
Muito antes da consolidação da geologia como ciência, diversas culturas ao redor do mundo já observavam, registravam e interpretavam os processos terrestres. O relevo, as rochas, os vulcões, os rios e os desertos não eram apenas elementos físicos: eram, e continuam sendo, partes vivas de cosmovisões complexas, espirituais e simbólicas. Esses são os pontos de partida para a Geologia Cultural, que iremos explorar nesse texto.
Essas formas de conhecimento — muitas vezes chamadas de “saberes tradicionais” ou “cosmologias indígenas e ancestrais” — oferecem olhares plurais sobre a Terra, o tempo e os elementos geológicos. Compreender essas perspectivas é fundamental para uma geologia mais inclusiva, intercultural e sensível às relações entre natureza, cultura e espiritualidade.
Paisagens sagradas e territórios vivos
Em diversas tradições indígenas das Américas, a Terra não é um objeto a ser dominado, mas um ser vivo, dotado de espírito e agência. Rochas, montanhas, cavernas e rios são moradas de entidades ancestrais, que moldaram e continuam moldando o mundo. Entre os povos Yanomami, por exemplo, os xapiri são espíritos que habitam as montanhas e controlam os fenômenos naturais. As formações rochosas são vistas como marcas de acontecimentos míticos, onde o tempo ancestral permanece presente.
Na cosmologia dos povos andinos, como os Quéchua e Aymara, as montanhas (conhecidas como apus) são consideradas entidades vivas e protetoras. Já a Pachamama — a Mãe Terra — não é uma metáfora: é uma divindade real, nutridora e ativa, com quem se estabelece uma relação de reciprocidade. Esse entendimento implica não apenas um vínculo afetivo com a geodiversidade, mas também formas sustentáveis de manejo territorial, fundamentadas no respeito e na interdependência.
A geologia cultural na tradição africana e afro-diaspórica
As religiões de matriz africana também expressam visões singulares sobre a Terra e os elementos que a compõem. Na cosmologia iorubá, por exemplo, a criação do mundo envolve a modelagem da terra a partir de um punhado de solo sagrado trazido por Odùdúwà, um dos orixás fundadores. O próprio planeta, chamado Ayé, é entendido como uma entidade viva, onde a natureza manifesta o axé — a força vital que permeia tudo.
Rochas, rios, montanhas e grutas são espaços sagrados por excelência. Os orixás não apenas estão associados a elementos da natureza, mas são esses elementos. Xangô, por exemplo, é o orixá do trovão, do fogo e da pedra, especialmente a pedra do raio (edun ará), interpretada por muitos como uma representação simbólica de meteoritos ou impactos de raios em rochas. Oxum habita os rios e cachoeiras, enquanto Nanã, uma das divindades mais antigas do panteão afro-brasileiro, está ligada ao barro, aos pântanos e à ancestralidade — elementos profundamente geológicos e simbólicos.
As religiões afro-brasileiras como o Candomblé e a Umbanda também estabelecem relações espirituais com o tempo profundo. A ancestralidade é concebida como uma dimensão contínua, onde os mortos, os vivos e os ainda não-nascidos coexistem. A Terra, nesse sentido, é um arquivo espiritual e material, repleto de camadas de existência.
Montanhas míticas e o tempo dos deuses
Na mitologia hindu, o Monte Meru ocupa o centro do universo e sustenta os céus. Rodeado por oceanos e outras montanhas sagradas, ele representa tanto uma entidade geográfica quanto um símbolo espiritual da elevação e da estabilidade. Shiva, um dos principais deuses hindus, habita o Himalaia, e suas manifestações estão ligadas a forças sísmicas e cósmicas. O tempo cíclico das eras hindus (os yugas) difere radicalmente do tempo linear ocidental, e se aproxima, em escala, do tempo geológico — com ciclos de criação e destruição que duram milhões de anos.
Na Geologia Cultural da tradição budista, a Terra é formada por processos cósmicos e morais. Os mundos surgem, evoluem e desaparecem em ciclos que podem ser vistos como analogias espirituais do que hoje chamamos tectonismo, sedimentação e erosão. As cavernas e montanhas sagradas do Tibete e do sudeste asiático são locais de meditação profunda e contato com o tempo absoluto.
A rocha como testemunha e revelação
Mesmo nas tradições ocidentais, as rochas sempre despertaram fascínio. Na Bíblia, o Monte Sinai é onde Moisés recebe os Dez Mandamentos, esculpidos em pedra. A pedra, nesse caso, é o suporte da lei, da memória e da aliança.
O tempo bíblico, embora muitas vezes interpretado literalmente por correntes criacionistas, também pode ser lido de forma simbólica e teológica. Diversos teólogos contemporâneos propõem uma leitura não literal do Gênesis, compatível com a escala do tempo geológico e com a teoria da evolução.
Na mitologia grega, as montanhas e rochas são o palco das batalhas entre deuses e titãs. O vulcão Etna, na Sicília, seria o local onde Zeus aprisionou Tífon, gerando terremotos e erupções. As pedras lançadas por Deucalião e Pirra para repovoar o mundo após o dilúvio foram transformadas em seres humanos, associando o nascimento à solidez da Terra.
Tempo profundo e espiritualidade
A ciência moderna nos oferece ferramentas para entender o tempo profundo — aquele que vai além da escala humana e revela uma Terra com bilhões de anos. No entanto, a sensação de antiguidade, mistério e transformação já era intuída por muitas culturas. O lento desgaste das montanhas, o movimento das dunas, o fluxo dos rios e os ciclos das marés sempre alimentaram narrativas sobre a origem do mundo e o destino da humanidade.
Esses saberes, que hoje integram o que chamamos de patrimônio geocultural, não devem ser vistos como mitos “primitivos”, mas como formas legítimas de conhecimento, que revelam relações íntimas entre seres humanos e paisagens. Integrar esses saberes à geologia científica não significa abandonar a objetividade, mas ampliar o horizonte epistemológico, reconhecendo que a Terra é compreendida, vivida e cuidada de formas muito distintas.
Geociências em diálogo
A geologia cultural propõe justamente essa escuta ampliada. Não se trata apenas de estudar as rochas como objetos inertes, mas de compreender o que elas significam para os povos que vivem sobre e com elas. Esse diálogo é essencial em um mundo marcado por conflitos ambientais, mudanças climáticas e disputas por território e identidade.
Ao olhar para uma rocha, um geólogo pode ver uma intrusão ígnea mesozoica. Um praticante do Candomblé pode ver um ponto de força de Xangô. Um xamã pode enxergar um espírito ancestral. Um artista pode ver uma escultura do tempo. Todas essas visões coexistem na Geologia Cultural — e talvez seja hora de a ciência reconhecer que há muito mais em uma paisagem do que aquilo que se pode medir.
Para saber mais
Nos domínios das entidades das rochas
https://doi.org/10.31239/vtg.v15i2.32436
Religiões de Matriz Africana e Afro-Brasileira no Tempo Presente
https://doi.org/10.23925/1677-1222.2021vol21i1a3
Para Além de Prometeu: As Relações Humano/Natureza e a AgriCultura do Encantamento
https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/view/49316
Simbolismo da geodiversidade nas religiões afro-brasileiras
https://doi.org/10.4215/rm2024.e23011
Modelagem de recursos da geodiversidade como suporte às práticas ritualísticas de comunidades de matriz africana
https://doi.org/10.5752/P.2318-2962.2014v24n42p233
Geologia dos lugares sagrados dos povos Umükori Mahsã (Desana) e Yepamahsã (Tukano) em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, Brasil