[…dois casais discutiam sobre Star Wars – The Last Jedi. As palavras a seguir são um relato dessa conversa…]

Em 2015, Justin Trudeau foi empossado como primeiro ministro do Canadá. No ato de sua posse, cumpre as promessas realizadas durante sua campanha ao cargo e anuncia sua composição ministerial. Entre seus quadros, quinze homens e quinze mulheres, além de políticas e políticos declaradamente homoafetivos, indígenas, portadores de necessidades especiais e pertencentes a religiões de matriz não-cristã. Explica que nessa composição o gabinete finalmente “- parece com o Canadá” [1]. Um repórter questiona por que Trudeau considera importante compor um governo igualitário em termos de representatividade. Sua resposta é curta, irônica e certeira:

“Because it’s 2015”

Em 14 de dezembro de 2017, estreou no Brasil Star Wars – The Last Jedi. Embora as críticas positivas tenham pequena vantagem, ficou claro que o roteiro do filme é considerado, para dizer o mínimo, controverso para parcela significativa dos fãs. Entretanto, nossa motivação para escrever este texto não está relacionada diretamente às críticas envolvendo os rumos da história. Avaliações boas ou ruins sobre a trama, comentários acerca da coerência ou lógica interna do roteiro em relação aos filmes anteriores ou ao universo expandido de Star Wars, fazem parte das expectativas e dos afetos direcionados ao filme, sendo igualmente legítimas e necessárias ao bom debate.

Desse modo, as palavras que se seguem dirigem-se às críticas sobre a composição do elenco principal do oitavo episódio da filmografia. Aqueles que já haviam criticado o episódio VII, Star Wars – The Force Awakens, pela escolha de uma protagonista mulher e de um protagonista negro, se mostraram, nas redes sociais, ainda mais revoltados com Star Wars – The Last Jedi e a presença significativa de minorias enquanto personagens centrais da trama ou exercendo papel de destaque ao longo de todo o enredo. São críticas de uma parcela pequena de fãs, é verdade. E que parece ter aumentado de tamanho desde The Force Awakens, também é verdade.

A diferença entre a magnitude da desaprovação do elenco de The Last Jedi em comparação com o filme anterior é notável, com direito a crescentes comentários extremistas publicados nas mais diversas plataformas digitais de comunicação – desde Twitter e Facebook, passando por abaixo-assinados virtuais pedindo a exclusão de The Last Jedi do universo cânone de Star Wars. A classificação do público no Rotten Tomatoes é próxima dos 51%. O grupo de direita Down With Disney’s Treatment of Franchises and its Fanboys, entre muitos comentários machistas e racistas, afirma ter reduzido artificialmente a nota através do uso de bots.  [2]

A título de ilustração, reproduzimos abaixo a publicação de conhecido colunista brasileiro sobre o filme.

Tolero. É digno de nota como o verbo tolerar adquire aqui conotação muito próxima a consentir, como se para existir houvesse a necessidade de pedir permissão. E como um suposto Chubaca vegetariano é utilizado como pretexto para apontar uma, também suposta, Resistência sob dominação feminista (seja lá o que isso for). Mas talvez estejamos superinterpretando suas palavras e fugindo dos objetivos do texto.

A questão é que, em Star Wars – The Last Jedi, assistimos, por exemplo, uma atriz asiática e um ator negro que, apesar de explorarem um arco paralelo ao núcleo principal do filme, não estão ali desempenhando papéis secundários para a trama ou de sidekicks. Pelo contrário. São elementos fundamentais do seu desenvolvimento, apresentando e problematizando alguns dos conflitos sociais decorrentes das guerras galácticas e que até então foram mostrados de forma muito mais sutil nas duas trilogias anteriores.

De um modo geral, The Last Jedi ostenta mulheres em posições de comando e protagonizando extensos (e intensos) diálogos e que não estão ali apenas para serem salvas ou se casarem no final com o herói da aventura, como uma espécie de prêmio ou recompensa aos feitos varonis. E sejamos precisos: os personagens masculinos e brancos no filme não sofreram um rebaixamento de status, execração, ou deslocamento para papéis inferiores ou inferiorizados. Não se trata de uma ode à misandria. Eles apenas figuram lado a lado com personagens de igual complexidade, profundidade e relevância interpretado por pessoas que constituem minorias.

E por que dar relevância às minorias é importante? Bem, aqui precisamos fazer uma discussão um pouco mais conceitual. Largamente utilizado pelo público em geral, o conceito de minoria política frequentemente aparece desacompanhado do adjetivo “política”. Essa omissão, por mais inocente que possa parecer, permite uma interpretação equivocada do seu sentido original. Minoria é um termo quantitativo, e oposto ao termo maioria. Minoria política, por outro lado, é um conceito qualitativo e refere-se à sub-representação política de determinados grupos no interior das democracias (e suas consequências). E “representação”, como vocês já devem ter percebido, é a nossa palavra-chave.

Vejamos o caso do Brasil. Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, a composição da população segundo o sexo foi de 51% para mulheres e 48,5% para os homens. No mesmo ano, pretos e pardos representavam 54% da população brasileira [3]. Nesses termos, não faz sentido afirmarmos que mulheres ou negras e negros componham minorias no país. Entretanto, essas mesmas pessoas compõem o que definimos aqui como minorias políticas. A proporção presente na sociedade brasileira não corresponde à proporção encontrada nas instâncias representativas e deliberativas do país, isto é, no senado, na câmara dos deputados, nos ministérios, em câmaras de vereadores, etc., e isso é visível. Em 2016, as mulheres e auto declarantes negros ocupavam, respectivamente, cerca de 10% a 20% do parlamento, uma distância significativa da composição da sociedade como um todo. Em termos práticos, essa baixa representatividade indica, ou mesmo, explica o motivo de termos tão poucas políticas públicas orientadas para a diminuição da desigualdade social, de gênero e raça no Brasil. Afinal, como confirmado pelas diretivas gerais, propostas, projetos aprovados ou em pautas até o presente momento, os interesses dessas populações não encontram eco nos parlamentares que deveriam representa-las.

Para termos uma ideia do grau de vulnerabilidade das minorias políticas, segundo a mesma publicação do IBGE, ainda em 2015, sete em cada dez pessoas negras e pardas moravam em condições precárias, somente 12,8% cursavam ensino superior, e 75,5% estão entre os 10% com menores rendimentos (recebendo cerca de um salário mínimo por mês). Sobre as mulheres, seu rendimento é 34% inferior à renda dos homens, apenas 4,7% das mulheres estão nos cargos de gerência ou direção entre o total de ocupados com 25 anos ou mais de idade e ainda recebem cerca de 68% do rendimento médio dos homens ocupando os mesmos cargos de chefia.

Quando pensamos em termos de violência, os grupos minoritários se destacam (no pior sentido da palavra). Embora os dados de agressão e assassinatos apontem para um número absoluto maior de homens vítimas, o que propomos pensar para este texto se resume em como alguns atos violentos são motivados pela condição específica da vítima, e não a partir de contextos momentâneos e genéricos, como no caso dos conflitos armados, assaltos individuais, brigas de rua, etc. Em outras palavras, buscamos argumentar como mulheres, negros, negras e outras minorias políticas sofrem com agressões particulares motivadas pelo simples fato de se apresentarem no mundo como são e, com isso, se verem rendidos por uma série de preconceitos e sujeições. O gráfico a seguir demonstra alguns dados importantes:

De acordo com a publicação Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil [4] – documento produzido por um conjunto de organizações internacionais entre elas a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS) –, “entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21,0% na década. Essas 4.762 mortes em 2013 representam 13 homicídios femininos diários”. Além disto, ainda segundo o relatório, se considerado o fator raça, “com poucas exceções geográficas, a população negra é vítima prioritária da violência homicida no País. As taxas de homicídio da população branca tendem, historicamente, a cair, enquanto aumentam as taxas de mortalidade entre os negros. Por esse motivo, nos últimos anos, o índice de vitimização da população negra cresceu de forma drástica.” [4]

Portanto, tratar a questão das minorias políticas com a devida importância não é apenas um tema “politicamente correto” e não se resume somente às desigualdades de sexo, renda e raça. Envolve as questões particulares dos portadores e portadoras de necessidades especiais; das populações indígenas; de pessoas homoafetivas; transgêneras; de idosas e idosos, etc. Envolve todos sub-representados e privados de leis de proteção mínimas e políticas públicas específicas que diminuam a desigualdade e vulnerabilidade socioeconômica desses grupos, bem como em relação à exposição dessas pessoas a contextos violentos. Fica a provocação: o que se tem feito para amparar travestis e transexuais no país, já que vergonhosamente lideramos o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans? Quantos transexuais temos ocupando nosso parlamento? É só fazer a conta…

Além do mais, a questão da representatividade não se resume somente à faceta mais institucional da política. Conquistar e garantir direitos para todas e todos cidadãos é tarefa árdua e contínua que, sem dúvida, se faz eficiente quando aglutina e enfatiza uma diversidade de vozes e contextos. Porém, há algo de subjetivo em torno da representatividade. Algo que transforma o imaginário. Algo potencializador das lutas cotidianas, que inspira novos tempos, mais inclusivos e menos excludentes. É o poder de sentir-se representado e, com isso, pertencente àquele mundo ou àquela sociedade.

E é neste sentido que Star Wars – The Last Jedi também não pode ser entendido apenas como um filme politicamente correto. No fundo, trata de expressar digna e minimamente a diversidade que seu universo contém, e, em contra partida, refletir sobre a nossa pluralidade, reles humanos mortais, sem Força e sem sabre de luz. Parafraseando o primeiro ministro canadense, trata-se de deixar o elenco e protagonismo de Star Wars parecido com a diversidade que encontramos em um universo – inteiro. Inclusive, uma das constantes da franquia Star Wars é justamente a de mostrar a convivência de diversas espécies alienígenas, inteligentes ou não, mesmo que essa própria diversidade nunca tenha sido tratada como tema central, ou mesmo lateral, no interior das tramas.

É por isso que as críticas sobre a multiplicidade étnica e de gênero retratadas no filme contém duas ironias avassaladoras. A primeira, mais óbvia, é que estamos falando de um longa-metragem sobre povos e planetas espalhados por galáxias, então, por natureza, ele deveria ser multi-étnico. E, por incrível que pareça, a novidade que arrepiou os mais raivosos é ver mulheres e negros como personagens importantes do enredo. Ora, por que não seriam essas pessoas os heróis e heroínas desta trama, já que nos debruçamos em um universo tão criativo e diverso?

A segunda ironia reside na relação entre um dos plots do filme e os comentários racistas, xenofóbicos e misóginos. Existe, entre os adoradores de Star Wars, uma disputa geracional relevante. Se pensarmos que o primeiro filme da saga data de 1977, temos aí quarenta e um anos de admiração, teorias, action figures e cosplays de Princesa Leia. Ao que nos parece, as análises mais perversas sobre The Last Jedi e seu casting variado reflete uma sociedade ultrapassada, na qual parte dos fãs mais antigos viveu e para a qual alguns novatos insistem em querer retornar. Uma sociedade insensível e cruel, cujos valores morais mais arcaicos e de matriz escravocrata, via mulheres, negros, homossexuais, transgêneros, portadores de deficiência, indígenas e uma sorte de minorias políticas, como seres inferiores e sem direitos. A nova geração, que se sobrepõe, supera e arruína as expectativas dos remanescentes dos séculos anteriores, exige uma sociedade mais inclusiva e igualitária e, consequentemente, exige maior representatividade nos filmes. Que fique bem claro: Não é uma questão etária. Mas de pessoas pertencentes ao século XXI coadunando com os valores sociais mais atrasados, arcaicos e obscuros que os séculos anteriores poderiam prover.

Talvez você ainda esteja pensando porque não gostou da representatividade dos personagens de Star Wars – The Last Jedi. A resposta para nós é evidente: medo. Se você continua achando que apenas homens brancos podem ser os protagonistas nos filmes ou na vida real, sentimos dizer, mas o mundo está ruindo sob seus pés. E tal como o Coiote, algoz do Papa-léguas, basta olhar para baixo para que caia de uma vez… e vai tarde. E mais: será que se estivéssemos vivendo numa realidade X-Men, nesse momento, você não estaria angariando fundos para o projeto Sentinela? E estaria aplaudindo de pé a caça aos mutantes, sejam eles crianças, adultos ou idosos em cadeira de rodas?

Nosso ponto final é o de que The Last Jedi segue a tradição Star Wars e renova mais uma vez nossa esperança – e com toda licença proposital do uso desta palavra no contexto da saga. É a esperança de que essa geração autoritária, século XIX, seja sucedida por outra, de rebeldes e resistentes, e que o princípio da igualdade seja um ideal mínimo que orienta a sociedade.

 

– E por que igualdade importa? Porque é 2018, cara!

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1]. Por ora, não cabe aqui avaliar a performance do seu governo em termos de políticas socioeconômicas, ambientais, de inclusão, de desenvolvimento, etc.

[2]http://www.huffpostbrasil.com/entry/rotten-tomatoes-last-jedi-ratings-bots_us_5a38cb78e4b0860bf4aab5b1

[4] http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf

[5]  Síntese de Indicadores Sociais. Umas Análise das Condições de Vida da População Brasileira. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2016. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98965.pdf

Mais sobre representação social você pode ler em http://www.deviante.com.br/noticias/ciencia/vou-te-contar-uma-estoria/


Thiago Brandão. É sociólogo e acredita que o louco só está usando uma metodologia diferente.

Raquel Oscar. Antropóloga, problematizadora nerd e acredita que a tecnologia vai salvar a humanidade – mas não do jeito que você imagina