anteriormente. Depois essa molécula ainda pode continuar em reação, chegando ao produto (V).

Inclusive, é por isso que as tintas permanentes, assim como as descolorações, são chamadas de permanentes. Pois ao final das reações em que a melanina é oxidada, não é possível que a molécula volte ao que era anteriormente. Com essa modificação da molécula de melanina, a mesma perde suas propriedades anteriores, incluindo a coloração. No caso das tintas permanentes, o que temos de resultado final é a coloração “que sobra”, devido aos pigmentos formados também devido à oxidações provocadas pelo peróxido de hidrogênio, como já explicado em texto anterior.

O fato dos radicais necessários para a reação serem formados quando em contato com os metais presentes na melanina do cabelo, faz com que a quantidade de radicais formados dependa da quantidade desses metais, o que varia de pessoa para pessoa. Isso pode explicar porque o uso da mesma tinta em pessoas com cabelos de cores muito parecidas, podem levar à colorações finais muito diferentes após à aplicação.

Como a melanina está ligada aos resíduos peptídicos da queratina é fácil imaginar que durante essas reações oxidativas da melanina, algo semelhante deve ocorrer com as proteínas que constituem o cabelo. A aplicação de tintas permanentes e descolorantes, levam a uma série de modificações nas propriedades dos fios dos cabelos, dando muitas vezes aquele aspecto de cabelo danificado. Isso ocorre pois a queratina apresenta diversos tipos de sítios de reação acessíveis a composições oxidativas e alcalinas, como grupos reativos pertencentes aos diferentes aminoácidos como hidroxilas e amino, ligações de hidrogênio, ligações salinas e ligações dissulfeto. Esse último tipo de ligação é um dos principais responsáveis para a formação dos cabelos cacheados (caso queira saber mais, leia aqui). E é por isso que cabelos cacheados quando descoloridos tendem a parecer mais lisos.

Para terminar, saindo um pouco das tintas e descolorantes, mesmo que você nunca tenha tingido o cabelo, talvez já tenha percebido que seu cabelo clareou devido à alta exposição ao Sol.

 

Para entender como isso ocorre, precisamos saber que a energia absorvida por uma molécula pode ser transformada em calor ou pode destruir as ligações dessa molécula. De forma geral, o segundo caso ocorre quando a energia absorvida é maior que a energia das ligações da molécula. No caso da melanina a luz visível já é capaz de promover degradação da molécula, o que faz com que o cabelo vá perdendo a coloração escura, como já foi explicado. E assim como os produtos aplicados no cabelo também agem na queratina, dando um aspecto danificado aos fios, o Sol emite radiação infravermelha e ultravioleta, além do espectro visível. Essas radiações interagem com a queratina e, da mesma forma que ocorre com a melanina, a absorção dessa luz pode quebrar diversas ligações presentes na proteína constituinte dos fios, danificando o cabelo.

 

Então fica por aqui a trilogia sobre tintas de cabelo.

Até mais!

 

REFERÊNCIAS

BOUILLON, C.; WILKINSON, J. The Science of hair care. Taylor & Francis, 2005.

LEE, C. M.; INGLIS, J. K. Science for hairdressing students. Pergamon Press, 1983.

SMITH, R.A.W, et al. Mechanistic insights into the bleaching of melanin by alkaline hydrogen peroxide. Free Radical Biology and Medicine. v. 108. p. 110-117. 2017.

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