Acredito que em algum momento nos perguntamos por que as coisas são o que são, ou se são mesmo aquilo que aparentam, por que achamos que algo é belo e o outro não, por que dizemos que algo é arte enquanto o outro discorda da mesma sentença. Talvez essas questões não sejam o prato principal do cotidiano, porém é um tópico discutido pela humanidade desde os primórdios da cultura, tópico esse que ainda se encontra em aberto. Apesar de tudo, ainda continuamos nos aventurando por esses questionamentos.

Em algum momento o universo poderia ter sido um ponto, ou algo menor que isso. Nesse singular momento poderia não haver nem tempo e nem espaço. Poderia haver algo ou coisa nenhuma. Poderia existir só aquele singelo ponto massivo, denso e quente. Naquele momento não havia olhos humanos para observar, nem sistemas cartesianos para medir, mas ali poderia caber toda beleza e toda arte a ser considerada. Acredito que ali estava o sublime, o quase todo ou o quase nada e, apesar de tudo, creio que essas questões não sejam tangíveis por nós, meros humanos viventes nesse pálido ponto azul. Podemos apenas apreciar o resultado e imaginar como teria sido a plenitude de tal beleza em tempos tão longínquos.

O que podemos dizer é que muitos fatos se sucederam, muitas estrelas morreram e muitas outras nasceram, muitas espécies surgiram e muitas outras sumiram, e entre esses muitos fatos um acontecimento potencialmente singular ocorreu: o homem.

Até onde se sabe, as primeiras manifestações de arte humana começaram com rabiscos na beira de algumas cavernas, o que nos deixa com pouca margem para a análise e muita margem para a interpretação. Pois bem, comecemos então pelos tempos quando quase tudo na cultura humana eram histórias. Histórias que, quando contadas de um para outro, apresentam pequenas falhas entre uma cópia e outra, assim como ocorre com os DNA’s, assim como ocorre com a foto tirada de uma foto, assim como ocorre ao telefone sem fio, assim como ocorreu com os mitos. Mitos estes que ainda vivem e ainda usamos como base para construir boa parte da nossa cultura.

Antes de tentar entender onde possa estar a beleza, quero destacar um recorte com dois mitos: um é sobre Zeus, o outro é sobre Pigmaleão.

Segundo a Teogonia de Hesíodo, Zeus foi aquele que derrotou seu pai Cronos, e Cronos por sua vez havia derrotado seu pai Urano, que abusava de sua mãe Gaia ininterruptamente, impedindo-a de gerar seus filhos. Cronos por sua vez partiu a genital de Urano no talo e jogou ao mar, afastando-o para o firmamento do Céu. Cronos então se uniu com sua irmã Reia, e dessa união surgiu Zeus, que mais tarde veio a derrotá-lo.

Pois bem, tudo isso aconteceu entre muitas lutas épicas e muitos outros personagens que não nos cabe no momento, já que essas histórias seguem e variam quase indefinidamente. O que quero dizer com isso é que Zeus, após sua vitória sobre Cronos, distribuiu o reino de Gaia entre aqueles que ajudaram a conquistá-lo, dando um pedaço a cada um segundo suas virtudes, estabelecendo assim uma ordem social coerente com a ordem universal das coisas. Ordem essa com a qual os gregos estavam muito bem familiarizados.

Por esse ângulo podemos avaliar que, se há no universo alguma ordem, a beleza derivaria dessa perfeição de encaixe, e também é natural que a arte se manifestasse de acordo com essa concepção de ordem. Concepção essa que Platão estava de pleno acordo. Ora, se a natureza é a beleza, a obra de arte seria apenas uma mera imitação dela. Platão acreditava ainda que a perfeição derivava do “mundo das ideias”, acessível apenas pelo raciocínio, pelo único lugar onde poderia se abstrair o perfeito. Sendo assim a busca pelo belo seria um ofício dos filósofos, não dos artesãos.

Ainda na Mitologia, Pigmaleão foi um exímio escultor que construiu Galatéia. Segundo sua concepção de mulher ideal como “mulher jovem e virginal”, a beleza da escultura Galatéia ainda é descrita como de uma perfeita semelhança com uma jovem que estivesse viva e somente o recato impedisse de mover-se. Durante um Festival de Verão, Pigmaleão fez uma súplica aos Deuses pra que pudesse fazer da estátua sua esposa, e os Deuses, comovidos, concederam tal desejo, dando vida à tal Galatéia. De tal união nasceu Pafos, mas que é um caso que não nos cabe agora.

Diante desses minúsculos recortes, podemos observar que o belo não se resumia ao estético. Percebemos que Galatéia era bela não somente pelos seus atributos físicos, mas também pelas virtudes observadas, sendo que ambos os critérios eram condizentes com a concepção mitológica de sociedade, e com as percepções gregas de arte e beleza também.

Nesse mesmo período, havia também um filósofo que defendia a antítese desse consenso de beleza, era Cálicles. Ele defendia que o artista era aquele que despertava as sensações, habilidade essa que era muito utilizada nas Ágoras (espaço reservado aos debates públicos na Grécia), lembrando que no mesmo período o artesão não era tido como artista. Para Cálicles um retórico poderia defender a tese “A” num momento e num outro momento a antítese de “A” , se assim fosse conveniente. Logo, para Cálicles o próprio conceito de beleza poderia ser mutável, desde que despertasse as sensações devidas no público.

Pelo pouco que absorvemos até agora, podemos perceber que os gregos tinham uma concepção bem diferente sobre muitas coisas, incluindo a beleza e a arte. À época já havia dúvidas do tipo: se a beleza está no mundo ou nos olhos de quem vê. Ou seja, pra Platão a beleza estava no mundo ideal que era “abstraível” apenas pela lógica. Pra Aristóteles a beleza estava no mundo em si, sensível aos sentidos. Pra Cálicles, a beleza estava na utilidade que dela poderia proporcionar. Pois bem, essas três vertentes se desenvolveram ao longo do tempo e foram ficando mais complexas, ganhando novos defensores e novos fundamentos para cada um dos pensamentos. Evoluções estas propostas por muitos e aceitas por um número ainda maior de indivíduos.

A arte, como qualquer campo do conhecimento, é um assunto para ser estudado em partes, com possíveis aporias no caminho. Quem sabe assim, entre os impasses e paradoxos, possamos encontrar alguma conexão entre os conceitos. Ligação que ainda não encontramos, pois não sabemos o que é beleza, apenas sabemos reconhecer o que é belo. Assim como não sabemos definir o que é arte, apenas sabemos validar aquilo que é. Tudo isso seguindo a cultura em que o individuo está inserido. Ou seja, se existe algum conceito de arte e beleza, pode ser que ele não tenha dono, pode ser que todos estejam certos, cada um a seu modo de entender essa caótica complexidade que chamamos de vida. Assim seguiremos curiosos, investigando essa singular capacidade humana, que é de compor e criar com tudo que nos é dado.

 

REFERÊNCIAS

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. São Paulo:Ediouro, 2006.

FILHO, C. B. A beleza e a arte (aula ministrada). Unimed, 2009

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo:Iluminuras, 2007.

PLATÃO. Górgias. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Edições 70. Lisboa, 2010.

PLATÃO, República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbbenkian, 2001.


Victor Craveiro. Se o que fazemos pode representar o ser, Victor Craveiro pode ser definido como desenhista e poeta, mas se as nossas vontades nos definem, pode se dizer que o Victor é aquele que deseja que as boas mudanças sejam mais rápidas do que realmente são.