Ao pensar sobre o belo, logo pensamos em algo que apreciamos por meio dos sentidos, mas não se atenha apenas aí. Observe além dos objetos cotidianos, imagine a imensidade do universo e a pequenez dos átomos. Vislumbre esse infinito que se segue aquém e além de nós. Considere a diversidade dos nossos sentimentos e pensamentos e, quando a nossa imaginação alcançar o limite de suas conjecturas, aí estaremos diante da menor parte do que a natureza pode nos anunciar.

Pois bem, diante desse breve convite ao alargamento da nossa imaginação, proponho algumas considerações sobre a beleza, tendo como ponto de partida a ótica platônica e a ótica kantiana. Dá pra perceber que, ao colocar a lente de Platão, o foco do belo está no objeto, sendo que, ao vestir a lente de Kant, o foco está no indivíduo e suas inclinações.

Vamos ao contexto. Na história do pensamento, havia, e ainda há, um nítido conflito pela definição da constituição do próprio ser. De um lado havia o pensamento dualista de Platão, em que se defendia que o ser era constituído de uma alma e um corpo, e do outro lado temos o pensamento monista de Demócrito, em que se defendia que o corpo era apenas o corpo, que os pensamentos eram provenientes de átomos e vazios, ou em termos mais atuais, de neurônios e sinapses.

Ora, se o ser é dividido entre o etéreo e o corpóreo, há de se pressupor que o perene se encontra na alma, enquanto o efêmero se encontra no corpo, sendo o pensamento, um reflexo material do mundo espiritual. Agora, se o ser é uma constituição única da matéria, há de presumir que o que há nela é apenas ela mesma, sendo os pensamentos uma consequência das circunstâncias.

O que quero dizer é que, ao definir o belo, partimos dessa ambivalência sobre a definição da constituição do ser. A questão é se o belo está no objeto, no observador, ou em ambos. Nesse caso surgem três questões: se o objeto contém o belo, nos perguntamos por que há tantas discordâncias sobre a percepção da beleza; da mesma forma que, caso a beleza seja construída internamente a partir do indivíduo, perguntamos por que há tanta concordância sobre o belo; e por último, caso a beleza esteja em ambos, questionamos por que o espírito de polêmica ainda perpetua.

Estamos, neste momento, diante de um impasse. Se a beleza estiver somente no objeto, quer dizer que estaremos tiranizados pela regra, sem a devida liberdade para escolher o que é belo por si mesmo. Em contrapartida, se a beleza estiver somente no sujeito, quer dizer que não haveria um conceito objetivo de beleza para se ancorar, tendo como consequência extrema, a consideração do repugnante como belo. Finalmente, se a beleza estivesse em ambos, quer dizer que estaríamos na utopia da harmonia conceitual.

De início, Kant faz suas considerações distinguindo o belo do sublime, que são similares, porém diferentes. O belo é caracterizado por ser singelo, alegre e estimulante. O sublime é caracterizado por ser simples, intenso e comovente. O sublime é sempre grande, enquanto o belo pode ser pequeno. O sublime é imponente e causa certo assombro, enquanto o belo pode ser sutil, admitindo certa dose de enfeites.

A apreciação do belo traz para o observador uma suave sensação de que ali nada falta, da mesma forma de que ali nada sobra, assim como acontece ao alvorecer ou ao desabrochar, entregando-nos, desta forma, um momento de contemplação que vale por si mesmo, sem a obrigatoriedade de alguma utilidade. Outra observação evidente é que é próprio das coisas serem belas pelo seu aspecto estético, sendo que é próprio dos humanos serem belos pelo seu caráter ético.

Quando um objeto é sublime, geralmente é considerado pela sua magnitude, sendo que, quando um objeto é belo, geralmente é considerado pela harmonia de seus adornos. Uma obra considerada como “clássica” pode apresentar tanto do seu aspecto sublime quanto do seu aspecto belo, isso se a definição de “clássica” for entendida aqui como aquela que transcende ao tempo e ao espaço, tendo sua apreciação estendida para além de seus limites conterrâneos e contemporâneos.

Por exemplo, uma Mona Lisa é enigmaticamente bela, uma pirâmide, por sua vez, é igualmente apreciável, porém, justamente pelo seu aspecto sublime. Uma generosidade despretensiosa é sublime, mas quando é movida por fatores externos, é entendida como um ato pequeno. Um senso de humor digno é revigorante, frequentemente tido como belo, mas quando não é dotado de valores éticos, poderá ser visto como uma piada de mau gosto. Veja que, tanto uma flor quanto um ato de bondade são tidos como belo, só que uma tem o seu valor na ética, enquanto o outro tem o seu valor no estético.

Há também um prisma platônico sobre a apreciação do belo, que é quando o artista exerce um papel de pontífice entre o mundo supra-sensível e o mundo material, resultando assim em uma representação do belo. Cabe lembrar que, para Platão, o artista que exerce mal essa função, causaria sobre a perfeição uma dupla deformação: a primeira pela percepção equivocada e a segunda pela transcrição imprecisa de tal percepção.

E como a arte participa dessa dinâmica? Pelo que se supõe, quando o artista compõe, ele condensa seus valores éticos em aspectos estéticos, valores estes que estariam presentes nele mesmo, e que passam a incorporar a obra por ele construída, unindo assim, forma e conteúdo. Agora, quando uma obra de arte é devidamente apreciada, suscita no observador sentimentos parecidos aos que permeavam o artista no momento da sua concepção, sublimando assim aspectos estéticos em valores éticos, gerando entre eles alguma identificação. Entendemos tais percepções subjetivas como entrelinhas, presentes não somente na literatura, mas também nas outras formas de arte.

O artista, antes de tudo, é um pleno apreciador. Ele primeiro aprende absorver as entrelinhas presentes na vida e na arte, para só então compor algo com essas experiências. Ou seja, ele simplesmente externaliza aquilo que capta. Claro que tudo ao seu próprio modo. Digamos que aquele que compõe, ao propor algo que possui apenas atributos conceituais, percorreu apenas metade do caminho, pois falta-lhe, nesse caso, a exposição da forma diante do conteúdo, sendo que, o oposto do caso é igualmente possível, que é quando a obra em questão apresenta apenas aspectos estéticos agradáveis, porém, com bases conceituais duvidosas.

Enfim, pra mim, a arte é uma beleza que suscita em nós o que há de mais sublime em nosso próprio interior, não acredito que haja alguma definição concreta, apenas intuo que é algo mais simbólico do que literal. Creio que ela não é um convite ao desejo para possuí-la, é mais como uma sugestão para contemplá-la, é como uma nostalgia saudável, uma reminiscência de um mundo ideal que é extrapolado para nossa própria realidade. Realidade esta que pode ser caótica e confusa, e que, apesar de tudo, é redimida pela arte em forma de beleza e construída pelos homens por meio do sublime.

 

REFERÊNCIAS

KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad.Valério Rohden e Antônio Marques. 2ª Ed. Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2008.

KANT, I. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime: Ensaio sobre as doenças mentais. Trad. Camilo Schussler Barbosa. Livraria Editora. Rio de Janeiro, 1928.

PASCAL, B. O homem perante a natureza. (Domínio público).

PLATÃO. Fedro. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério e Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Lisboa: Edições 70. 1997.

PLATÃO. Górgias. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edições 70. 2010.


Victor Craveiro. Se o que fazemos pode representar o ser, o Victor pode ser definido como​    desenhista e poeta, mas se as nossas vontades nos definem, pode se dizer que o “Eu” é aquele que deseja que as boas mudanças sejam mais rápidas do que realmente são.