A maioria das pessoas aproveitaria um sábado à noite de folga para uma agradável jornada de seriados, eu topei encarar uma jornada de debates eleitorais. Assisti aos 2 até então disponíveis no YouTube (esse texto foi escrito no dia 20/09/2018): o da Rede TV e o da Band. Foram aproximadamente 6 horas de muitos risos com direito a pipoca e a descoberta do próximo talento do Stand Up brasileiro (o que vocês acham da URSAL?). Porém, em um cenário onde prevaleceu a discussão sobre a segurança pública e sobre o desemprego, senti que jogaram a saúde para escanteio, não houve nenhuma proposta que me chamasse a atenção nesse campo.

Os nossos presidenciáveis apenas destacaram os temas que, segundo as pesquisas de opiniões prévias, estão no topo das preocupações presentes e futuras dos eleitores. Isso me incentivou a escrever um texto que jogue os holofotes para um assunto que, se negligenciado, provoca grande prejuízo no mercado de trabalho e que é diretamente responsável pela sobrevivência das vítimas resgatadas da violência urbana: o SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO.

O nosso SUS (Sistema Único de Saúde) funciona baseado em princípios, vou explicar cada um deles e na sequência contextualizar com as eleições presidenciais. O primeiro princípio é a Universalidade: a saúde é direito de todos, portanto todos devem ter acesso ao atendimento pelo SUS assim como as suas políticas de promoção à saúde. E quem mais em sã consciência cria um sistema de saúde com acesso para todos? Pois a Universalidade é um princípio também do sistema de saúde Canadense e da maioria dos países da Europa ocidental com destaque para Reino Unido, Alemanha e França. Para quem é fã de carteirinha de tudo que vem dos EUA e achou estranho ele estar de fora desta lista: não, o sistema de saúde deles não preza pela Universalidade. “Mas eles não são o melhor sistema de saúde do mundo?” Já diria o fanboy dos ‘States’. Apesar da pesquisa e desenvolvimento de tecnologia médica de ponta, 9,1% dos americanos simplesmente não têm acesso a atendimento médico, enquanto nos países europeus e no Brasil esse percentual não chega a 1% (OCDE). Outro fato curioso é como os europeus gastam metade do gasto americano em saúde pública para entregar resultados similares e em alguns campos até superiores. Ou seja, estamos no caminho certo, o problema é que, diferentemente dos europeus e canadenses, ainda não chegamos lá. Porém ter quase todo mundo atendido não significa que estão sendo atendidos com qualidade. Na sua região só tem uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) que vivem lotadas? Desconfie do presidenciável que tá prometendo levar UBS e UPAS para sua vizinhança e passe a cobrar o maior responsável por isso: o prefeito que a sua cidade elegeu nas últimas eleições. Calma, você já vai entender o porquê. Sigamos em frente.

O segundo princípio é o da Equidade-veja que não é igualdade. Equidade é tratar os desiguais de forma diferenciada, elencando mais recursos e mais atenção aos mais vulneráveis e necessitados. Quais presidenciáveis têm propostas de políticas públicas nacionais para setores vulneráveis da sociedade? Quais pretendem direcionar maior aporte de recursos para regiões com IDH deficitário e maiores problemas de saúde pública? Mais uma vez reforçando que o governo federal é responsável por metade do financiamento do SUS e por planejar as políticas nacionais de saúde pública, mas quem executa lá no local onde você mora continua sendo o governo municipal.

O próximo da nossa lista de princípios é a Integralidade. Promover saúde pública não é apenas providenciar atendimento médico quando você está doente. Saúde integral é garantir o bem-estar físico, psíquico e social da população com ações no plano econômico, social e ambiental. A palavra-chave desse princípio é a prevenção. Esse é o segredo dos europeus para gastar menos e entregar mais que os americanos. Enquanto a medicina norte americana é focada no processo curativo, que é mais dispendioso e nem sempre é reversível, os europeus focam na medicina preventiva, com melhor custo-benefício. Um tópico interessante deste tema, que nem mesmo a nossa presidenciável musa ambientalista citou nos debates, é a Avaliação do Impacto a Saúde (AIS) em projetos implementados no Brasil, seja pelo setor público ou privado. A legislação ambiental brasileira prevê que qualquer projeto ou processo que seja instalado em determinada região necessita de avaliação quanto a alteração na saúde, segurança e bem-estar da população. Porém no mundo real das avaliações de impacto ambiental (AIA), isso de fato não é considerado, tanto pela falta de treinamento dos técnicos responsáveis, quanto por falta de legislação específica, além da ausência do órgão mais capacitado para isso (Ministério da Saúde). A AIS deveria ser feita paralela a AIA, ainda na fase de desenvolvimento do projeto, seja ele público ou privado. O intuito seria gerar uma série de recomendações, embasadas em evidência científica, que não permitam que os potenciais efeitos sobre a saúde da população sejam negligenciados. Mas isso não é gerar mais burocracia? Burocracia não é coisa de país subdesenvolvido? Enquanto nenhum país da América Latina institucionalizou o AIS, ele é usado nos EUA e em boa parte da Europa Ocidental.

Além destes 3 princípios normativos, ainda temos mais 3 princípios organizativos. Não desistam de mim, acreditem estou resumindo bastante o SUS para vocês. O primeiro dos princípios organizativos, é o da Regionalização e Hierarquização. Esse é a espinha dorsal do SUS, trata da estruturação da rede de atendimento. Na teoria a porta de entrada, ou seja, o primeiro atendimento do SUS deveria ser em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), em caso de consulta médica agendada, ou em uma Unidade de Pronto atendimento (UPA) em caso de urgência/ emergência. Se necessário, em caso de consulta agendada, a UBS pode te encaminhar para um ambulatório de especialidade (ambulatórios médicos de especialidades -AMEs, policlínicas, ambulatórios hospitalares), e em caso de urgência, a UPA pode te encaminhar para um centro de referência (em trauma, em queimados, em cirurgias, em UTI, em infartos, etc…).Tanto o ambulatório de especialidades quanto os centros de referência, conforme a necessidade, podem te encaminhar  para um Hospital de maior porte, com um serviço ainda mais especializado (neurocirurgia, transplante, tratamento de câncer), ou que possua tecnologias específicas. A hierarquização seria justamente essa divisão da rede de atendimento em: baixa complexidade (UBS, UPAS), média complexidade (AMEs, policlínicas, hospitais de médio porte, algumas UPAS), e alta complexidade (hospitais de grande porte).

Qual a utilidade disso? A maioria dos pacientes terão seus problemas resolvidos com menor custo e maior eficiência pela baixa e média complexidades, deixando a caríssima alta complexidade para os que forem selecionados pelas complexidades anteriores. A regionalização é a definição de onde esses serviços de atendimento serão alocados, em que quantidade e como os pacientes são encaminhados entre eles. Um município de 15 mil habitantes não tem condição financeira e nem volume de atendimento para sustentar um Hospital de tratamento de câncer, sendo o mesmo melhor aproveitado em uma cidade maior como uma capital. Porém para que os pacientes destas cidades pequenas tenham atendimento em caso de câncer, por exemplo, eles são encaminhados para o município com o Hospital de Câncer. Assim temos uma regionalização que vai de municípios menores com atendimento de baixa complexidade que podem referenciar para municípios maiores que servem de polo para atendimentos de média complexidade, que por sua vez podem referenciar para municípios maiores ainda que são referências regionais em atendimentos de alta complexidade. Os responsáveis em organizar as redes regionais de atendimento são os governos estaduais em negociação com os municípios, portanto, além de cobrar os prefeitos, fique atento ao seu voto para governador. E onde entra o futuro presidente na rede de atendimento? Como principal financiador do SUS, o governo federal garante a verba para que a rede funcione, além de definir as políticas de saúde que as secretarias estaduais e municipais irão implementar. Aumento do aporte financeiro ao SUS seria bem-vindo, nós somos o único país entre as 10 maiores economias do mundo em que o gasto privado em saúde supera o público (superamos até os EUA nessa). Nosso gasto público per capita em saúde chega a ser menor que a média mundial.

O princípio organizativo seguinte é a Descentralizaçãocom comando único. Nele as responsabilidades são distribuídas entre as esferas federal, estadual e municipal, com cada setor sendo autônomo e soberano em suas atividades. Repare que o Governo Federal não “manda” no Governo estadual e muito menos no Municipal. Todo o planejamento é organizado entre as diferentes esferas de governo através de negociação. Enquanto o Ministério da Saúde é o principal responsável pelo financiamento, as secretarias estaduais são as principais responsáveis pela organização da rede e as secretarias municipais pela execução da assistência e das políticas de saúde federais, estaduais e municipais. Espero que até o final do texto você já tenha descoberto o número da ouvidoria da secretaria municipal de saúde, apesar do presidente não mandar no prefeito, o prefeito trabalha para você, cobre-o. Claro que o Ministério da Saúde não pode simplesmente assistir aos governadores e prefeitos pegando a verba federal, somando às suas e fazendo tudo ao seu bel-prazer. Presidenciáveis, fiquem à vontade para propor melhores métodos de análise e monitoramento sistemático e contínuo das diferentes esferas de gestão do SUS. Isso porque os existentes apresentam enorme fragilidade, sendo pouco utilizados nas tomadas de decisões dos gestores. Para que a sociedade cobre e denuncie é preciso ferramentas que forneçam informação com transparência e o governo federal pode ajudar muito nesse aspecto. Vou deixar um link nas referências para o PROADESS, ferramenta criada pelo meio acadêmico para acompanhamento de indicadores do SUS, é necessário um conhecimento básico de estatística e tabelas para melhor aproveitamento das informações presentes nele.

O último princípio diz respeito a você: trata-se da Participação Popular. Ele garante que todos os conselhos de saúde a nível federal, estadual e municipal tenham representantes dos usuários. Antes de cobrar o presidente, você sabe quem são os conselheiros que estão te representando em cada esfera de gestão? Mais que isso, já pensou em como você poderia se tornar um desses conselheiros?

Até aqui expliquei e dei dicas de como avaliar os projetos dos presidenciáveis em relação a simples implantação do SUS em sua plenitude. Nosso sistema de saúde sofre do mal de nunca ter sido completado de acordo com seu projeto original, é um “work in progress” há 30 anos. Assim não me surpreende a ausência de debate sobre o futuro dos sistemas de saúde. Porém, se eles não estão levantando esse tema, é porque ele ainda não é prioridade entre nós. Enquanto temos um SUS projetado na década de 90 e ainda inacabado, o resto do mundo pensa em como atualizar os seus sistemas de saúde para introduzi-los na era digital. Como facilitar o acesso a saúde e a informação usando a internet e as redes sociais? Como melhorar ainda mais o custo-benefício utilizando as novas tecnologias disponíveis para evitar procedimentos e internações desnecessárias? Como inserir a medicina genética e personalizada em um contexto de custos crescentes e limitações no aumento do orçamento da saúde pública? Qual será a aplicação da robótica e do Big Data na melhor gestão dos recursos disponíveis?

Já disseram que sou ingênuo, ou que estou com uma expectativa muito mais elevada que a qualidade dos presidenciáveis, mas ainda faltam debates de grandes emissoras e sigo atento para ver quem pode me dar pelo menos uma resposta a essas perguntas.

 

Imagem de capa: SOOS GRAVITY FALLS

REFERÊNCIAS:

Princípios do SUS

-Cartilha sobre o SUS

-Investimento do governo em saúde

-PROADESS-Ferramenta acadêmica de avaliação do SUS

-Avaliação do Impacto a Saúde

-Sistemas de saúde Europeu e Americano

-Desafios no futuro dos sistemas de saúde


Diogo “Black” Ribeiro. Médico, com especialização em Cirurgia Geral e Coloproctologia. Aprendeu a ler com a revista Superinteressante, e viaja para os plantões escutando Scicast. Após reclamar de como as pessoas não dão bola pra ciência levou um sermão da esposa, que lhe ensinou que só existe o ignorante pela falta de empenho de quem possui o conhecimento. Desde então dedica-se a escrever textos de divulgação científica para que a filha Júlia leia um dia.