Padrões éticos saudáveis sempre foram considerados importantes para a sociedade em que vivemos. A falta deles indica um grupo doente, em que os valores se misturam com normas inaceitáveis de vivência, diluindo a coesão social e a confiança em um futuro melhor. No campo do trabalho, essa observação tem se tornado cada vez mais importante. E foi nesse cenário que se criou a prática de Compliance.
Compliance foi organizado para atenuar atividades de corrupção, falta de governança e de segurança no cumprimento das legislações em diferentes segmentos empresariais. O nome vem do verbo “to comply” em inglês, que significa “cumprir” em português. Diz respeito ao conjunto de práticas administrativas para manter a boa conduta nas empresas, bem como diretrizes internas e externas, como leis, decretos, normativas, ofícios circulares e auditorias.
Apesar de ser um conceito bastante amplo e genérico, a correta utilização dessa prática tornou-se importante para muitos setores-chave da sociedade. Na área de alimentos, repleta de fraudes e adulterações, ficou indispensável. E com este texto, pretendo mostrar a vocês essa importância em uma das maiores operações policiais anticorrupção de nossa história moderna: a Operação Carne Fraca.
A operação marca a desmontagem de um grande esquema de corrupção no seio da fiscalização e defesa agropecuária federal. Em 17 de março, foi revelada uma grande rede de propina, em que fiscais agropecuários federais eram pagos em dinheiro ou benefícios para liberar licenças de venda de produtos cárneos de entes privados, sem a necessidade de inspeção [1]. Aqueles que não participavam do esquema eram enviados a outras unidades .
As investigações apuraram uma rede complexa de agentes de alta importância na estrutura do Ministério da Agricultura (MAPA), bem como a existência de diferentes benefícios aos fiscais participantes. Pela repercussão do caso, um grupo de 20 países suspendeu importação de carnes do Brasil. Outros, como Estados Unidos, Canadá, Japão, UE e China, cancelaram parcialmente o mercado, com requisição mais ampla de fiscalização sanitária para vendas.
Um efeito secundário foi a perda de credibilidade em comparação com itens similares de outros mercados, e também do sistema de inspeção sanitária brasileiro, dificultando a abertura de mercados de outros produtos que estavam à margem dessa fiscalização, como nozes, castanhas e grãos [1]. A operação expôs fatos bem difíceis de lidar, e talvez a carne moída represente bem esse período.

Imagem um. Gigantes do setor BRF e JBS tiveram unidades interditadas e operações suspensas, o que provocou retrações sensíveis no mercado [2]. Na imagem, podemos ver manipuladores de produção de frigorífico, com destaque para uma mulher, todos utilizando EPIs adequados ao trabalho.
A carne moída foi bastante estigmatizada na época devido aos rumores de utilização de papelão em sua mistura, bem como no uso de embutidos e outras Carnes Mecanicamente Separadas (CMS), como hambúrguer e nuggets [3]. Em conversa gravada, tudo indicava ser o caso [4]. Porém, novas informações vieram a público, diminuindo a possibilidade de esse produto ter sido misturado com papelão. O tabu já havia se entranhado na imagem dessas organizações, e as pessoas deixavam de consumir esses CMS por medo de estarem comendo itens estranhos ao alimento.
Quando a polícia interditava os frigoríficos, cabeça de porco, carne vencida e outros aditivos impróprios eram encontrados nas linhas de manipulação desses produtos CMS, deixando perplexos os clientes de diversos mercados consumidores. As fraudes na cadeia alimentar impactam não somente os paradigmas de nosso trabalho, mas também a saúde dos consumidores, que por vezes se tornam reféns de práticas predatórias.
Podemos pensar que o produto, nessa ocasião, foi tanto fraudado por falsificação quanto adulterado. A adulteração alimentar ocorre quando substituímos, adicionamos ou removemos itens-chave de identificação do alimento, sem o conhecimento do consumidor [5]. A adição de extensores de soja acima do normal, bem como de partes não aproveitáveis para gerar volume, como água injetada na carne de frango congelado, torna-se uma adulteração do produto final.
Já a fraude por falsificação está relacionada com as práticas utilizadas para mascarar a modificação do alimento e suas características [5], deixando por desnaturar as propriedades e sabores do produto. Um exemplo isso é o uso de produtos vencidos como se estivessem em vida útil, rastreabilidade falsa, tabela nutricional ou de ingredientes em desacordo com o estabelecido e, mais claramente, a utilização de licenças e títulos comprados para conquistar mercados.
De maneira geral, a adulteração está dentro do grande grupo das fraudes alimentares, que também inclui a fraude por alteração, falsificação e sofisticação [5]. Porém, para efeitos sanitários, é bom separar esses diversos tipos de crimes oriundo das assimetrias informacionais, um dos grandes erros de mercado. Para o bem da escrita, vamos adentrar mais nessas classificações em textos futuros.

Imagem dois. A figura do fiscal agropecuário é fundamental na garantia da segurança alimentar da carne. Contudo, frigoríficos têm pressionado o governo para diminuir cada vez menos a inspeção sanitária, terceirizando seus serviços por meio da “Lei do Autocontrole” (14.515/2022) [6]. Na figura, podemos observar um fiscal agropecuário, utilizando luvas, jaleco e capacete, fazendo inspeção em peças de carne suspensas por gancho.
Outro ponto que marcou bem essa época foi a resposta do governo brasileiro, que tentava diminuir os impactos na crise de imagem enquanto punia as figuras de autoridade envolvidas no escândalo. O presidente da época, Michel Temer, marcou um grande jantar com acionistas e autoridades internacionais a fim de apaziguar os ânimos sobre o futuro das companhias transnacionais brasileiras.

Imagem três. A equipe de comunicação do governo não levou em conta que a origem dos produtos daquela churrascaria era estrangeira [7]. Diversos grupos de comunicação não deixaram de reparar nesse detalhe, bem como na macabra cena que as fotos selecionadas indicavam. Essa figura virou um meme famoso em 2017.
As imagens do evento foram bem recebidas, mas não da maneira como pretendiam. Para a internet, ela reforçava a aura “oculta” e vampiresca que existia na figura de Michel Temer e em sua presidência. A comunicação do evento não atingiu o objetivo que precisava. E os duros golpes contra o impopular governo persistiram.
Após mais de 309 mandados expedidos e 1100 policiais a serviço em todos os estados, o esquema foi desmantelado. Os culpados foram afastados de seus cargos e outros foram condenados. Mas a imagem ruim das empresas permaneceu por muito tempo. Foram necessários anos para que se conquistasse toda a confiança perdida, a ponto de termos diversos atores ressentidos ainda hoje no cenário alimentício.
Uma boa política em Compliance, acima de tudo, ajudou a reverter o quadro, demonstrando aos parceiros dessas organizações quais foram os caminhos para que o problema não voltasse a ocorrer. Mais do que uma palavra da moda, Compliance é uma política de vida empresarial, ajudando a moldar uma cultura organizacional que esteja em conformidade com valores éticos, respeitosos e idôneos.
O assunto voltou à tona em nosso imaginário devido a uma nova Operação Carne Fraca em 2025. Empresas estão sendo rastreadas por estarem revendendo carne que esteve submersa durante as enchentes no Rio Grande do Sul. O esquema começou a ser desmontado no Rio de Janeiro, em que carne podre estava chegando aos pontos de venda já em condições impróprias. A polícia do consumidor e a fiscalização agora buscam outros pontos que possam ter dado acesso a essas peças, avaliadas em milhões de reais.
A atuação da fiscalização agropecuária foi vital para desmantelar essa falsificação. Podemos pensar até que essa operação é a herdeira espiritual daquela de 2017, que redime toda uma categoria pelos diversos erros de seu trabalho. O Compliance foi vital para essa conquista. Mas nem tudo são flores nesse país, como já sabemos.
A mesma fiscalização está sofrendo agora, na esfera legislativa, com lobby de empresas bilionárias para que a fiscalização nos frigoríficos seja realizada por veterinários terceirizados, ao invés de servidores públicos [6]. A pressão por regulamentar a lei 14515/2022, ou “lei do autocuidado”, escancara uma conivência com a precarização que chega a ser confundida com a proposta legislativa.
Defensores como a JBS, como todo bom verniz de pós-burocratas, tentam finalizar o discurso apelando ao mito da flexibilização e eficiência do serviço público. Porém desconversa sobre toda a discussão de como é fácil fraudar um agente terceirizado em trabalho de fiscalização, como se houvesse esquecido das duras lições de 2017 e da posterior crise de imagem da empresa.
Vivemos em uma era após a pandemia de covid-19, provavelmente derivada do contato pós-venda de carne de animais silvestres com humanos. Estamos apreensivos observando o surgimento de uma nova doença de gripe aviária, derivada do modelo de criação de aves que temos atualmente. A história tem nos mostrado para não levarmos a fiscalização na brincadeira, e os países mais sérios reconhecem esse desafio. Mas será que o Brasil anda a par desse cenário?
Antes de tudo, Compliance é sobre construir relacionamentos duradouros entre empresas, governos, acionistas e clientes. Também tem a ver com criar uma memória para que erros passados não virem os fantasmas do futuro. Talvez um dia o gigantesco setor cárneo possa aprender essa dura lição. E quem sabe assim possamos ter menos fotografias sombrias para provar a qualidade dos nossos produtos.

