Como toda pessoa que trabalha e estuda, eu sou especialista em procrastinar. Numa dessas, acabei me encontrando com um velho amigo, que há anos eu não via: o poema Um Lance de Dados, de Stéphane Mallarmé.

Um Lance de Dados (1897) é um poema experimental produzido no finalzinho do século XIX. Ele incorpora elementos visuais, referências shakespearianas, música, matemática e até mesmo movimento. Por isso, trata-se de um poema complexo, pra dizer o mínimo.

Apesar de ter sido escrito por um poeta simbolista francês, este poema é bastante importante para a literatura brasileira no século XX. Ele influenciou diretamente o movimento da Poesia Concreta, lá na década de 1950, já que os autores do Manifesto Concretista (Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari) se debruçaram sobre Um Lance de Dados para estudar e explorar as ideias e as propostas poéticas de Mallarmé. 

Portanto, para falarmos da influência de Mallarmé sobre o Concretismo, é necessário compreender as características de Um Lance de Dados. Décio Pignatari (2004, p. 38) aponta que

Mallarmé tentou (…) a redução do universo à linguagem, de que resultou a “descoberta” do universo da linguagem em nível semiótico (ou seja, no limiar da saturação do código verbal).

E o que isso quer dizer? 

Fica mais fácil de entender se nós nos familiarizarmos com alguns conceitos. Em um próximo texto, a gente vai analisar tanto Um Lance de Dados quanto alguns poemas dos Concretistas. Mas neste texto aqui, eu vou apresentar algumas ideias sobre o que são signos e sobre a semiótica de Peirce.

O QUE É SIGNO (não, não estamos falando de astrologia)

No contexto desta conversa, signo é qualquer coisa que representa alguma coisa. Uma palavra é um signo porque ela representa algo (um objeto, um conceito, etc.). 

Uma bandeira? Um signo. Uma placa de “PARE”? Um signo. Um meme da Gretchen? Um signo. Como você provavelmente já sacou, existem diferentes tipos de formas de classificar os signos.

Descrição da imagem: Meme da Gretchen com a palavra “Atenta”

O teórico tcheco Jan Mukařovský diferencia dois tipos de signo: o signo utilitário e o signo estético. Por um lado, temos o signo utilitário, que é aquele que atende as necessidades práticas e teóricas da comunicação. Já o signo estético é mais maleável, no sentido de que ele pode sugerir algo, mas sem ter um valor definitivo. 

Diz ele:

No signo estético, a atenção não se centra nas ligações às coisas ou sujeitos a que ele alude mas sim na construção interna do signo em si. (MUKAŘOVSKÝ, 1981, p. 224) (grifos do autor).

Em outras palavras, podemos entender que o signo estético existe como uma exploração de possíveis sentidos, que são criados a partir da relação com outros signos. Enquanto o signo utilitário tem uma relação direta com aquilo que ele representa, o signo estético não tem essa estabilidade de significado.

Dessa maneira, uma palavra (signo) dentro de um texto pragmático vai ter um significado, enquanto essa mesma palavra num texto literário vai apresentar outras relações.

A SEMIÓTICA DE PEIRCE

A partir dessa ideia de signo estético e signo utilitário, podemos passar à Semiótica de Peirce, bastante utilizada por Décio Pignatari.

Descrição da imagem: Foto em preto e branco de Charles Sanders Peirce, provavelmente de 1891

Charles Sanders Peirce (1839 – 1914) foi um filósofo americano que se envolveu com muitas áreas do saber, sendo mais associado à semiótica. Ele se considerava um lógico, e acreditava que a lógica era um dos ramos da semiótica.

Nos seus escritos sobre semiótica, Peirce aponta que nós criamos significados para todas as coisas numa relação triádica. Para ele, existem 3 níveis de significação. Peirce chamou esses níveis de “primeiridade”, “secundidade” e “terceiridade”. Cada um deles se relaciona a um tipo de signo: o ícone, o índice e o símbolo, respectivamente.

PRIMEIRIDADE

Na primeiridade temos aquilo que se relaciona com as sensações e com o que pode vir a ser. Neste nível, temos a consciência imediata das coisas, no exato instante em que somos expostos a elas. O significado do signo no âmbito da primeiridade é original e frágil, porque é instantâneo. E por ser instantâneo, trata-se de uma compreensão superficial.

Ao perceber o azul do céu, numa percepção instantânea da cor azul, a significação está na primeiridade. Descrição da imagem: Quadrado azul-céu.

O ícone é o signo da primeiridade porque ele tem proximidade sensorial ou emotiva com o que ele representa.

SECUNDIDADE

A secundidade é o nível da existência e da relação. Neste nível, o signo existe e está em relação com outros signos, ocupando “seu lugar”. Trata-se de uma compreensão que é mais profunda que a da primeiridade, pois ela se relaciona com a materialidade do signo.

A sua percepção da existência do céu está na secundidade. Descrição da imagem: Céu azul sem nuvens

O índice é o signo da secundidade, já que ele pressupõe uma relação de causa e consequência entre o signo e o que ele representa, sem necessariamente envolver uma interpretação mais complexa.

TERCEIRIDADE

Por fim, a  terceiridade é o nível da síntese e da interpretação do mundo.

Temos aqui o nível mais robusto da significação, pois é nele que acontece a contextualização dos signos. Essa contextualização depende não só das sensações (primeiridade) e das relações materiais (secundidade), mas também da inteligibilidade construída para aquele signo.

O fato de você olhar para o céu azul e entender que “o céu é azul” é uma significação da terceiridade. Descrição da imagem: Céu azul sem nuvens

Neste nível, o signo é do tipo símbolo, já que o símbolo é uma representação arbitrária de algo, e que traz significado a partir de uma associação de ideias pré-estabelecida.

OU SEJA:

Podemos dizer que, na semiótica de Peirce, existem 3 tipos de signo: o ícone, o índice e o símbolo. O ícone está no nível da primeiridade (sensação, possibilidade). O índice está na secundidade (ação e reação, fato concreto) e o símbolo está na terceiridade (síntese, interpretação do mundo).

Outra forma de pensar: Se você olha para cima e vê o azul do céu, essa sua percepção instantânea da cor azul está na primeiridade. A sua percepção da existência do céu (em contraste com a terra, o mar, e todas as outras coisas) está na secundidade. O fato de você olhar para o céu azul e entender que o céu é azul é uma significação da terceiridade.

E depois, quando você pensa que o céu azul sem nuvem alguma quer dizer que você não precisa levar o guarda-chuva na mochila, isso também está na terceiridade, já que você está interpretando este céu azul.

TÁ. MAS, E DAÍ?

Por que é que a gente precisa disso para entender a importância de Um Lance de Dados para o grupo concretista? 

Isso, queride leitore, é porque enquanto a palavra é um signo utilitário, ela se comporta enquanto um símbolo (signo da terceiridade). Mas no momento que a palavra passa a ser usada como um signo estético, ela assume a característica de um ícone (primeiridade). Portanto, num poema as palavras param de ser a síntese de algo, e passam a ser possibilidade, sugerindo sensações instantâneas.

Por esse motivo é que Pignatari diz que

em termos da semiótica de Peirce, podemos dizer que a função poética da linguagem se marca pela projeção do ícone sobre o símbolo — ou seja, pela projeção de códigos não-verbais (musicais, visuais, gestuais, etc.) sobre o código verbal. Fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone (figura). (p. 17, 2005).

Dizendo de outra forma, podemos entender que, na poesia, as sensações, sugestões e possibilidades afetam a forma como lemos as palavras. Isso nos faz entendê-las no poema de uma maneira diferente da que a gente entenderia essas mesmas palavras numa conversa do dia a dia, numa reportagem ou num relatório científico.

Vai ser a partir dessa consideração que no meu próximo texto a gente vai ver como que Mallarmé foi revolucionário e como que o movimento da Poesia Concreta se inspirou em Um Lance de Dados.

Espero você lá!

 


Referências:

MUKAŘOVSKÝ, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1981.

PIGNATARI, Décio. Semiótica & Literatura. 6a ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

________________. O que é comunicação poética. (8 ed.). Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.

Imagens (em ordem de aparecimento):

Dados lançados – Foto de Allan Felipe Rocha Penoni, 30/10/2022

Meme da Gretchen

Charles Sanders Peirce 

Sol Céu Azul Luz – Imagem de Joe por Pixabay