Talvez essa não seja a expressão que esteja hoje na boca do povo, embora seja similar a que foi utilizada pelo artigo em que esse texto se baseou fortemente. Imagino que discursos que dizem que a ciência está em descrédito, ou ideologicamente orientada, seja algo mais comum aos ouvidos de alguns dos leitores. Será? E, se estiver em descrédito e ideologicamente orientada, isso significa que ela está quebrada? Fadada ao fracasso?

É verdade que não tem sido fácil defender boa parte da ciência que vem sendo produzida em nossa sociedade. Um dos pilares fundamentais para a qualidade dos trabalhos são as revisões por pares. No entanto, temos um sério problema quando cientistas descobriram falhas nos sistemas de submissão de modo a permitir que o próprio autor avalie seu trabalho. Não preciso nem dizer que as revisões eram rápidas, sugerindo aprovação e com sugestões superficiais, né? Por sorte, essas três características foram as responsáveis por chamar a atenção da editora chefe de um desses jornais científicos que acabou desbaratando o esquema. Infelizmente, não para por aí! Muitos jornais científicos, em busca de ganhos financeiros em cima das taxas de submissão de artigos, enviam e-mails para milhares de cientistas ao redor do mundo, de forma insistente, tentando convencê-los a publicar em suas revistas. Um desses cientistas decidiu responder de um jeito peculiar :-), e o International Journal of Advanced Computer Technology acabou aceitando para publicação o seu artigo. O engraçado é que o título do artigo era “Get Me Off Your Fucking Mailing List” (Me tire da sua maldita lista de e-mail) e o texto resumia-se a essas sete palavras, repetidas por 10 páginas. Um outro fenômeno, chamado por alguns de “kilo-author” é a autoria em massa. O “kilo” no nome não é por acaso, já que existem artigos com mais de 1000 autores.

O crescente interesse das massas pela ciência fez despertar um outro fenômeno: a leigalização midiática da ciência (acabei de inventar esse termo :-). No intuito de vender, a mídia tem aberto mais oportunidades em seus jornais, revistas, dentre outros meios, para falar de ciência. O problema aqui não é a divulgação, pelo contrário, ela é muito bem-vinda! O problema é que os profissionais que fazem a divulgação, que traduzem o estudo para uma linguagem mais acessível, em muitos casos não são cientistas. E ainda que fossem, existe o perigo mór: o click-bait. Um estudo que aponta uma associação entre duas propriedades, e já da aquela velha forçada de barra sugerindo que um está causando o outro, acaba sendo traduzido pelo jornalista como “Cientistas acham cura para o câncer!”. E eles não pegam leve, gente! O câncer é um conjunto de dezenas de doenças. Afirmar, através de um único estudo, que se encontrou a cura para um sub-tipo de um tipo de câncer, e levar em consideração isso como verdade absoluta, já é de certo modo uma forçação de barra. Não preciso nem explicar o absurdo que é dizer que a cura é para o câncer em geral, né? Mas as pessoas clicam, a notícia vende e todo mundo fica feliz. Né? Fica? Só que não.

O resultado disso é essa sensação de que estão nos escondendo algo. Você mesmo já deve ter visto várias e várias vezes notícias sobre cura do câncer. E cadê essa cura? Como podem os cientistas ter descoberto tanta coisa e ainda assim eu não vejo essa cura? Só vejo gente morrendo! Esse tipo de situação começa a ventilar alguns mitos como, por exemplo, que existe uma conspiração internacional (com todos os milhares de cientistas brasileiros, e milhões pelo mundo, todos comprados, inclusive os que tem câncer ou os que têm parentes com câncer) para esconder a cura da doença. Mas também não podemos colocar a culpa só na mídia: Nós cientistas também cometemos erros nesse sentido. Falar em público não é uma das habilidades que se costuma buscar em um cientista, mas é uma habilidade que tem se tornado primordial. Como passar para o público nossas descobertas e métodos é fundamental para criar um clima de apoio à ciência. De outro modo, criamos apenas inimigos.

Beleza, Marcel. Você falou de várias coisas ruins que aconteceram. Parece-me que a ciência está de fato quebrada! Bem, não é assim. Como diz o artigo no qual esse texto se baseou,

“Se nós vamos depender da ciência como um meio para alcançar a verdade – e ainda é a melhor ferramenta que temos -, é importante que compreendamos e respeitemos o quão difícil é obter um resultado rigoroso”.

Porque a realidade é essa! Ciência é algo extremamente complexo. Já ouvi bastante que o médico é um profissional altamente qualificado porque precisa de 6 anos de medicina e mais alguns anos, digamos 4, para ter uma residência e uma especialização, totalizando 10 anos para começar de fato a exercer a profissão (embora seja possível fazê-lo antes). Um cientista não é muito diferente, por esse critério. Uma pessoa com curso de graduação (em média 4 anos de graduação) com mestrado (2 anos), doutorado (4 anos) e um pós-doutorado (2 anos), precisará de 12 anos de estudos para começar a ter chances de ter a oportunidade de ser um cientista responsável por uma equipe (principal investigator), orientando alunos. Ainda assim, precisará de um tempo para de fato ser responsável por um grupo, poder orientar alunos de doutorado e assim por diante. Pode conseguir fazer isso antes? Com certeza. Mas a tendência atual em muitas áreas é seguir esse caminho.

O meu ponto aqui é que rapadura é doce mas não é mole não! Ciência é algo extremamente difícil. É muito mais fácil encontrar um resultado do que uma resposta de fato para sua pergunta, e muitas vezes as pessoas confundem isso. Em outro trecho, o texto diz

“A ciência não está quebrada, nem é indigna de confiança. É apenas mais difícil do que a maioria de nós percebe. Podemos aplicar mais escrutínio para estudar modelos e exigir estatísticas e métodos analíticos mais cuidadosos, mas isso é apenas uma solução parcial. Para tornar a ciência mais confiável, precisamos ajustar nossas expectativas. O objetivo é estar menos errado com o tempo. Esse conceito é fundamental – o que sabemos agora é apenas a melhor aproximação da verdade. Nós nunca podemos presumir ter tudo certo”.

E esse é um dos pontos cruciais da habilidade da ciência de se auto corrigir. O tempo inteiro existem novos estudos sobre os mesmos temas, muitas vezes concordando e agregando solidez aos resultados encontrados, mas muitas vezes contrariando e levantando dúvidas. Em muitos casos consensos são formados, apenas para ser provados errados em um futuro não muito distante, e assim a ciência avança.

Em um outro trecho, um ponto crucial é abordado:

“O modo padrão de pensar sobre o método científico é: faça uma pergunta, faça um estudo, obtenha uma resposta. Mas essa noção é muito simplista. Um caminho mais comum para a verdade se parece com: fazer uma pergunta, fazer um estudo, obter uma resposta parcial ou ambígua, depois fazer outro estudo e depois fazer outro para continuar testando hipóteses em potencial e buscar uma resposta mais completa”.

Talvez o que esteja faltando, seja uma leitura mais crítica dos trabalhos científicos. Somos cotidianamente tentados a acreditar em resultados que nos agradam como verdades absolutas (viés de confirmação), quando na verdade são apenas evidências (muitas vezes, evidências oriundas de metodologias bastante duvidosas ou mal empregadas). Resultados podem ser respostas, mas ainda assim podem ser respostas para perguntas diferentes da que se buscava uma resposta. Daí a importância de ter uma seção com a metodologia do trabalho, além de instruções que permitam outros cientistas reproduzirem teu trabalho, podendo encontrar os mesmos resultados ou não. Esse acúmulo de experimentos levando aos mesmos resultados, reproduções de trabalhos, revisões, tudo isso junto gera um corpo de evidências que eventualmente formam um consenso na comunidade científica (o que nem sempre é fácil). Pois é, ciência não é fácil!

Desde quando comecei a fazer pesquisa com câncer, já perdi a conta do número de vezes que amigos e conhecidos me enviam textos de notícias sobre o câncer para saber a minha opinião, e é sempre a mesma coisa. Uma notícia sensacionalista, com uma manchete pouquíssimo razoável, que reproduz o que o jornalista entendeu de um estudo científico.

Independente do prestígio do jornal que aceitou publicar o estudo, ou do renome dos autores, você tem a liberdade de checar a metodologia do trabalho e tentar reproduzir os resultados. E de passo em passo, a ciência avança. Ela não está quebrada, mas talvez tenhamos chegado em um ponto onde precisamos mudar a nossa perspectiva com relação a ela ;-)

 

Imagem de capa retirada daqui, que a propósito é um outro bom texto sobre esse tema.


Marcel da Câmara Ribeiro Dantas. Engenheiro de Computação e Automação (UFRN), com larga experiência em sistemas para saúde e dispositivos biomédicos, especialista em Big Data pelo IMD – UFRN, onde estudou dados de expressão de tumores. Mestre em Bioinformática pela UFRN, onde pôde se aprofundar na rede regulatória do Sarcoma de Ewing e analisar seus reguladores mestres, e doutorando na Sorbonne Université/Institut Curie em Paris, onde estuda análises de causa e efeito em dados de pacientes com câncer de mama.