Muito além, nos confins inexplorados da região mais brega da Borda Ocidental desta Galáxia, há um pequeno sol amarelo e esquecido. Girando em torno deste sol, há um planeta praticamente inofensivo, cujas formas de vida, descendentes de primatas são extraordinariamente primitivas.

Uma dessas formas de vida, chamado de “o verdadeiro DNA” por si mesmo, e de Douglas Noel Adams por seus semelhantes, publicou há 42 anos o primeiro livro da trilogia de cinco, O Guia do Mochileiro das Galáxias. A história do Guia em si é um pouco mais antiga, sendo apresentada aos terráqueos inicialmente como um programa de rádio… mas o tempo é uma ilusão, não é mesmo?

Descrição da imagem: cena da série d’O Guia do Mochileiro das Galáxias (1981), com Ford dizendo a Arthur: “O tempo é uma ilusão. A hora do almoço é uma ilusão maior ainda” (do original em inglês: “Time is an illusion. Lunchtime doubly so”).

 

Se você chegou aqui, mas não sabe o que é o Guia do Mochileiro das Galáxias:

A história começa mostrando Arthur Dent, um inglês que tem uma vida comum até que o conselho municipal decide derrubar sua casa, sem muito aviso, para construir um desvio rodoviário. Não bastasse esse problema na vida de Dent, após passar algum tempo deitado na lama em frente aos tratores, ele descobre que seu amigo Ford Prefect é um alienígena e que a Terra está a minutos de ser demolida para que uma via expressa hiperespacial seja construída. Arthur e Ford conseguem fugir antes do desaparecimento da Terra e, para saber o que acontece depois, você precisa ler o livro. E pode seguir no texto, porque não tem spoilers.

 

A VIDA

A própria forma de como a ideia do Guia surgiu virou uma história que Adams afirmava não se lembrar mais se era real ou não, após contá-la diversas vezes. Ao final de um mochilão pela Europa em 1971, realizado com a ajuda do livro “O Guia do Mochileiro da Europa” (tradução livre do original “The Hitchhiker’s Guide to Europe”), nosso mingo estava em Innsbruck, na Áustria, e passou metade do dia em busca de uma carona para outro lugar. Não conseguindo, gastou as últimas moedas em algumas canecas de cerveja e foi procurar um campo para dormir sob as estrelas. Ali Adams imaginou como seria pegar carona por toda a Via Láctea.

“Eu estava caído de bêbado em um campo de Innsbruck… Não muito bêbado, só bêbado do jeito que a gente fica quando toma algumas cervejas fortes após dois dias seguidos sem comer, por ser um mochileiro quebrado. Estamos falando de uma leve incapacidade de ficar em pé… A noite estava começando a cair no meu campo à medida que ele ia girando preguiçosamente debaixo de mim. Quando as estrelas apareceram, pensei: ‘Oh, parece ser muito mais interessante lá em cima’. Um título caiu do céu: O guia do mochileiro das galáxias. Parecia um livro que alguém tinha de escrever, mas não me veio à cabeça que eu deveria ser a pessoa que o faria… Se tão somente alguém o escrevesse, eu, quanto a mim, colocaria a mochila nas costas e daria no pé rapidinho. Tendo tido esse pensamento, adormeci imediatamente e esqueci isso por seis anos.”

Durante esses seis anos, Adams teve diversos trabalhos (nenhum deles estável) como roteirista de esquetes de comédia para programas de rádio e TV, dentre elas Monty Python, o que foi um sonho realizado para o roteirista. Algumas dessas esquetes serviram de base para ideias que foram aplicadas no Guia e além disso fatos da própria vida do autor e de seus amigos serviram de inspiração. Por exemplo, a falta de vontade de Marvin de se falar sobre a vida é diretamente baseada numa fala do colega, também roteirista de comédia, Jon Canter. Outro exemplo interessante é que a importância de um mochileiro sempre saber onde está sua toalha veio do fato de que quando Adams viajava, ele nunca sabia onde sua toalha estava e considerava isso uma demonstração clara da desorganização de sua própria vida.

Descrição da imagem: cena do filme d’O Guia do Mochileiro das Galáxias (2005), com Ford dizendo a Arthur: “Se você quiser sobreviver aqui, você precisa saber onde sua toalha está” (do original em inglês: “If you want to survive out here, you gotta know where your towel is”).

 

Ainda que a fala de Marvin tenha sido feita por seu amigo, no final de 1976, Adams estava a própria encarnação de seu personagem que seria futuramente escrito:

“Eu perdi toda a confiança em minha capacidade de escrever ou atuar ou fazer qualquer coisa que fosse… e entrei em uma espiral catatônica de depressão.”

Em meio à tristeza e um complexo de inferioridade, em fevereiro de 1977 Adams recebeu uma proposta para escrever sua própria série original, sendo possível o desenvolvimento de suas ideias para uma comédia misturada com ficção científica. Ainda, para melhorar mais seu ânimo, no mesmo ano, após a apresentação do roteiro-piloto do Guia e com uma temporada inteira contratada, Adams recebeu uma oferta para trabalhar como roteirista de Doctor Who, realizando mais um sonho do mingo.

Porém, como a vida é feita de altos e baixos, o trabalho em Doctor Who não saiu como esperado, uma vez que suas ideias eram podadas pela BBC. Trabalhando de forma exaustiva para atender os pedidos da emissora de TV, além da limitação dos efeitos visuais da época (ainda mais para alguém acostumado com o rádio, onde os efeitos são sonoros), Adams foi deixando seu trabalho para escrever os demais episódios do Guia para o rádio de lado.

Com isso, a entrega dos roteiros do restante da temporada da série de rádio do Guia foi feita na base da correria nos últimos momentos possíveis, sendo que os dois últimos episódios precisaram ser co-escritos pelo amigo de Adams, John Lloyd. Não que isso fosse uma surpresa, já que Adams era conhecido por fazer as coisas em cima da hora.

“Eu adoro prazos. Adoro o som que eles fazem ao passar por mim.”

Apesar de tudo, em março de 1978, a série de rádio do Guia foi liberada para o público e, diferente do que Adams esperava, foi um grande sucesso.

 

O UNIVERSO

A história foi tão aclamada pelo público que fez surgir uma nova oportunidade de trabalho para o autor.

“Chegou um editor e me pediu para escrever um livro, o que era uma ótima maneira de entrar no mercado editorial. Pensei que era uma oportunidade de ouro, porque, obviamente, a maioria das pessoas enfrenta uma horrenda quantidade de dificuldades quando escreve um romance para ver no que vai dar e então tenta fazer alguém se interessar por ele. E eu sabia que, de repente, tinha conseguido uma chance de passar por cima de tudo isso.”

E aqui, novamente se dispondo a fazer muitas coisas de uma só vez e não se atentando aos prazos, mesmo com um livro e uma segunda temporada do programa de rádio encomendados, Adams aceitou um trabalho ainda maior na TV, como editor de roteiro de Doctor Who, seguido pelo início da produção de uma peça teatral do Guia.

Para o livro, Adams poderia apenas ter pego o roteiro da série de rádio e adaptado para a forma de romance, o que culminaria em uma entrega rápida e sem problemas, mas não foi o que aconteceu…

“Não quero apenas reproduzir os roteiros – isso seria trapacear e fazer os leitores perderem tempo. E eu sempre quis escrever um romance, porque, bem, todo mundo quer escrever um romance. Eu só sei que nunca teria escrito de fato, mas alguém me abordou e disse ‘Você pode escrever um romance baseado nisso?’.”

Como para o, até então, roteirista, sua entrada na carreira como autor de livros ocorreu de forma facilitada, ele acreditava que precisava trabalhar mais, por isso Adams decidiu reescrever sua história.

Descrição da imagem: Douglas Adams segurando um livro escrito “Don’t panic” na capa (“Não entre em pânico”, em português), 1978.

 

Um problema envolvendo isso tudo é que, apesar de a ideia do Guia ter vindo de Adams, se você bem lembra do que contei anteriormente, os dois últimos episódios da primeira temporada da série de rádio foram coescritos por seu amigo. O ponto é que Lloyd sempre teve a vontade de escrever um livro de comédia, mas Adams o avisou que o livro do Guia seria um trabalho solo. Para piorar, esse aviso foi dado pelo envio de uma carta pelo correio interno da BBC, apesar de ambos trabalharem apenas em prédios vizinhos. Como você deve estar imaginando, os amigos passaram algum tempo brigados devido à isso e o primeiro livro da trilogia de cinco acompanha o seriado de rádio somente até o episódio quatro.

Considerando os vários trabalhos de Adams, seus problemas pessoais, a vontade de aprimorar as reviravoltas, fazer diversas inserções na história (como os verbetes do Guia) e seus problemas com prazos, a entrega do livro foi resolvida em cima da hora mais uma vez.

Descrição da imagem: cena do personagem Dirk Gently da série Dirk Gently’s Holistic Detective Agency (baseada em outra obra de Adams) dizendo: “Tudo é conectado. Nada também é conectado” (do original em inglês: “Everything is connected. Nothing is also connected”).

 

Adams contava que os editores chegavam a pedir para ele parar de escrever na mesma hora em que entraram em contato e que mandasse um mensageiro levar seu manuscrito a editora, independente do ponto onde ele tivesse chegado na escrita.

Com diversos trechos que não foram para a versão final (publicados posteriormente em biografias e no livro “O Salmão da Dúvida”), aos trancos e barrancos, o manuscrito d”O Guia do Mochileiro das Galáxias” foi finalizado e publicado em 12/10/1979.

A série de rádio terminou em sua segunda temporada, mas a história do Guia continuou com sucesso nas outras mídias: uma série televisiva estreou em 1981, após a publicação do segundo livro da série, “O Restaurante no Fim do Universo” em 1980 e em meio a diferentes adaptações da história inicial para o teatro.

Apesar de dizer desde o primeiro livro que aquele seria a última história do Guia, mais sequências foram escritas intercaladas com outros livros do autor, como uma nova comédia com toques de investigação e ficção científica (a, infelizmente somente duologia do investigador holístico Dirk Gently), além de outros projetos.

 

E TUDO MAIS

Apesar de ter falecido jovem em 2001, com apenas 49 anos, Douglas Adams se dedicou a diversos tópicos que eram de seu interesse além da escrita, comédia e atuação.

Em 1985, Douglas Adams viajou para Madagascar com o zoólogo Mark Carwardine para encontrar o aie-aie, um dos poucos sobreviventes da família dos lemures. Mesmo que Adams estivesse jogando indiretas de que gostaria de fazer algum trabalho relacionado à preservação ambiental, o próprio achou que a revista responsável por essa viagem, a Observer, tinha escolhido o cara errado. Apesar disso, essa expedição acendeu a vontade de Adams em realizar um projeto maior que chamasse a atenção para uma quantidade maior de espécies em extinção.

“Me deram um fio a desenrolar e seguir essa pista começou a levantar questões para mim que se tornaram alvo da maior fascinação.”

O trabalho favorito de Adams, o projeto chamado de Last Chance to See, viu a luz em 1989 como uma série pela BBC Radio 4 em seis episódios de 30 minutos cada e, posteriormente, com a publicação do livro de mesmo nome em 1990. Nesse projeto, Adams e Carwardine viajaram por diferentes localidades mostrando animais em extinção, incluindo o peixe-boi-da-Amazônia.

Mark Carwardine e Douglas Adams, durante gravações de Last Chance to See em caverna das ilhas Juan Fernandez, Chile (1988) (fonte).

 

Além disso, o mingo era engajado na conservação ambiental, dando visibilidade a ONGs de proteção de animais, contribuindo e convencendo outros amigos a contribuir financeiramente nas mesmas.

Outra área de grande entusiasmo de Douglas Adams era a tecnologia, o que fica claro com a leitura d’O Guia. Apesar de publicado antes de 1980, conseguimos associar diversos apetrechos escritos com coisas utilizadas hoje em dia: podemos associar o próprio Guia a uma espécie de leitor de e-book ou ainda a um tablet ou smartphone com acesso a algo semelhante a Wikipédia; o peixe-babel era um Google Translate melhorado; o radio subeta da nave Coração de Ouro era controlado apenas por movimentação da mão e o computador de bordo da Companhia Cibernética de Sirius poderia ser a Alexa da Amazon.

Em 2000 foi ao ar, na Radio 4 da BBC, o último projeto do nosso mingo antes de sua morte, “O Guia do Mochileiro do Futuro” (tradução livre do original “The Hitchhiker’s Guide to the Future”), onde ele discutiu com convidados das áreas sobre o futuro da música, dos livros e da TV no mundo da internet, além de um programa dedicado a evolução da tecnologia, incluindo inteligências artificiais e nanotecnologia.

Douglas Adams era também bastante interessado em outros dois tópicos: ciência e música, inclusive ele era um grande amigo de alguns nomes conhecidos, como Richard Dawkins e David Gilmour. Seu fascínio também lhe rendeu homenagem com a nomeação de alguns objetos dessas áreas:

  •  álbum e música do Radiohead: Ok, Computer e Paranoid Android
  •  músicas do Coldplay: 42 e Don’t Panic
  •  asteroide: 18610 Arthurdent
  •  espécie de mariposa: Erechthias beeblebroxi
  •  espécie de peixe: Bidenichthys beeblebroxi

Mas isso tudo é outra história…

Descrição da imagem: Douglas Adams sentado em frente a uma parede escrito “42”.

 

Até mais e obrigado pelos peixes!

 

Referências:

ADAMS, Douglas. O Salmão da Dúvida. Arqueiro, 2014

GAIMAN, Neil. Não Entre em Pânico: Douglas Adams & O Guia do Mochileiro das Galáxias. Novo Século, 2014

ROBERTS, Jem. A Espetacular e Incrível Vida de Douglas Adams e do Guia do Mochileiro das Galáxias. Aleph, 2016

The Hitchhiker’s Guide to the Galaxy: 40 years of parody and predictions

9 Times The Hitchhikers’ Guide To The Galaxy Accurately Predicted The Future