No meu último texto, eu apresentei alguns conceitos da Semiótica de Peirce, com o objetivo de, num texto futuro, discutir como o poema Um Lance de Dados, de Stéphane Mallarmé, influenciou o Grupo Concretista brasileiro. Chegou a hora de falar sobre Mallarmé! Se você não leu aquele texto, sugiro que você clique aqui e descubra o que é primeiridade, secundidade e terceiridade. Mas não esquece de depois voltar neste texto pra ler sobre como um poema simbolista francês de 1897 embasou o pensamento de poetas brasileiros meio século mais tarde!

Para entender a influência de Mallarmé sobre o Concretismo, a gente precisa primeiro entender algumas coisas sobre Um Lance de Dados. Anteriormente, eu trouxe uma citação do Décio Pignatari (um dos fundadores do Concretismo brasileiro), e ela é importante, então olha ela aqui de novo:

Mallarmé tentou (…) a redução do universo à linguagem, de que resultou a ‘descoberta’ do universo da linguagem em nível semiótico (ou seja, no limiar da saturação do código verbal) (2004, p. 38).

Essa saturação de que Pignatari fala está presente em elementos muito variados do poema. Através desses ícones, que se afetam mutuamente, podemos criar os sentidos de Lance de Dados

É por isso que a semiótica peirciana é importante para essa discussão: através dela, seremos capazes de entender a construção icônica do poema de Mallarmé. E isso é fundamental para entender a relação entre Um Lance de Dados e o Concretismo.

 

Poema em eixos

Poema em francês. O centro do livro, que liga as duas páginas, aparece como forma de unir as duas partes do poema, transformando-as em eixos.

Imagem 1 (axial): Em Lance de Dados, as páginas aparecem como eixos, ligados pelo centro do livro.

 

Um Lance de Dados foi publicado em 1897 e é um poema longo que não segue um esquema de métrica. Além disso, Mallarmé utilizou letras diferentes para expressar ideias diferentes nos versos.

O poema tem uma formação axial, em que as páginas vizinhas são eixos ligados pelo centro do livro. Essa ideia do poema em torno de um eixo é bastante interessante, porque permite que a leitura do poema aconteça tanto de cima para baixo em cada página (o jeito tradicional de ler), quanto da esquerda para a direita, com as duas páginas ao mesmo tempo.

Portanto, essa forma de ler quebra a tradição em poesia, mas não é só aí que Mallarmé revoluciona. No prefácio do livro, ele explica que os espaços em branco fazem parte da composição do poema. Assim, o poeta francês entende os espaços em branco como uma parte pertencente ao trabalho poético. Esse é um elemento que ele incorpora ao  Lance de Dados, com o objetivo de produzir sentido através da associação de brancos da página e versos. 

Em outras palavras, a gente pode dizer que o branco da folha produz sentido ao associar-se com os versos, formando imagens (ou seja, ícones). Esses ícones agem de forma simultânea na percepção que o leitor terá do poema. Mais para frente, voltaremos a essa ideia.

 

Partitura

Ainda no prefácio, Mallarmé fala da mobilidade do escrito, das retratações, fugas e prolongamentos presentes no poema. O próprio Lance de Dados pode ser entendido como uma partitura para a leitura do poema em voz alta: a posição dos versos na página determina a entonação. Portanto, um verso no alto da página terá uma entonação ascendente, da mesma forma que uma nota aguda é representada nas linhas superiores da pauta musical. E, claro, a mesma lógica se aplica ao que estiver na parte inferior, sendo um verso grave.

A partir disso, o poema foi transposto para a música, como pode ser visto no vídeo abaixo. Michalis Pichler preparou Um Lance de Dados para uma pianola, cortando os espaços correspondentes aos versos de Mallarmé, de forma que o instrumento “lesse” o poema. Como resultado, temos uma experiência interessante, bem diferente das músicas tradicionais.

Mas vale chamar atenção que os graves e agudos estão invertidos: o que estava no topo — e que, segundo Mallarmé, seria agudo — aparece como grave, e vice-versa.

 

Motivo

Em relação à música, também interessa apontar que Mallarmé trabalha com a ideia de “motivo”, ou seja, uma frase musical que se repete com algumas modificações em um trecho. Por isso, Augusto de Campos (in A. CAMPOS; H. CAMPOS; PIGNATARI; 2010, p. 179) diz que o uso dos motivos implica na ideia de desenvolvimento horizontal e contraponto, ou seja, melodia e harmonia musical. 

Imagem 2: Dados sobre fundo lilás.

Em outro texto, Haroldo de Campos (1969, p. 17) diz que Um Lance de Dados é uma obra que gira semanticamente sobre si mesma, sendo uma obra circular, cujo começo é retomado pelo fim. Conforme ele aponta, o poema começa com o verso “UM LANCE DE DADOS” (escrito em letras maiúsculas e grandes), e termina com “Todo Pensamento emite um Lance de Dados”.

Portanto, o próprio lance de dados pode ser entendido como um motivo. Ele é o responsável por criar o círculo apontado por Haroldo. Isso leva à consideração de que Um Lance de Dados representa um movimento infinito de projeções de ícones, que interagem entre si.

 

Matemática

Imagem 3: Meme Nazaré Confusa.

Outro ponto que Haroldo traz é que Um Lance de Dados era um esboço de um projeto poético de Mallarmé. Nele, a permutação matemática e o movimento são pensados como agentes estruturais da obra (CAMPOS, H, 1969, p. 18). Entretanto, o projeto nunca foi concretizado de fato, porque o poeta faleceu no ano seguinte à publicação de Um Lance de Dados.

Apesar disso, é inegável a presença de noções matemáticas nesse poema. Mallarmé produziu uma construção poético-matemática com a tentativa de limitar o acaso. Com isso, nos aproximamos da noção mallarmaica de Constelação, ou seja, um grupo -talvez quase infinito- de possibilidades que se projetam artisticamente para o leitor.

 

Constelação

A sugestão de imagens, que ocorre de diversas formas, é outra característica importante do poema. Em “Lance de olhos sobre Lance de Dados”, Haroldo (2010, pp. 187-192) analisa o repertório imagético sugerido por Mallarmé em seu poema. Dessa forma, ele demonstra como disposição dos versos na página, combinada com os espaços em branco, permite ao leitor a percepção de diferentes imagens. Essas possuem alguma ligação com determinado trecho do poema.

As imagens sugeridas por Mallarmé funcionam como uma espécie de ícone, no sentido peirciano da palavra: o leitor tem uma percepção frágil do desenho sugerido pelas palavras e pelo branco da página, que cria possibilidades de sentido para o que é lido.

Um exemplo, segundo Haroldo, é o segmento compreendido entre “pluma solitária perdida” e “relâmpago”. Além disso, a distribuição dos versos nas páginas contribui para a sugestão da imagem de um gorro.

Foto das páginas que representam um gorro.

Imagem 4: As páginas sugerem imagens, que o olho capta independente do raciocínio do leitor. No caso, forma-se um gorro.

 

Haroldo também aponta como este trecho faz alusão a Hamlet (príncipe amargo do escolho), ao mesmo tempo que também evoca a ideia do próprio autor (pluma solitária perdida). Não vou entrar nas interpretações que são possíveis, pois isso exigiria mais alguns textos, mas para quem se interessar, vale a pena buscar o livro Mallarmé, de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari (sim, é o livro que eu cito várias vezes neste texto!).

 

Contradição

Voltando para as ideias exploradas em Um Lance de Dados, interessa notar que Mallarmé cria diversas possibilidades para a leitura. Ainda em “Lance de olhos sobre Lance de Dados”, Haroldo indica que os espaços em branco do final do poema projetam a possibilidade de uma constelação (que “envolve o poema como forma nova e, portanto, disciplina controladora do acaso” – p. 190). Aí é onde seria possível encontrar o resultado provável do lance de dados caso ele acontecesse. 

Essa é uma contradição já apontada por críticos da obra mallarmaica. No entanto, essa contradição é justamente o que “fecunda o poema e recoloca os termos do problema — ‘symphonique équation’ (…) — como um ‘xadrez de estrelas’ (…) perpetuamente em progresso” (Haroldo de Campos, p. 190). Desta forma, a contradição da constelação projetada ao fim de Um Lance de Dados limita o acaso, ao mesmo tempo que promove a continuação ininterrupta do poema.

 

A influência de Um Lance de Dados

Por conta das características apontadas acima, e por outras mais, Um Lance de Dados representa uma forma inovadora de entender o trabalho artístico. Isso é tão significativo que acabou gerando um impacto no trabalho de artistas contemporâneos a Mallarmé e também nas gerações seguintes, não só na literatura, como em outras artes. 

Em “A Arte No Horizonte do Provável”, Haroldo de Campos (1969) fala sobre o músico francês Pierre Boulez. Sua Troisième Sonate pour piano (1957) foi diretamente influenciada pela obra mallarmaica. O crítico Antoine Goléa declarou que essa composição de Boulez realiza em música o que Mallarmé ambicionava fazer em poesia.

Isso nos lembra o que Walter Benjamin diz em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1987, p.190), ao tratar dos períodos críticos na arte. Benjamin aponta que, nessas épocas, surgem demandas que só podem ser atendidas em sua totalidade em um momento posterior, num novo estágio técnico, com uma nova forma de arte.

De fato, o século XX possibilitou o surgimento de várias vanguardas, o que trouxe o desenvolvimento conceitual e técnico em arte. Diversos artistas – incluindo poetas — se valeram desses avanços em favor de sua arte. Assim, eles transpuseram valores estéticos e conceituais, agregando novos ícones e/ou utilizando novas formas de trabalhar com os ícones já usados em poesia. Foi neste contexto que surgiu o Concretismo.

 

O que vem a seguir…

No meu próximo texto, eu vou apresentar o Grupo Concretista e a relação deles com Mallarmé. Mas fica aqui um spoiler: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, os autores que eu mais tenho citado nessa série de textos, são os três fundadores do movimento concretista…

 

Observação final

Este artigo é uma adaptação de parte do que eu escrevi para o meu TCC no curso de Letras da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em 2014. Troquei a ordem de algumas coisas e rescrevi outras para melhorar a experiência de leitura, mas eu agradeço muito ao Allan de 8 anos atrás pela ajuda no texto de hoje!

 

Referências

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2010.

CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969.

PIGNATARI, Décio. Semiótica & Literatura. 6a ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

 

Imagens (em ordem de aparecimento)

Imagem de capa: Dados lançados – Foto de Allan Felipe Rocha Penoni, 30/10/2022

Axial – Acervo pessoal

Dados sobre fundo lilás – Foto de Allan Felipe Rocha Penoni, 01/12/2022

Meme Nazaré Confusa

Gorro – Lance de dados – Acervo pessoal