Dividindo o Núcleo

Como você provavelmente aprendeu na escola, nosso planeta é dividido em camadas: crosta, manto e núcleo. Mas o núcleo, que fica (óbvio) no centro, começa a cerca de 3000 km de profundidade e é subdividido em núcleo externo e núcleo interno. O externo é quente e líquido, enquanto o interno é muito quente e sólido.

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Figura 1: Esquema representando uma “fatia” do planeta Terra mostrando suas diferentes camadas. (Fonte: Decifrando a Terra)

Mas você deve se perguntar “Como sabemos que a parte de fora é líquida?”. Eu explico: A resposta está em terremotos. Existem basicamente dois tipos de ondas sísmicas:

  1. As ondas que são captadas primeiro são as ondas Primárias, ou ondas P, que são longitudinais e compressionais. Esse tipo é análogo às ondas sonoras produzidas por uma caixa de som: o autofalante vibra para frente e para trás, produzindo uma pressão maior e menor (por isso compressional) no ar, fazendo com que essa variação na pressão se propague no mesmo sentido do movimento da membrana do autofalante (por isso longitudinal, ou seja, “no mesmo sentido que algum treco”). Mas o importante é que as ondas P conseguem se mover por qualquer tipo de matéria, seja líquida, sólida ou até gasosa.
  2. As ondas que chegam logo depois, são as Secundárias (bem didáticos esses nomes!), por isso chamadas de ondas S, que são transversais e cisalhantes. São análogas a fazer uma onda com uma corda, balançando uma das extremidades para cima e para baixo rapidamente. O movimento da mão é na vertical, mas a propagação da onda é na horizontal (por isso transversal, ou seja, “90° de algum treco”). Esse movimento não ocorre se o fizermos num corpo líquido ou gasoso, por exemplo, uma “corda” feita de água. Como não há coesão suficiente no material, quando eu puxar para cima a minha “corda d’água”, ela irá se romper, por isso cisalhante (do francês, “ciseaux” tesoura). Dessa maneira, essas ondas não conseguem se propagar em meios líquidos e gasosos. Ondas S só se propagam por meio material SÓLIDO.

Figura 2: a) propagação da onda P. b) propagação de onda S. (Fonte: Decifrando a Terra)

Através de sismógrafos espalhados pelo planeta, nós sabemos que as ondas S não passam pelo núcleo externo. Como elas não se propagam em meio líquido, concluímos que o Núcleo externo é líquido. Daí tu te pergunta “Mas então como sabemos que o interno é sólido?” Explico também:

As ondas S, como já disse, não passam pelo núcleo externo e, portanto, não conseguem chegar no núcleo interno. Contudo, as ondas P, que passam por tudo, têm uma velocidade muuuito maior no núcleo interno do que no externo e nós sabemos que isso acontece quando um objeto tem densidade maior que o outro. Essa diferença é suficientemente grande para sabermos que o material deve estar no estado sólido para que alcance tal densidade.

Podemos calcular essa diferença com ondas que refratam o núcleo. Lembra lá de quando você estudou óptica geométrica em Física no Ensino Médio? Pois é, pela Lei de Snell podemos analisar o ângulo incidente, o refratado e ter a velocidade da onda no material e, assim, a densidade dele.

E, claro, hipóteses como esta são testadas em super prensas hidráulicas mega poderosas dentro de laboratórios para reproduzir a pressão e temperatura do interior da Terra.

O Núcleo Interno

O Núcleo interno tem 1200 km de raio, o que corresponde a menos de 1% do volume do nosso planeta e tem uma temperatura de mais de 5000°C, próxima à da superfície do Sol. “Mas isso não muda minha vida”, você pode pensar.

Na verdade, essa complexidade toda do núcleo é importante para criar o que chamamos de Geodínamo, que gera o campo magnético da Terra, que é imprescindível para a manutenção da nossa atmosfera e da temperatura do planeta e, por isso, de toda a vida terráquea. Marte, por exemplo, não possui mais um campo magnético e… olha no que deu.

Lá em 1983 foi descoberto que uma onda sísmica que cruza a Terra no sentido Norte Sul é 3s mais rápida do que uma onda sísmica que cruza o planeta pelo equador. Essa diferença se dá pela anisotropia do núcleo. Isotropia é quando algo tem propriedades físicas iguais em todas as direções. Do grego, “içós” (ίσος) igual e “trôpos” (τρόπος) caminho ou direção.

Assim, algo ANisotrópico é não isotrópico: que tem comportamentos diferentes em direções diferentes.

Por exemplo: Um ovo. Se apertarmos um ovo de galinha no sentido do seu eixo maior, ele dificilmente vai se quebrar. Enquanto que, se o deitarmos, uma leve pressão já esmaga o ovo. Assim, essa propriedade física NÃO é idêntica para todas as direções do ovo. Portanto, um ovo de galinha tem resistência anisotrópica.

Mas lembrando, qualquer coisa é formada por átomos, mas alguns objetos nós dizemos que são formados por cristais, que são arranjos ordenados de átomos, repetindo um padrão. OBS.: E esses cristais não têm nada a ver com “copos de cristais”, que são feitos pelo oposto de arranjos ordenados. Por que usamos a mesma palavra? Não sei.  ¯¯\_(ツ)_/¯¯

Um exemplo de cristal é o mineral halita, que é formado por átomos ordenados de um elemento que é altamente reativo e pode queimar nossa pele e outro elemento que forma um gás venenoso. Mas quando estão juntos formando um cristal, esses elementos químicos, respectivamente o Sódio e o Cloro, formam cubinhos inofensivos que nós geralmente chamamos de… sal de cozinha (NaCl).

Bom, mas o sal de cozinha (ou halita), apesar de parecer um pó, é formado de mini-cubinhos. É mais fácil ver isso no sal grosso. Esses cubos de sal têm esse formato porque representam a repetição de como os átomos de sódio e cloro se organizam e se ligam microscopicamente, repetidamente, sempre de forma cúbica.

Figura 3: sal refinado no microscópio, uma versão miniatura do sal grosso.

O menor pedacinho possível desses cubinhos, formado apenas de 8 átomos, é chamado de “célula unitária”. Imagine que os átomos ficam nos vértices (nas pontas) desse cubo. Com esse cubo em mente, você deve concordar que provavelmente as propriedades dele não serão as mesmas diagonal e lateralmente, já que as distâncias dos átomos mudam, assim como a direção das ligações. MAS, claro, no caso do ovo esse efeito não tem origem na configuração dos átomos, mas da geometria e distribuição de forças na casca.

Figura 4: a) representação da célula unitária do cloreto de sódio. b) várias células juntas formando a rede cristalina. (Fonte: Para Entender a Terra)

“Tá… e daí?” Tu te pergunta mais uma vez. E daí que, sabendo isso, podemos tirar conclusões riquíssimas daquela informação dos breves 3s que eu comentei lá em cima.

Isso indica que o núcleo interno é anisotrópico para propagação de ondas sísmicas, ou seja, os átomos do núcleo estão organizados numa rede cristalina ordenada e bonitinha que propagam melhor as ondas num sentido.

Incrível, né? Só por saber que leva 3s a menos de cima pra baixo que de um lado pro outro do globo, podemos entender melhor como é o núcleo da Terra, a 5 mil km pra baixo! Ciência, sua linda!

Nova subdivisão do Núcleo

Tudo isso que eu descrevi, nós já sabemos desde a década de 80. A novidade que eu trago aqui é que aparentemente existe um núcleo “médio” entre o interno e o externo. O que já estraga o que eu expliquei num Scicast que já gravamos, mas nem publicado foi (Spoilers)!

A notícia é sobre um artigo intitulado “Evidence for the Innermost Inner Core: Robust Parameter Search for Radially Varying Anisotropy Using the Neighborhood Algorithm” (ou em tradução livre pra PT-BR: ‘Evidências da parte interior do núcleo interno: procura de parâmetros robustos por anisotropia radial variável usando o algoritmo Neighborhood’) publicado agora em março de 2021 na “Journal of Geophysical Research: Solid Earth”.

A equipe compilou 183.257 sismos registrados entre 2001 e 2013 e catalogados pelo Centro Sismológico Internacional. Rodaram os dados todos para análise com um tal de “Algoritmo Neighborhood”, que eu não tenho a mínima ideia do como funciona, mas compara dados de pontos vizinhos, por isso Neighborhood (“vizinhança”, em inglês). Assim, o programa especifica um volume imaginário do núcleo e seleciona as ondas que passaram ali naquele pedacinho, mesmo que de anos distintos e vai juntando pedacinho por pedacinho para criar um modelo completo.

O que eles acharam foi uma variação de velocidade dentro do próprio núcleo interno, possivelmente ligado a uma diferença de anisotropia, isso é, a cristalização do material lá é diferente. Como essa parte descoberta é a miolo do núcleo interno, eles chamaram de “InnerMost Inner Core”, o “núcleo interno mais interno. Essa estrutura tem um raio aproximado de 600km, quase metade do núcleo interno (do não tão interior).

O paper levanta as contas e aproximações que podem conter erros, mas a estrutura geral do artigo, assim como o núcleo, parece sólido.

A doutora Joanne Stephenson, autora principal do artigo, afirmou que essa cristalização destina pode representar que o núcleo resfriou em dois momentos diferentes ao longo dos 4,5 bilhões de anos do nosso planeta. Por exemplo, quando deixamos uma garrafa com gelo derreter parcialmente e recolocamos ela no freezer, o gelo certamente não vai congelar exatamente da mesma forma que antes, com a mesma orientação cristalina. Talvez isso que aconteceu com a Terra.

Ou não. Vejamos artigos futuros e a repercussão desse trabalho!

Referências:

STEPHENSON, J.; TKALČIĆ, H.; SAMBRIDGE, M. Evidence for the innermost inner core: Robust parameter search for radially varying anisotropy using the Neighbourhood Algorithm. Journal of Geophysical Research: Solid Earth. 2021.

TEIXEIRA, W.; FAIRCHILD, T.R.; TOLEDO, M.; TAIOLI, F. Decifrando a Terra. 2ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 623p. 2009.

PRESS, F.; SIEVER, R.; GROTZINGER, J.; JORDAN, T. Para entender a Terra. Tradução Rualdo Menegat, 4ª edição, Porto Alegre: Bookman, 656p.2006.


Bruno Gallas. Prof. de Física e “geólogo amador”