O fixo é só o fluxo, a certeza é só a dúvida, o absoluto é apenas relativo ao que se mede, e, quando alguém se mete a falar do belo, é necessário ter em vista que o que é dito é apenas uma uma mera interpretação das vivências do sujeito, especificamente, daquele que constrói o discurso, e que também é construído pelos discursos que o atravessam.

Como o belo era entendido:

Anteriormente, falamos de como Zeus estabeleceu o poder, ou de como Pigmaleão concebia Galatéia. Ali falávamos de uma cosmovisão que justificava um critério estritamente objetivo da arte, sendo assim, o contemplador nem era levado em consideração, até porque a beleza
era apenas uma característica própria do objeto.

Quando falamos do embate entre os monistas e dualistas, falávamos sobre um conflito originário de narrativas, uma luta entre o ser transcendente perfeito e o ser imanente perfectível, falávamos de um combate pela definição legítima da constituição última do ser, e consequentemente, de tudo que disso derivasse.

Agora, quando falamos das semelhanças entre o belo e o sublime, falávamos sobre um giro antropocêntrico, que transferia os fundamentos de uma cosmovisão transcendente para as inclinações individuais do próprio sujeito. Isso tudo em paralelo com uma revolução iluminista que rejeitava a ideia de um universo finito e organizado.

O sofrimento da transição:

Tendo apresentado tudo isso, quero apresentar outras reflexões que sejam mais inerentes ao nosso tempo. Hoje entendemos que a experiência do belo não admite juízos proferidos por terceiros. Isso podemos constatar pela própria vivência prática. Porém, o que não nos falta são terceiros proferindo juízos, não somente sobre a ética, mas também sobre a estética. E assim continuamos nos questionando se o juízo estético é constituído por uma cosmovisão estabelecida ou se é inato, ou ainda, se é construído a partir das expectativas sociais.

Ora, se antes a uniformidade era lei, agora a regra é a pluralidade. Se antes a inovação era uma heresia punível até com a fogueira, agora, o plágio pode culminar em punições de várias outras naturezas. Isso tudo dependendo do campo social na qual estamos inseridos. É notável que a herança objetivista na arte ainda permanece, assim como o repúdio gerado no processo de subversão, o que fica ainda mais explícito pela seguinte citação.

“Quanto à insinuação de que existiria uma atividade da crítica que busca valores objetivos e monumentos duradouros do espírito humano, ela já é desprezada de imediato; tal atividade dependeria de uma concepção de obra de arte que entrara pelo ralo da “Fonte” de Duchamp.” (SCRUTON, 2009, p.73)

De fato, a “Fonte” de Duchamp é composta por um mictório assinado, diga-se de passagem, mas a tal obra ressuscitou o debate sobre o que é ou não arte, e isso por si só, já é de muito mérito. Podemos enxergar o mesmo ressentimento nos dias atuais, o desprezo pela arte popular pode ser explicado muito mais pelo fato de ser associado ao vulgar do que pelo fato de ser aprazível ou não, tornando a avaliação, mais de caráter moral do que estético. Tal desprezo também pode se dar porque algumas formas de arte se concentram na rentabilidade e na repercussão, o que pode ser interpretado como uma corrupção do seu caráter puritano.

Percebemos que a definição hegemônica do belo vem perdendo o seu domínio, isso na medida em que a beleza passa a ser compreendida como um fato sociológico, não mais como um conceito único e estabelecido. Agora, o fator mais relevante passa a ser a originalidade, a representatividade da obra e a legitimidade do seu enunciador.

As causas sociológicas da subjetificação:

Observe que as estruturas de opressões simbólicas se fragilizam na medida em que os mecanismos de controle são expostos à luz da consciência, da mesma forma que as estruturas de opressão se especializam na medida em que os grupos oprimidos se conscientizam. O campo artístico não escapa dessa dinâmica de poderes. Muito pelo contrário, pois são os artistas, os mais comprometidos em disfarçar as regras do jogo. E quais seriam tais regras? Pois bem, seriam eles, os campos sociais de Bourdieu, constituídos por agentes sociais, com posições muito bem estruturadas para cada um dos agentes envolvidos, estabelecendo entre eles, uma dinâmica hierárquica de competição contínua.

Sendo assim, a subjetificação do belo e a fragilização das instituições políticas se encontram em relações paralelas, pois ambas convergem como sintomas diante da atomização social de Bauman. Todavia, na medida em que a biopolítica de Foucault expõe as estruturas de opressão, as próprias estruturas se tornam mais sutis, assumindo características que são mais parecidas com a psicopolítica de Han.

Na biopolítica, são expostos os mecanismos que moldam os corpos dóceis, adestrados e domesticados, disciplinados para atender as demandas do controle, regulando e automatizando a rotina nos seus mínimos detalhes. Em sequência, quando falamos de psicopolítica, a tese funciona como um complemento para as ideias de Foucault. Ele diz que quando as estruturas de opressão extrapolam o controle sobre o hábito comportamental, incorporam as influências de opressão nos processos decisórios inconscientes, servindo-se de ferramentas mais especializadas, como por exemplo, os algoritmos baseados na coleta massiva de dados pessoais.

Enfim… A luz no fim do túnel.

Agora é que você me faz a pergunta: O que tudo isso tem a ver com a arte e com a concepção de beleza? Pois bem, tendo em vista esses conceitos, percebemos que os sistemas centralizadores de poder não foram tão fragilizados assim, percebemos que tudo muda mas nada muda. Percebemos também que, a beleza se descolou da arte, tendo o seu papel modificado diante das circunstâncias. Ora, se antes o ofício da arte era voltado apenas ao deleite, agora sua função é subverter e transgredir, tendo como objetivo, a conscientização e a mitigação das extremadas desigualdades.

Um exemplo quase anedótico dessa transição de papéis na arte é o próprio movimento modernista, seja com a emblemática obra de Duchamp ou com Macunaíma de Mário de Andrade, seja até mesmo com o Abaporu de Tarsila de Amaral. Naquele momento, a arte não se aceitava mais como um substantivo categórico, ele suplicava por uma transformação.

Naquele momento, a arte vociferava para se tornar um adjetivo qualitativo, muito mais de caráter particular do que absoluto. A quebra desses paradigmas também pode ser exemplificada por duas pensadoras contemporâneas, Carla Akotirene e Djamila Ribeiro. Carla facilita o conceito de interseccionalidade, explicando como cada vivência subjetiva pode ser atravessada por diversas estruturas de opressão, podendo ser elas de natureza econômica, racial, urbanística e/ou histórica. Já o discurso de Djamila complementa o raciocínio de Carla, explicando como tais vivências possuem seu próprio lugar de fala, estritamente subjetivas e particulares por si mesmas.

Por fim, um questionamento que ainda permanece é: Porque estamos transitando do ensejo ao universalizável para o desejo ao individual? Se antes o belo poderia ser tomado como um objeto concreto e tangível, agora não pode mais, isso é fato. O que antes era um substantivo, agora é um adjetivo. A noção de belo se tornou nebulosa, justamente porque não podemos mais delimitar a definição de beleza, e isso tudo não é intrinsecamente ruim, apenas quer dizer que ganhou novos matizes. O interdito que estava posto passou a ser questionado, vivências que eram marginalizadas passaram a ser consideradas, narrativas que eram hegemônicas passaram a ser enfraquecidas. E pelo menos nisso podemos enxergar alguma vaga esperança, mesmo que sejam apenas alguns vagalumes, pequenos e singelos vagalumes flutuantes, oscilando na escuridão dos maniqueísmos conflitantes.

 

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos. São Paulo: Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.

AKOTIRENE, Carla. O Que é Interseccionalidade? Rio de Janeiro: Ed. Letramento, 2018.

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Trad. de José Gradel. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

FOUCAULT, Michel. “A governamentalidade”. In: Machado, Roberto. (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ed. Âyiné, 2018.

RIBEIRO, Djamila. O Que é Lugar de Fala?. Belo Horizonte: Ed. Letramento; 2017.

SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: Ed. É Realizações, 2013.

Beleza da onde? – Parte 1

Beleza da onde? – Parte 2