Em 09 de agosto fará 25 anos da morte de Herbert José de Sousa, o Betinho. Imortalizado na música de Aldir Blanc e João Bosco “O Bêbado e a Equilibrista”, Betinho e seus irmãos, Henfil e Chico Mário, foram vítimas do HIV contraído numa das inúmeras transfusões de sangue às quais foram submetidos. Os três tinham hemofilia, doença ligada ao cromossomo X e que afeta a coagulação do sangue.

Outra ação que imortalizou esse gênio de nossa história foi a fundação do Ação da Cidadania em 1993, criada com o objetivo de mobilizar a sociedade civil contra a fome, a miséria e em favor da vida, já que, à época, 32 milhões de pessoas viviam abaixo da linha da pobreza (fico me perguntando o que Betinho diria ao ver quase 63 milhões de brasileiros nessa condição, segundo dados da FGV).

Infelizmente, assim como os irmãos, inúmeras pessoas passaram pela experiência de se contaminar com uma doença durante uma transfusão de sangue.

Primeira transfusão de sangue aconteceu ainda no século XVII

Em 1665, na Inglaterra, um médico britânico realizou a primeira transfusão de sangue entre animais. Dois anos mais tarde, o médico francês Jean Baptiste Denis teria infundido sangue de carneiro em um francês com transtorno mental, que faleceu após a terceira infusão.

Nesta época, a transfusão de sangue heteróloga, ou seja, entre espécies diferentes, foi proibida em diversas regiões da Europa. Já no século XIX, James Blundell teria realizado a primeira transfusão de sangue entre humanos, após sucesso em testes de transfusão homóloga em animais.

Na primeira metade do século XX ocorreram as primeiras transfusões de sangue, inicialmente “braço a braço”, na qual o sangue da artéria de um doador era imediatamente transferido à veia do receptor. Em 1918 houve a primeira transfusão com sangue armazenado durante a Primeira Guerra Mundial, até que, em 1936, os bancos de sangue foram finalmente estruturados e o primeiro deles aberto em Barcelona. No Brasil, o primeiro banco de sangue público foi aberto em Porto Alegre, em 1941.

Diversas doenças infectocontagiosas são testadas no momento da doação

Diante da epidemia de HIV/aids com início na década de 1980, diversas pessoas foram infectadas pelo vírus por necessitarem de transfusões recorrentes, como foi o caso de Betinho.

Até a Constituição de 1988, as doações de sangue eram remuneradas nos bancos de sangue privados e não havia controle de qualidade ou fiscalização sobre elas. Dessa forma, muitas pessoas de baixa renda, usuários de drogas ilícitas e profissionais do sexo literalmente vendiam o sangue para sobreviver (esse ato também está registrado na música de outro gênio brasileiro – Vai Trabalhar Vagabundo, de Chico Buarque).

A reportagem do Jornal do Brasil de setembro de 1988 divulgou o dado da Associação dos Hemofílicos do Brasil: 80% dos portadores de hemofilia no Rio de Janeiro haviam adquirido HIV durante uma transfusão sanguínea. Na mesma reportagem, Betinho, então presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids, relatava a importância do dispositivo da Constituição (artigo 199, §4º) assim como denunciava a falta de fiscalização dos bancos de sangue privados no país.

O dispositivo da Constituição carecia de regulamentação, que foi definida pela Lei 10.205, de 21 de março de 2001. Nela, a proibição da compra, venda ou qualquer tipo de comercialização de sangue, componentes e hemoderivados foi definida, e assim permanece até os dias de hoje. Os bancos de sangue são remunerados pelo serviço de coleta, testagem, armazenamento e distribuição, mas não pelo hemocomponente em si. Para doadores contratados sob o regime da CLT, há o benefício de um dia de descanso, sem prejuízo no salário, a cada 12 meses no dia da doação.

A ANVISA, através da RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) n° 34, de 11 de junho de 2014, define os requisitos de boas práticas para serviços de hemoterapia. Nela estão comtemplados a seleção de doadores, coleta, processamento, testagem, controle de qualidade, proteção do doador e receptor, armazenamento, distribuição, transporte e transfusão de hemocomponentes.

Pré-requisitos para ser doador de sangue:

– levar documento de identidade com foto e órgão expedidor;
– estar em boas condições de saúde;
– ter entre 16 e 69 anos de idade (de 16 e 17 anos com autorização do responsável legal);
– idade até 60 anos, se for a primeira doação;
– intervalo entre doações de sangue de 90 dias para mulheres e 60 dias para homens;
– pesar mais do que 50 kg;
– não estar em jejum;
– após o almoço ou jantar, aguardar pelo menos 3 horas;
– não ter feito uso de bebida alcoólica nas últimas 12 horas;
– não ter tido parto ou aborto há menos de 3 meses;
– não estar grávida ou amamentando;
– não ter feito tatuagem ou maquiagem definitiva há menos de 12 meses;
– não ter piercing em cavidade oral ou região genital;
– não ter feito endoscopia ou colonoscopia há menos de 6 meses;
– não ter tido febre, infecção bacteriana ou gripe há menos de 15 dias;
– não ter fator de risco ou histórico de doenças infecciosas, transmissíveis por transfusão (hepatite após 11 anos, hepatite b ou c, doença de chagas, sífilis, Aids, HIV, HTLV I/II);
– não ter visitado área endêmica de malária há menos de 1 ano;
– não ter tido malária;
– não ter diabetes em uso de insulina ou epilepsia em tratamento;
– não ter feito uso de medicamentos anti-inflamatórios há menos de 3 dias (se a doação for de plaquetas).

Fonte: BVSMS

O Regulamento Sanitário determina que toda bolsa de sangue seja testada para as seguintes doenças: HIV, Hepatites B e C, sífilis, HTLV I/II, Doença de Chagas e, em algumas regiões, malária. Dependendo do receptor e do componente transfundido, é realizada também a testagem para CMV.

Por isso, é extremamente importante que qualquer pessoa que tenha recebido uma transfusão antes da década de 1990 realize o teste para Hepatites B e C, minimamente. Assim como o HTLV, essas são doenças silenciosas, que demoram para se manifestar ou, por vezes, sequer apresentam sintomas ao longo da vida. Entretanto, elas são passíveis de transmissão sexual ou por contato com o sangue contaminado e uma pessoa portadora da doença pode acabar disseminando para outras conforme os hábitos de vida.

Outras doenças podem ser transmitidas pelo sangue e não são testadas de rotina, como hepatites A e E, filariose e até leishmaniose. Entretanto, essas doenças têm menor importância epidemiológica e com frequência as pessoas doentes manifestam sintomas, o que faz com que naturalmente não busquem o banco de sangue para realizar a doação.

Ainda, o serviço é obrigado a realizar a hemovigilância, que é a “avaliação de efeitos indesejáveis e/ou inesperados da utilização de hemocomponentes”, podendo estar relacionados à incompatibilidade sanguínea e até a infecções por bactérias transmitidas por bolsas contaminadas.

Doação de sangue: ato de altruísmo, mas também de muita responsabilidade

Doar sangue é um gesto de amor, altruísmo e empatia com pessoas que precisam desse precioso recurso para sobreviver. Mas é importante lembrar que também é um ato de extrema responsabilidade. Por isso, não realize doação de sangue com o objetivo de saber se tem alguma doença: nesse caso, procure uma UBS e faça o teste gratuitamente para sífilis, hepatites B e C e HIV. Os outros testes poderão ser indicados por um(a) médico(a) dependendo da epidemiologia.

E caso vá doar sangue e durante a entrevista se lembre de alguma condição que pode colocar em risco o receptor, você sempre pode responder que não autoriza o uso da sua bolsa de sangue. Essa opção é feita de forma sigilosa e sem qualquer prejuízo pra você.

 

Referências:

Fundação Pró-Sangue – Hemocentro de São Paulo: http://www.prosangue.sp.gov.br/artigos/estudantes.html#:~:text=As%20transfus%C3%B5es%20de%20sangue%20tiveram,tarde%20em%201667%2C%20em%20Paris

História da Hemoterapia no Brasil: https://www.scielo.br/j/rbhh/a/KPf53b35B5jDZqSkmtJKkZj/?lang=pt

Ministério da Saúde:

https://bvsms.saude.gov.br/25-11-dia-nacional-do-doador-voluntario-de-sangue-2/

Lei 10.205 de 21 de março de 2001: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10205.htm

RDC n° 34 de 11 de junho de 2014: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2014/rdc0034_11_06_2014.pdf

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Superinteressante – Antes do SUS, o sangue era comercializado no Brasil: https://super.abril.com.br/saude/antes-do-sus-o-sangue-era-comercializado-no-brasil/

Manual Técnico para Investigação de Transmissão de Doenças pelo Sangue: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_transmissao_doencas_sangue.pdf