Love, Death & Robots é uma série ótima! Mesmo! Mas esse texto não vai ser um panfleto encomendado pela Netflix – onde ela está hospedada – e nem uma resenha sobre o quão disruptivo e revolucionário o seriado seja. Porque não é. Nem a primeira, muito menos a segunda opção. risos Resolvi escrever sobre essa série porque eu realmente gostei e, assistindo, me peguei pensando em algumas questões que julguei interessantes compartilhar.

Primeiramente, pra quem gosta, tal qual esta redatora que lhe escreve, das temáticas apresentadas no título, não tinha como Love, Death & Robots passar despercebida. Na verdade, complementaria os termos pra deixar a manchete mais precisa: Love (and sex), Death (and blood) & Robots (and tecnhology) são basicamente os enunciados a respeito dos quais versam todos os 18 episódios lançados. De forma independente, eles se apresentam como uma “antologia animadas para adultos”, sem correlação entre uma história e outra, em curtos ou curtíssimos capítulos (de 5 a 20 minutos, no máximo), ou seja, como contos que criaram vida. E isso não é por acaso. Tratam-se de fábulas digitais inspiradas ou adaptadas de textos ou obras de diversos autores de ficção científica (duas mulheres e 14 homens), roteirizados, em sua grandessíssima maioria, por Philip Gelatt. Falam sobre futuros, distopias, fantasia “misturada” com realidade, circunstâncias estranhas ou reflexões filosóficas sobre os indivíduos em relações high-tech. Mas é sobre ela ser “animada” e “para adultos” que eu gostaria de conversar com vocês.

Assinam a criação e direção Tim Miller e David Fincher. Miller é o diretor novato responsável por “Deadpool” e está à frente de uma das companhia de animação que trabalhou na série e que foi responsável pelo Computer Graphic Imagery (CGI) de algumas cutscenes de jogos como “GTA: San Andreas” e “Halo” e dos trailers da trilogia “Batman: Arkham” entre outras produções importantes. Já o experiente Fincher dirigiu “Alien 3”, “Clube da Luta”, “O Curioso Caso de Benjamin Button”, “Garota Exemplar” e mais alguns títulos de peso, também integrando a equipe das netflixianas “House of Card” e “Mindhunter”. Assinam a produção de Love, Death & Robots, em conjunto com os diretores, Joshua Donen e Jennifer Miller.

A maior peculiaridade, porém, é o fato de que a execução dos episódios não ficou a cargo somente da companhia de Miller. Os estúdios de animação integrantes do projeto estão espalhados pelos Estados Unidos, Espanha, França, Coréia do Sul, Inglaterra, Polônia, Canadá, Hungria, Austrália e Dinamarca… Ufa! Fiz questão de nomear cada país porque isso me chamou uma tremenda atenção e faz parte das observações que queria fazer neste primeiro tópico.

Ao infinito e além… dos recursos digitais!

Minhas amigas e meus amigos, como a computação gráfica evoluiu… Eu sei que para quem trabalha na área ou quem é entusiasta dessa arte isso não é nenhuma grande novidade. Entretanto, chuto que até para quem está imerso neste universo de animações digitais, Love, Death & Robots surpreendeu. Porque, olha, é de cair o queixo a qualidade do material rodando ali, na tua tela do computador, da televisão ou do mobile.

Tudo é muito bonito. A entrega dos produtos finais é impecável, não só quando os episódios pretendiam reproduzir o hiper realismo em suas texturas insanas, mas, da mesma forma, quando a proposta era apresentar algo artisticamente engajado, o traço, os contrastes, a escolha estética, é de encher os olhos. Para fazer esse texto pesquisei um pouco sobre os estúdios, entrei nas homepages e fiquei, mais uma vez, maravilhada com o trabalho desses artistas e engenheiros técnicos. Não sei qual foi o critério de escolha, a ordem dos convites, os prazos dados para a edição, as negociações feitas com os criadores, porém, de uma forma geral, pra quem só é expectador, as animações 2D e 3D exibidas nos 18 capítulos são de tirar o fôlego.

 

 

Não tem mais volta: o CGI está ultrapassando dificuldades práticas outrora limitantes, suavizando bordas, sombras, expressões humanas, criando nuances de tons e respostas rápidas. Em dezembro de 2018, por exemplo, a NVIDEA, fabricante responsável por algumas das melhores placas de vídeo do mercado, anunciou uma nova tecnologia capaz de produzir, processar e transmitir imagens digitais com um nível de foto realismo impressionante. A linha RTX usa de inteligência artificial (!!!) para gerar essas imagens fidedignas, utilizando um algoritmo chamado ray tracing para renderizar as informações gráficas e o resultado é impressionante. Eu sou incapaz de explicar como tal recurso opera na prática, entretaaaanto, segue o link para um vídeo no qual o youtuber Leon Martins demonstra como as coisas funcionam e o porquê de ser tão admirável.

Meu ponto é que a qualidade gráfica combinou demais com a temática de Love, Death & Robots, ampliando muito o efeito e o impacto dos cenários concebidos e das situações retratadas. Seja te jogando em uma corrida espacial, seja apresentando uma China steampunk, seja acordando entidades demoníacas, seja em um futuro no qual é possível fazer transferência de consciência, seja pilotando mecas gigantes, seja usando lobisomens em guerras no Oriente Médio, seja em uma viagem psicodélica à beira da estrada, enfim, todas as cenas da série foram tão bem executadas que favoreceram muito a experiência de se estar assistindo a uma antologia futurista, meio bizarra, mas ao mesmo tempo intrigante. Tipo um Black Mirror das animações. Não que todos os episódios sejam, assim, excepcionais. Na realidade, lendo algumas resenhas e críticas na internet, Love, Death & Robots agradou, mas não foi assim, oh!, uma unanimidade. Alguns contos são maravilhosos, mas a maioria é ok. Eu mesma dispensaria os quatro últimos, e um ali no meio, que fala de um iogurte que assume o controle da sociedade humana. Pois é… rs

Para fechar, acredito que o avanço da indústria de computação gráfica e, consequentemente, o substancial aprimoramento das animações digitais influenciará – se já não influencia – a maneira como refletiremos e retrataremos nossas previsões do amanhã, e do depois de amanhã. E isso pode ser muito interessante. Como tentei dissertar neste outro texto aqui sobre distopias, a forma como encaramos as relações sociais, culturais e políticas do presente moldam nossas expectativas do porvir, e os meios que possuímos para ilustrar esses anseios também são peças fundamentais na construção desse imaginário hipotético. Os estúdios que animaram Love, Death & Robots estão em muitos lugares. Na América do Norte, na Europa, na Ásia, na Oceania. E não por acaso, já que dependem de uma estrutura tecnológica privilegiada e desigualmente concentrada. Mas, por outro lado, denotam certa potência – quase global – de ampliarmos a nossa capacidade de materializar o que pensamos do que será de nós.

É Not Safe For Work, mesmo. E ainda bem!

O segundo tópico que queria abordar nesse texto trata da parte “para adultos”, descrita no release da série. E pensar sobre o espaço da arte erótica e/ou pornográfica na internet, hoje, se tornou um assunto inquietante para mim. Desde o anúncio do banimento de todo e qualquer material com este teor da plataforma Tumblr, em dezembro do ano passado, venho me preocupando exatamente com a possibilidade de testemunhar um movimento cada vez maior de censura nos espaços virtuais. Na contracorrente, Love, Death & Robots exibe um conteúdo sexual explícito, que de maneira não gratuita, compõe as tramas nas quais a interação (ou exposição) íntima dos personagens faz parte do enredo proposto.

“Como assim você está querendo insinuar que na internet, LOGO A INTERNET, não tem lugar para pornografia??” Calma. Para a indústria pornô tem muito espaço. Muito mesmo. Isto é, quando o conteúdo +18 visa objetivos comerciais e/ou é elaborado de maneira absolutamente padronizada e objetificada, sem dúvidas o mundo virtual garante o lugar de todos os XXX possíveis. Falo aqui de uma forma artística ou política de lidar com o sexo. Aí sim a ameaça de perda de espaço parece caminhar a passos largos. É preciso diferenciar tais áreas e tais intenções.

O que observo, nas minhas andanças por rotas paralelas da pornografia na internet (calma de novo! rs Não estou me referindo a internet profunda, só a sites e perfis em redes sociais que compartilham um conteúdo erótico milhões de vezes mais criativo e excitante do que o que a indústria promove), é um tipo de moralização estranha. O caso que citei do Tumblr levantou um debate fundamental sobre isso. A comunidade formada em torno dos posts e reposts de conteúdo adulto em anos de plataforma era diversa e segura. Distribuía-se materiais autorais de fetiches, corporalidades e estilos de vida dissidentes, oxigenando a pluralidade própria da nossa sexualidade e providenciando uma ferramenta prática onde era permitida a troca de desejos e experiências não normativas.

A decisão do Tumblr de proibir fotos, vídeos ou GIFs que exibissem material explícito, além de ilustrações que representassem atos sexuais, baseou-se em denúncias sobre a hospedagem, em seus diretórios, de pornografia infantil – que é crime. E que pornografia infantil seja crime e que deva ser combatida não há questionamentos. O debate gerado foi quanto aos meios escolhidos pela plataforma para lidar com o ilícito e as motivações para tal. Banir TODO o material explícito como uma forma de responder as acusações foi estapafúrdio. Tornar o site mais eficiente na detecção de conteúdos ilegais e agir rigorosamente contra qualquer indício de violência e não consentimento seria um desfecho, penso, mais coerente e fortalecedor da comunidade… Entretanto, parecem que outros interesses influenciaram na decisão da empresa, proporcionando um sentimento de orfandade e censura. Se quiser entender mais sobre o caso, essa matéria aqui faz uma boa reflexão.

 

Como já dá para perceber nos trailers, Love, Death & Robots faz uso de muitas imagens eróticas ou dos corpos em detalhe, inclusive mostrando alguns pênis, coisa bastante rara nos conteúdos mainstream. Já que sou admiradora de uma cultura sexual livre, em especial quando sagazmente misturada às artes, me vi contemplada com a estética direta e ao mesmo tempo justificada das cenas mais picantes. Veja bem, a série, como adiantei lá no início, não é, assim, tão revolucionária. Nem escatológica. Ou mesmo grotesca. Não se pretendeu, pelo menos aos meus olhos, chocar. Mas também não se esquivou de usar dos dispositivos da sensualidade para dar o tom a alguns dos contos exibidos. O que, de novo, me agradou muito.

Ver esse tipo de conteúdo sendo veiculado em uma gigante do mercado como a Netflix foi muito gratificante. Agregada ao universo pop, então… Não à toa Tim Miller, na ocasião do lançamento da série, pareceu genuinamente empolgado com o lançamento de sua criação:

“Love, Death & Robots é o meu projeto dos sonhos, combina o meu amor pela animação e histórias incríveis. Filmes midnight, histórias em quadrinhos, livros e revistas de ficção fantástica me inspiraram por décadas, mas foram relegados à cultura marginal dos geeks e nerds dos quais eu fazia parte. Estou tão excitado que o panorama criativo finalmente mudou o suficiente para que a animação com temas adultos se torne parte de uma conversa cultural mais ampla.”

Nem tudo são flores, claro!

Como principal ponto negativo não posso deixar de salientar que existe uma insistência em mostrar violência explícita contra as mulheres dentro de narrativas bem batidas sobre como podemos nos “reerguer” perante um trauma e conseguir nos vingar ou simplesmente nos livrar de uma situação terrível, like a fierce woman. É claro que nós conseguimos fazer isso. Nós somos bem fodonas mesmo. Mas apostar nesse tipo de trama me parece um pouco antiquado, ligado a um tipo de simbolismo que já estamos conseguindo transformar (mesmo que aos poucos). A obra não precisa dizer que nós sofremos pra c@%*&, e muito menos que precisamos desse sofrimento para crescermos ou lutarmos como nós sempre fomos capazes de fazer. Não somos apenas reativas. E essa é a grande lição que pareceu escapar aos criadores.

A construção das personalidades femininas na ficção não precisa mais estar atrelada a um evento apelativo para funcionar e ter impacto, ainda mais quando esse evento baseia-se quase exclusivamente no nosso gênero: estupro, abuso, indiferença. Dá pra criar um contexto ou um background que ultrapasse essas metáforas previsíveis, essas alegorias caducas. Mas veja bem, não são todos os episódios que partem desse roteiro de “superação”. Pelo contrário. A esmagadora maioria deles não fala sobre isso. E, pra reforçar essa contradição ambulante que chamo de eu, talvez os meus dois preferidos sejam os que tem esse toque de vingança mulheril que a gente gosta de ver acontecendo… O que não invalida meu argumento. :)

A minha crítica, portanto, não é sobre querer que essa narrativa acabe. Nem mesmo afirmar que sou, em particular, contra esse tipo de roteiro. Não sou mesmo. Histórias de resiliência e de ascensão pessoal tem seu lugar garantido na literatura – e na arte, em geral – porque são inspiradoras mesmo, porque conversam com nossas expectativas, porque nos trazem certo alívio ou certa alegria. E são importantes por causa disso. A minha crítica está no fato de Love, Death & Robots eleger justamente a violência contra as personagens femininas como pano de fundo quando querem contar essas histórias.

E quanto à qualidade técnica das animações, para os mais críticos, alguns episódios parecem mero portfólio dos estúdios responsáveis pelo design gráfico. Como se a história em si não fosse o foco do capítulo, e sim uma “desculpa” para demonstrar a capacidade e a potência dessas empresas em realizar um belo projeto. Que seja. Eles entregam uma arte linda, de qualquer jeito, demonstrando a preocupação que os criadores e os animadores tiveram em unir uma capacidade computacional absurda com uma concepção artística de altíssimo nível. Mesmo nos contos que eu, particularmente, não curti, a experiência visual foi suficiente para eu terminar o capítulo satisfeita.

 

Depois vocês me dizem o que que vocês acharam? :)