Esses dias tive a árdua missão de trabalhar com o poema épico Paradise Lost (Paraíso perdido), em seus doze cantos, de John Milton. Milton reconta a história bíblica de Adão e Eva, com sua própria genialidade, já que é considerado um dos maiores escritores de todos os tempos, certamente parte do cânone literário.

Era uma aula da disciplina de Literatura Inglesa, dada para o penúltimo ano do curso de Letras — Inglês. E lá fomos nós, fazer a análise literária de um texto super complexo de 1667, da antiga Inglaterra, com vocabulário dificílimo (justamente por ser antigo) e contexto histórico também bastante detalhado e complicado de entender.

Essa turma já estava bem avançada nas análises literárias, acostumada com o old english, já com uma boa bagagem. Porém, em determinado momento da aula surgiu o assunto “Prêmio Nobel de Literatura”, e decidi que poderíamos tirar um tempinho para discutir sobre.

E lá fomos nós falar sobre os dez últimos laureados do Prêmio, com atenção para os dois últimos: Annie Ernaux, uma francesa e Abdulrazak Gurnah, refugiado da Tanzânia. Antes mesmo de discutir sobre a literatura desses dois autores, já percebemos que uma mulher e um homem negro como autores consagrados era algo bem distante da realidade que estávamos estudando na Literatura Inglesa.

Annie Ernaux, que recebeu o Nobel de Literatura de 2022, é uma francesa que escreve especialmente autoficção, ou seja, mistura elementos de fatos reais que aconteceram em sua vida com acontecimentos e personagens fictícios.

Dentro dessa liberdade de inspirações e construções narrativas, destaco “O lugar”, uma autoficção que tem mais características de uma autossociobiografia, o que significa que ela conta a história de um país inteiro (sócio) a partir de uma história pessoal (auto). Ela escreve sobre a complicada relação com o pai, ao mesmo tempo em que conta sobre a luta de classes na França pós Segunda Guerra.

Já Abdulrazak Gurnah, que recebeu o Nobel de Literatura em 2021, um ano antes, é da Tanzânia mas viveu na Inglaterra desde os dezoito anos. Ele é um refugiado, um autor diaspórico, que traz nas suas obras referências do local de origem ao mesmo tempo em que traz experiências do local onde vive.

Nessa riqueza de vivências múltiplas, destaco a obra “Sobrevidas”, que relata a vida após a colonização brutal. Como retomar a vida depois de tanto trauma? Como sobreviver?

Hamza e Ilyas são os dois protagonistas dessa história. O primeiro tenta levar uma vida comum, com esposa e filhos, mesmo com os traumas do pós-guerra. Já o segundo é totalmente levado pela lógica colonial, e se transforma de colonizado em um colonizador.

Interrompemos então nossa aula sobre a literatura do século XVII na Inglaterra para falar sobre Literatura contemporânea. E sim, tem um pouco de Literatura contemporânea nos currículos dos cursos de Letras, mas bem pouquinho. E sim, é de fundamental importância estudar os clássicos, mas perdemos o foco quando mergulhamos nos clássicos sem olhar para a literatura contemporânea.

Para os alunos, a paixão pelos livros vai esmorecendo. Fica com cara de coisa muito séria, muito distante da realidade deles. E uma das muitas sensações maravilhosas que os livros nos trazem é essa: identificação. É isso que nos faz fisgar numa leitura e não querer soltar mais. E com as publicações atuais, tem mais chances disso acontecer.

O contrário também é importante: ler sobre cenários e vidas completamente diferentes da sua, e nisso aprender e enriquecer sua experiência. Literatura é quase uma simulação da realidade, de muitas que jamais viveremos na pele, mas que podemos sentir e entender pelos olhos de quem conta, de quem escreve.

Essa experiência também acontece com mais frequência na literatura contemporânea, que tende a abrir mais espaço para mulheres, pessoas negras, pessoas de outros países; enfim, para uma diversidade de vivências, olhares, experiências, visões de mundo.

Nessa brecha que se abriu na aula sobre John Milton, perguntei para a sala: “O que é Literatura?” A princípio uma pergunta simples, direta, mais simples ainda se for pensar que estamos numa disciplina de Literatura dentro do curso de Letras. Mas travamos. Provavelmente por estarmos tão aprofundados nas análises literárias, estudando o old English, o contexto histórico de época e lugar tão distantes; que esquecemos da base, da origem, da motivação primária e essencial para a leitura.

Não à toa vemos tantos estudantes de Letras chegarem apaixonados por livros e perderem essa paixão ao longo do curso. Eu mesma fui uma delas. Cheguei como ávida leitora e me arriscava bastante na escrita, mas com as disciplinas de Literatura achei tudo chato, perdi o interesse e deixei a literatura morrer em mim.

Com sorte consegui recuperar isso mais tarde, anos depois, e cá estou terminando meu mestrado em Literatura e lecionando também. Por isso tento nunca esquecer dos livros que me prenderam, que não via a hora de sentar e continuar a leitura, que li por pura vontade e sem nenhuma obrigação.

Dos livros que me fizeram ver o mundo de outra maneira, que me tiraram do meu mundinho pequeno e ensimesmado. Daqueles com os quais me conectei tão profundamente que me senti íntima da autora ou do autor.

Literatura se entremeia com História, Sociologia, Filosofia, Psicologia, o estudo da própria língua, o estudo do próprio ser. E claro, podemos e devemos estudar Milton de vez em quando, mas sem nunca deixar de lado os primeiros porquês; o porquê gostamos daquilo, o porquê queremos estudar algo, o porquê daquilo ser fundamental para você e para os outros.