Autor: João Centurion Cabral *

Muitos filmes e séries sobre distopias disfarçam, através da ação ou da complexidade de suas tramas, o seu verdadeiro tema central: as profundezas da natureza humana sob condições extremas. Em meio à luta pela sobrevivência, as máscaras caem e as camadas mais obscuras do comportamento humano emergem, revelando em muitas pessoas a frieza e a falta de empatia. O espelho metafórico dessas obras extraordinárias reflete, de maneira hiperbólica, as fundações de nossa própria sociedade em momentos de crise. Em muitas narrativas, as desigualdades se tornam gritantes e os mais vulneráveis são deixados para trás enquanto os “privilegiados” se agarram aos poucos recursos disponíveis, lutando ferozmente pelo seu controle.

Isso nos remete ao cenário catastrófico enfrentado pelo Rio Grande do Sul, onde os eventos climáticos extremos provocam enchentes e destruição em uma grande parte do estado. Lamentavelmente, podemos traçar paralelos perturbadores entre os enredos distópicos das ficções e a realidade angustiante que assola nossa região. Neste contexto de desastre que nós gaúchos enfrentamos, as disparidades sociais se acentuam, ecoando as dinâmicas de uma sociedade já assimétrica. Enquanto alguns lutam para sobreviver nas águas das enchentes ou com o que sobrou delas, outros se aproveitam da desgraça alheia em busca de lucro rápido ou prestígio, evidenciando um lado sombrio da humanidade que contradiz a solidariedade que desejamos ver em momentos difíceis.

Nessa calamidade pública que assolou o estado, muitas pessoas correram aos mercados para forrar seus estoques de galões de água, mesmo em cidades onde o abastecimento não foi interrompido, ignorando o fato de que outros podem estar em necessidade urgente de tais produtos. As prateleiras de alimentos e de outras mercadorias essenciais estão ficando mais e mais vazias em algumas cidades, revelando a tragédia dos bens comuns, quando interesses pessoais ferem os interesses da comunidade. Somado a isso, os saques começam a acontecer e os preços de produtos básicos começam a subir por ganância desenfreada e, assim, a ficção distópica se torna cada vez mais real.

No entanto, assim como nas tramas dos filmes que tanto nos emocionam, sempre há uma reconfortante esperança humanista em meio às lamas da adversidade. Em momentos de crise surgem inúmeros indivíduos que desafiam as tendências egoístas, estendendo a mão para quem precisa. Eles nos lembram que, mesmo nos momentos mais tempestuosos, a humanidade ainda é capaz de grandes gestos de solidariedade e compaixão. Assim como os personagens de ficção científica, esses benfeitores não nos deixam esquecer que a natureza humana também é composta pela cooperação e pela empatia.

As colaborações genuínas podem propiciar soluções criativas que nos guiam até a superação coletiva. Desta forma, entendemos que dentro de nós convivem tendências muito diversas e complexas, que expressam do pior ao melhor da nossa espécie, cabendo a nós o poder de decidir o lado a ser mostrado em momentos de crise. A solidariedade que o povo brasileiro está demonstrando nos dá a confiança de que juntos somos mais fortes e mais resistentes do que jamais poderíamos ser individualmente.

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* Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande e Coordenador do Laboratório de Neurociência Social