Em setembro de 2021 o aplicativo de vídeos curtos Tiktok alcançou a marca de 1 bilhão de usuários ativos por mês, 74 milhões deles estão aqui no Brasil e mesmo que você nunca tenha sequer baixado ou aberto o aplicativo, com certeza já viu algum vídeo dessa rede circulando por outros apps.

O aplicativo é uma forma acessível de produzir e consumir vídeos curtos com alto potencial de viralização e sobre os mais diversos temas, que variam entre memes, trends, desafios, DIY (faça você mesmo), notícias e até mesmo conteúdo sobre saúde.

Essa versatilidade, aliada a um modo diferente do funcionamento do algoritmo da rede, gerou um resultado curioso: nos EUA e no Reino Unido o Tiktok ultrapassa o tempo médio de visualização do YouTube. A consequência disso, no entanto, não era tão óbvia assim: norte-americanos veem influenciadores dessa rede como mais acessíveis e confiáveis do que profissionais da saúde.

E não para por aí. De acordo com pesquisa feita pela CharityRx, 1 em cada 5 adultos pesquisará seus sintomas no Tiktok antes mesmo de procurar algum serviço de saúde e 17% dos entrevistados disseram confiar mais nos influenciadores do que em médicos.

Uma rápida busca pela hashtag “sintomas” retorna uma série interminável de vídeos sobre os mais variados tipos de doenças, seus sintomas, “técnicas” para realizar autodiagnóstico e até venda de tratamentos. Para se ter uma ideia da dimensão dessa coisa toda, termos referentes a TDAH acumulam mais de 1 bilhão de visualizações, 1,9 milhão dessas tem relação com autodiagnóstico. Quando se fala em depressão, o número sobre para 4 milhões.

Lembram das trends e efeito viral? Aqui eles ocupam um espaço importante e geraram uma espécie de comunidade do autodiagnóstico de transtornos mentais. Simplesmente pessoas realizam testes online sobre estresse, ansiedade e depressão, compartilhando os prints dos resultados, que vão de normal a severo, com alguma música bad vibes de fundo.

O problema é que esses questionários não são inofensivos e aleatórios como eram os testes da Capricho, na verdade são escalas baseadas em instrumentos de avaliação psicológica reais, que costumam ser elaborados para uso em populações e contextos específicos.

Por exemplo, aquele que foi viralizado tinha como objetivo medir estados emocionais indicativos de estresse, ansiedade e depressão. Mas, ao contrário do que se pensa, não serve para realizar diagnóstico. Isso porque esse tipo de instrumento é usado como peneira nas triagens para pesquisa ou para análise de efetividade do tratamento em quem já foi diagnosticado.

Além disso, o caráter autodeclaratório e a falta de orientação profissional no momento da aplicação do teste podem levar a vieses nas respostas, gerando falsos positivos ou negativos. Nesse tipo de material também não é possível verificar a duração dos sintomas, muitas vezes item diferencial para realização do diagnóstico.

Mas enquanto você está apenas fazendo testes na internet e ficando com uma pulga atrás da orelha sobre um possível diagnóstico, não há grandes consequências negativas. Na verdade, pode ser até positivo por te fazer procurar ajuda profissional e é aqui que o risco aumenta.

Se analisarmos o que acontece em relação ao autodiagnóstico de TDAH no Tiktok, veremos um cenário mais preocupante: das escalas de autoavaliação, o usuário é levado a dicas milagrosas, cursos e “tratamentos” indicados pelos influencers para lidar com o transtorno.

A testagem para TDAH, assim como de outras condições psicológicas envolvem diferentes métodos, que vão além da aplicação de escalas e a participação de outros profissionais de saúde. Cabe lembrar ainda que existem instrumentos diagnósticos que são de uso privativo do psicólogo.

Não é difícil imaginar que, na ânsia de pertencer, de tentar nomear o que sente ou encontrar o responsável pelo desconforto emocional, toda alternativa pareça viável, principalmente quando sabemos das dificuldades envolvidas no cuidado à saúde mental no nosso país, com serviços públicos lotados e situação de renda que muitas vezes não permite pagar por atendimento.

Esse cenário acaba servindo de brecha para charlatões, que vão usar de palavras acolhedoras e senso de comunidade para seduzir usuários com falsas promessas de cura ou melhora por meio do seu produto ou serviço.

Popularizar essas condições é, sim, importante, melhor ainda quando levam a procura por ajuda especializada! Então, se você tem sentido sintomas incomuns na sua história de vida ou alterações radicais nos padrões de sono e apetite, procure ajuda de um psicólogo e/ou psiquiatra.

Caso isso não seja possível no momento, você pode:

  • Melhorar sua bolha de informações – seguir bons profissionais de saúde, cientistas ou pesquisadores é uma forma de ter acesso a dados de qualidade, auxiliando a distinguir ou pelo menos desconfiar de conteúdo potencialmente falso;
  • Denunciar conteúdos falsos, enganosos ou charlatões – toda plataforma possui suas políticas de uso e a denunciação de posts que ferem essas normas ajuda a criar um ambiente virtual mais saudável;
  • Consumir conteúdo de pessoas neuroatípicas – muitas delas costumam falar do processo de diagnóstico, tratamento, erros, acertos e dicas que a ajudam com o dia a dia.

Lembre-se ainda que um diagnóstico não é uma linha de chegada, mas sim um ponto de partida em direção a uma vida com mais funcionalidade, independência e sentido.

 

 

REFERÊNCIAS:

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

CHARITYRX. The Shifting Role of Influence and Authority in the Rx Drug & Health Supplement Market. Disponível aqui.

DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

FERRARI. L. TikTok: Testes online de depressão e ansiedade funcionam? Disponível aqui.

JERUSALINSKY , A.; FENDRIK, S. (org.). O livro negro da psicopatologia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Via Lettera, 2011.

MAIA, C. de A.; CAMPOS, E. de M. Estado da arte da nosologia psiquiátrica: RDoC em debate. Revista de Medicina da UFC, Fortaleza, v. 57, ed. 1, p. 36-42, 2017. Disponível aqui.

MOREIRA, M. S. Ser são em lugares insanos: O DSM, a validade científica e a confiabilidade dos diagnósticos psiquiátricos. CliniCAPS: Impasses da clínica, Belo Horizonte, v. 4, ed. 10, 2010. Disponível aqui.

RODRIGUES, A. C. T. O que é validade na nosologia psiquiátrica. Orientador: Cláudio Eduardo Muller Banzato. 2012. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. Disponível aqui.