Essa resenha é uma parceria do Portal Deviante com a Cia da Letras, que disponibiliza livros do seu catálogo para os nossos redatores escreverem as resenhas. Livro de hoje: “De um gole só: A história da AMBEV”.

Muitas pessoas caracterizariam a cerveja como uma paixão nacional. Num país tropical e de proporções continentais, o consumo das formas mais leves e refrescantes da bebida ganha escalas estratosféricas. Junte isso ao sonho de três investidores brasileiros e você tem a maior cervejaria do mundo: A AB Inbev, mais conhecida pelos brasileiros como Ambev. O livro de Ariane Abdallah se dedica a contar a história desta saga capitalista e como o “sonho grande” de Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sucupira acabou se tornando uma da maiores empresas de todo o mundo.

Se eu tivesse que resumir este livro a uma única frase ela seria “um ode ao capitalismo verde e amarelo”. Abdallah faz questão de começar o livro falando dos homens por trás do império e de sua forma de ver os negócios. Os sócios do então Banco Garantia aplicaram suas visões empreendedoras na sua primeira compra, as Lojas Americanas, e levam seu aprendizado à cervejaria Brahma. Esta última foi alvo de uma compra a revelia (quando um investidor compra a maioria da empresa na bolsa sem o consentimento prévio do controlador original) por verem nessas empresas grande capacidade de crescimento. As mudanças que elevaram o patamar da empresa e a levaram à liderança do mercado de bebidas no Brasil foram feitas principalmente através de um cultura empresarial focada na equipe, na meritocracia, no corte de custos e na eficiência. Estas são palavras-chave para entender todo o processo da criação da AB Inbev.

(esq para dir) Beto Sucupira, Jorge Lemann e Marcel Telles.

Ao comprar a Brahma em 1989, os sócios pareciam ir na contramão de um país com grandes problemas econômicos e inflacionários ao comprar uma empresa ineficiente e burocrática. Mas sem perder tempo, implantaram uma cultura que até hoje gera certas controvérsias no mercado de trabalho: cortaram custos de todos os lados, incluindo funcionários, implantaram uma cultura de meritocracia que requer dos funcionários “postura de dono” com metas e números que devem ser batidos constantemente e sob pressão, literalmente derrubaram as paredes para que todos pudessem se comunicar melhor e entender que apesar de haver cargos, hierarquia não queria dizer muita coisa, mas boas ideias sim.

O choque de realidade na Brahma causou alguns desconfortos, já que funcionários foram demitidos e o sistema de distribuição foi drasticamente alterado. Mas exatamente por causa das mudanças, a AMBEV se tornou extremamente eficiente e se estabeleceu na liderança das cervejas no Brasil. A empresa comprou e consolidou marcas até que nos anos 90 se fundiu com a então rival Antártica para criar a maior cervejaria do Brasil. Mas o processo não foi simples assim. Além das dores do crescimento, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) – órgão responsável pela proteção ao mercado e por evitar que haja monopólios – se envolveu no processo de fusão das empresas devido ao grande mercado consumidor assumido e o consequente poder de determinar preços que a nova empresa teria. Apesar das críticas e tentativas da principal rival na época, a Schincariol, a fusão foi aceita com ressalvas, alimentada principalmente pelo discurso de multinacionais brasileiras vencedoras que se construía na época.

Outro empecilho superado pelas empresas foi o choque de culturas: enquanto a AMBEV era pura eficiência, a Antártica ainda era uma empresa familiar, centralizada e burocrática. Apesar de ter sido uma fusão e não uma compra, o “modelo Brahma” acabou predominando, gerando mais alguns desgastes na imagem da empresa perante os funcionários. O jeito agressivo de se fazer negócios acabou saindo do controle da liderança e houve casos na justiça de assédio moral e práticas que deixavam os funcionários sob pressão e desconfortáveis. Segundo ex-funcionários, essas eram na verdade distorções do estilo de liderança praticadas por alguns poucos indivíduos que não representavam realmente a posição da empresa. Mas o desgaste de imagem além de grande foi de certa forma permanente.

Primeiros passos internacionais

Os anos 2000 inauguram uma nova fase na empresa ao expandir para a América Latina ao comprar participações na Argentina e países da América Central. Enquanto os brasileiros se expandem pelo continente, a autora se preocupa em contar uma história que se desenrolava do outro lado do Atlântico e chega à Bélgica, onde contará um pouco da história da Interbrew, dona da marca Stella Artois e tradicional empresa belga. Naquele momento, Ambev e Interbrew tinham negócios complementares: a belga dominava marcas importantes na Europa enquanto  Brahma se consolidava nas Américas. Por isso mesmo a fusão das duas empresas parecia bastante lógica.

A criação da InBev foi cercada de especulações: não foi uma compra, mas os belgas detinham maior capital da empresa. Ao mesmo tempo, os brasileiros exigiram igualdade no processo de tomada de decisão. Isso foi crucial para consolidar a imagem de agressividade dos gestores brasileiros e foi um dos fatores que permitiu que o “modelo Brahma” de fazer negócios fosse implementado em algumas áreas cruciais da empresa. Marcas internacionais começaram a aportar no Brasil, fazendo uso da enorme rede de distribuição já instalada, ao mesmo tempo que a Brahma ganhou o mundo.

Eles querem mais

Alguns poderiam se dar por satisfeitos depois de conquistar a Europa e a América Latina e ter uma das maiores cervejarias do mundo. Mas não Lemann, Teles e Sucupira. Eles queriam mais. Nos Estados Unidos, a Anheuser-Busch – dona da marca Budweiser e do maior mercado na América do Norte – passava por alguns percalços, e os donos da InBev viram uma oportunidade única de chegam junto e comprar um dos maiores símbolos do capitalismo americano. Mas não era um período propício para levantar capital, com os primeiros sinais da crise de 2008. Foi necessária uma manobra gigantesca para garantir que os bancos emprestassem o dinheiro para a compra e mesmo na hora H, os acionistas que vinham da Interbrew deram para trás, fazendo com que os brasileiros entrassem mais fortemente na compra. Para quem acha que isso foi negativo, muito pelo contrário. O menor aporte dos belgas fez com que os brasileiros ganhassem uma fatia muito maior na nova empresa: a AB InBev.

Mas a opinião pública não gostou da compra de uma empresa símbolo do capitalismo americano por uma estrangeiras. Até o então candidato a presidente Barack Obama se declarou contra a venda. Apesar de todo o burburinho, os órgãos americanos liberaram a transação.

Eles nunca estão satisfeitos

Outra vez,  a maioria dos mortais se daria por satisfeitos com o tamanho da empresa e do legado que haviam criado. Mas não os sócios da AB Inbev. Em 2016, apenas 8 anos depois da enorme compra da Anheuser-Busch, a empresa faz outro movimento arrojado ao propor uma fusão com a SAB Miller – cervejaria sul-africana líder no continente. Esse negócio significava que a nova cervejaria não só seria a maior do mundo, mas estaria presente em todos os cantos do planeta, com fortíssimas marcas locais e mundiais. Poderíamos fazer uma analogia dizendo que nesta altura da história, a AB InBev poderia ser comparada a um transatlântico, cujas manobras desafiam os melhores pilotos. Isso fica bem caracterizado pela necessidade de revisão  e aprovação de mercado em 30 países, após a fusão com a SAB Miller.

Algumas das Marcas AB InBev

Enquanto isso, em território nacional, a Ambev enfrentava – e ainda enfrenta seus próprios desafios. Além de nunca terem conseguido se desvencilhar da imagem de assédio moral e pressão sobre os funcionários, a empresa enfrentou diversos processos de formação de mercado e influência sobre os pontos de venda. Mais recentemente, se envolveu em uma polêmica com os consumidores sobre o uso de arroz e milho em suas cervejas, o que as deixariam “impuras”. Com seu infinito apetite, a Ambev também começou um movimento de compra de pequenas  e microcervejarias, como a Colorado, ascendendo um outro debate sobre os limites do mercado.

Os consumidores também mudaram: com gostos mais apurados, começaram a buscar produtores independentes e marcas internacionais, um mercado que cresce exponencialmente. E para quem pensa que a Ambev está perdendo espaço por isso, se engana, já que a empresa tem sob seu enorme guarda-chuva um estrutura conhecida como Cervejaria ZX, caracterizada como “um grupo de crescimento disruptivo global”. Além disso, a empresa conta com iniciativas que miram este novo mercado como sites para distribuição online e empresas que produzem e vendem equipamento para pequenas cervejarias. Há, ainda, todo um movimento de repensar o papel da mulher no mercado de cerveja, que deixa de ser garota propaganda de biquíni para se tornar alvo principal da expansão.

O livro de Ariane Abdallah é muito hábil em mostrar todas as características que levaram a Ambev e seus acionistas controladores ao topo do mundo. A autora também não se exime de mostrar que esse crescimento e desenvolvimento veio com custos, às vezes altos, que ainda assombram a empresa em vários momentos. Apesar de não entrar nas aquisições mais recentes do grupo – que enveredaram para outros produtos e não têm dado os resultados esperados – este livro vai ao fundo da história e mostra todos os bastidores da construção do que hoje é uma empresa tão global quanto nacional.