No início de agosto, a Nanaka publicou um artigo no Portal Deviante destacando a crise de abastecimento de arroz no Japão, com prateleiras vazias nos supermercados e preços que dobraram em pouco mais de um ano. Ela aponta como causas o verão escaldante, pragas, aumento do consumo por causa do turismo e do consumo interno, além de políticas governamentais que, para proteger pequenos produtores, incentivam a redução de áreas plantadas.

Como solução temporária, redes de supermercados começaram a oferecer o arroz Calrose, uma variedade americana do tipo Japônica, semelhante ao consumido no Japão, mas que enfrenta resistência cultural. O que nos leva a indagar: Por quê? Por que um país carente de arroz rejeita a alternativa importada? Vamos explorar essa questão através de uma lente histórica, econômica e cultural, revelando a fascinante narrativa global do arroz, que contrasta com a escassez japonesa.

Diferentemente do Japão, onde tufões, ondas de calor e políticas restritivas limitaram a oferta e inflacionaram os preços, a produção global de arroz vive um momento de fartura. Para a safra 2025-26, espera-se um recorde de 538,7 a 542 milhões de toneladas, um aumento de 1% a 3% em relação ao ano anterior, puxado por países como Índia, Vietnã e Tailândia. O comércio internacional também deve crescer 1,4%, atingindo 60,5 milhões de toneladas. Esse boom reflete avanços em variedades resistentes, melhorias em irrigação e fertilizantes, além de condições climáticas favoráveis em regiões tropicais. Na Índia, o foco nas exportações elevou a produção, enquanto no Sudeste Asiático, investimentos em tecnologia agrícola contrabalançaram os desafios das mudanças climáticas.

No Japão, porém, a crise é estrutural: décadas de subsídios para limitar o plantio, visando evitar superprodução e manter preços estáveis em meio à deflação, reduziram a área cultivada a ponto de comprometer o abastecimento. Somado a fatores como o aumento do turismo — com maior demanda por sushi e onigiri — e o pânico de estocagem após tufões, o resultado é a escassez atual.

Economicamente, o cenário global é oposto: segundo a Trading Economics, o preço do arroz no mercado de commodities está próximo dos menores patamares dos últimos cinco anos e com projeções de cair ainda mais nos próximos 12 meses. Estoques elevados e competição global pressionam os preços, beneficiando consumidores em mercados importadores, mas não para o Japão, onde raízes históricas aprofundam o problema.

 A variedade Calrose, destacada por Nanaka como “boa para arroz frito, sushi caseiro ou solução temporária enquanto a nova safra não chega”, tem origens na imigração japonesa para a Califórnia no início do século XX. Em 1909, engenheiros agrícolas japoneses adaptaram técnicas ancestrais para cultivar arroz Japônica em solos californianos. Pouco depois, em 1948, na Rice Experiment Station, em Biggs, Califórnia, o programa da California Cooperative Rice Research Foundation desenvolveu a Calrose — um nome que une “Cal” de Califórnia e “rose”, inspirado na variedade Blue Rose da Louisiana. Esse arroz de grão médio, macio, úmido e com baixo amilose (18%), realmente é ideal para pratos como sushi ou arroz frito. Em 1976, a “Calrose 76”, uma versão semianã induzida por radiação é lançada (experimentos do tipo já aconteciam desde 1920, não foi por causa do sucesso dos X-Men na época) como sendo mais produtiva e vai se consolidar por relevância, hoje representando 85% da produção californiana.

No Japão, porém, o Calrose enfrenta resistência cultural. Comparado ao Koshihikari, mais grudento e aromático, é visto como inferior em sabor e textura. Essa desconfiança não vem de ressentimentos antiamericanos da Segunda Guerra Mundial, mas de memórias coletivas de escassez. Durante e após o conflito militar (1937-1952), a perda de territórios japoneses como Coreia e Taiwan, que forneciam 20% do arroz japonês, somada à destruição da infraestrutura e ao racionamento, levou à fome generalizada no país. Na ocupação americana, os japoneses dependeram de grãos como trigo e milho, culturalmente alienígenas para a população, o que elevou o arroz doméstico a símbolo de resiliência e identidade nacional. A palavra gohan, que significa “arroz cozido” acabou se tornando sinônimo da palavra para “refeição”, e assim acabou por refletir essa centralidade: uma refeição só é completa com arroz, de preferência cultivado em solo japonês.

A crise de 1993 reforçou essa percepção: após uma enorme crise no campo, importações emergenciais de arroz tailandês, chinês e americano foram rejeitadas por preocupações com frescor e adequação, resultando em estoques “invendíveis”. Políticas protecionistas, com tarifas altas e cotas limitadas, perpetuaram a preferência pelo arroz local, mesmo em tempos de escassez.

Quem não tem nada com isso, é os Estados Unidos, que exportam 40-45% de sua produção, incluindo Calrose, para mercados asiáticos como Vietnã, Tailândia e Malásia, onde é o arroz é valorizado por sua versatilidade. Vender arroz para o Vietnã, aliás, é um marco simbólico pós-Guerra do Vietnã, refletindo a reconciliação comercial após a normalização das relações entre os países em 1995. No Japão, a resistência ao Calrose começou a ceder em 2025, com negociações comerciais no segundo mandato de Trump, possivelmente aumentando as cotas de importação de arroz americano em 75%, um passo que pode aliviar a crise, mas volta a reascender o debate entre tradição e globalização.

Agora uma curiosidade: como já dito, no Japão o arroz transcende a alimentação. Com o tempo era inevitável que essa admiração pelo alimento se tornasse telas para a arte. Desde 1993, a tradição do tambo art em Inakadate, Aomori, usa variedades de arroz com folhas de cores diferentes (verde, roxo, e amarelo) para criar imagens gigantescas, visíveis de torres ou drones, revitalizando áreas rurais. Mas é em Gyoda, Saitama, que essa prática ganhou escala, conquistando o título de maior tambo art do mundo, certificado pelo Guinness em 2015. É em Gyoda que, durante o verão, festivais atraem turistas para admirar desenhos que retratam mitologia, samurais, temas contemporâneos, e CLARO, personagens de anime, celebrando a reverência japonesa pelo arroz como símbolo de identidade e resistência.

Campo de arroz em Gyoda, Saitama, com tanbo art retratando a famosa onda de Hokusai (“A Grande Onda de Kanagawa”), o Monte Fuji e um ator de kabuki.

É assim, entre tradição e dualidades, que o arroz — um grão simples presente na mesa de bilhões — reflete a história de superação do Japão, de um país marcado pela fome no pós-guerra que ascendeu a sinônimo de potência tecnológica. Hoje, diante de um mundo em mudança, o Japão precisa equilibrar sua herança cultural com as demandas da globalização, enquanto o arroz continua a contar sua história de resiliência, inovação e arte.

 

FONTES

Estimativa de produção de arroz pelo mundo de acordo com o USDA: https://ers.usda.gov/sites/default/files/_laserfiche/outlooks/112800/RCS-25E.pdf?v=46888

Análise do Mercado de Arroz de acordo com o Rice News: https://ssricenews.com/rice-news/top-news/global-rice-output-estimated-at-a-record-high-next-season-trade-may-be-up.html

Sobre a falta de arroz no Japão: https://www.csmonitor.com/World/Asia-Pacific/2025/0530/japan-rice-shortage

Sobre o valor cultural do arroz e o estigma do arroz estrangeiro no Japão: https://spice.fsi.stanford.edu/docs/rice_its_more_than_food_in_japan

Imagem das imagens: https://www.pexels.com/pt-br/foto/california-maki-on-dish-357756/