Elizabeth Gilbert é uma escritora conhecida por seu grande sucesso “Comer, Rezar, Amar”. Ela é a mulher que alguns de nós invejamos por ter passado quatro meses comendo na Itália, outros quatro servindo num ashram na Índia e fechou o ciclo encontrando um amor mágico em Bali. Mas Elizabeth Gilbert é muito mais que só Julia Roberts no cinema. E seu novo livro – Cidade das Garotas – deixa isso bem claro.

Em um dos seus TED talks, Gilbert compartilha como sucesso e fracasso são dois extremos de um mesmo espectro que na verdade nada mais são do que elásticos que te alçam para fora do seu grande centro de equilíbrio. A solução é se lembrar que há algo que te ancora a essa vida mais do que você mesmo e, para Liz Gilbert, essa âncora é a escrita.

Eu consigo ver que é desse lugar de paz que nasce “Cidade das Garotas”. Espero que você esteja preparado para uma ficção de época fora dos padrões convencionais e imersa em uma Nova York rebelde e brilhante em plenos anos 1940, fervilhante das artes e das consequências da Segunda Guerra Mundial. Você pode dizer que a cidade é um dos personagens deste livro, mas a figura de Vivian – a personagem principal de verdade – é uma grande resenha da vida de tantas mulheres em busca de autoconhecimento e uma liberdade despida de machismo.

A personagem principal – Vivian, ou Vivvie – é uma garota de classe média alta que foi educada para ser a esposa e mulher perfeita para a época: colégios internos caros e a ascensão para uma universidade feminina. Mas logo nas primeiras páginas descobrimos que a alma de Vivvie almeja um liberdade que não se encaixa nos padrões universitários e, depois de ser “convidada a se retirar” da instituição, seus pais a mandam para NY, viver com sua tia Peg. Talvez esse seja o único furo em um roteiro bem elaborado: por que os conservadores Morris mandariam a filha caçula viver com a tia ovelha negra em um decadente teatro no sul da ilha de Manhattan?

Na verdade, independente das motivações dos pais de Vivvie, essa decisão desencadeia na jovem uma missão exploratória da cidade e de si mesma. Ela se sente lisonjeada de dividir a vida e o quarto com uma belíssima corista que trabalha no decadente teatro de sua tia. Celia é a grande professora da nossa história, dando aulas de como apreciar tudo que a pujante cidade de Nova York tem a oferecer: dança, bares, bebidas e sexo. As explorações parecem infinitas, os romances arrebatadores e Vivian a se transformar em quem ela acha que sempre deveria ter sido – encarnando o espírito libertário de sua avó e sua tia. Mas obviamente tudo isso cobra seu preço: enquanto o teatro de sua tia emplaca um sucesso de bilheteria, Vivian se encontra em um complicado cenário amoroso que a leva a ser a pivô de um escândalo.

Não pretendo aqui estragar a grande virada do livro, mas o escândalo não poderia envolver nada menos que bares, bebida e sexo. Para mim, o grande tesouro dessa história está que Elizabeth Gilbert faz questão de demonstrar que não importa se numa história que se passa há 80 anos ou hoje em dia, em um escândalo de sexo e álcool, a mulher acaba arcando com as grandes consequências.

Apesar de ter evitado uma catástrofe ainda maior, Vívian se vê obrigada a voltar para casa dos pais numa pequena cidade do interior, tendo que encarar acima de tudo a vergonha de si mesma – muito mais do que de qualquer outra pessoa – e considerar viver a vida bege de seus pais. Curiosamente um dos heróis que salvam Vivvie de uma vida “dentro dos padrões aceitáveis” é a guerra. Levando dois homens relevantes de sua vida para a frente de batalha e trazendo um de volta, a guerra também é o grande motivo que leva sua tia Peg a levá-la de volta a Nova York, onde finalmente ela pode desabrochar na melhor versão de si mesma e encontrar um figura inesperada na forma de um homem de uniforme marcado pela guerra.

É curioso notar que o livro é escrito em forma de carta para Angela que na verdade pede a Vivian que conte como ela conheceu seu pai, um homem misterioso para o leitor até a reta final do livro. Ainda assim todos os fios estão bem amarrados na trajetória de vida de uma mulher muito à frente de seu tempo e de todas as outras incríveis mulheres que a cercam. Quando penso em retrospectiva, é muito surpreendente notar como todos os personagens masculinos são meros coadjuvantes de personalidade frágil numa reversão de papeis bem feita, sem parecer forçado e muito menos um “romance feminista”.

Para mim, além de uma enredo cativante e personagens femininos que refletem o que é ser Mulher (com M maiúsculo) em qualquer época da vida, a grande valor desta obra está na forma como Elizabeth Gilbert mostra a humanidade em cada personagem, revertendo o padrão de expectativas de homens e mulheres numa história que se arrasta por quase 80 anos. Nós sentimos com os personagens, torcemos por eles (ou não), suspiramos, prendemos a respiração e enxergamos as ironias da vida como se fossem nossos amigos ou vizinhos. Não importa se você nunca esteve em Nova York, se não faz ideia do que aconteceu em 1940 ou nunca leu nenhum relato sobre a Segunda Guerra Mundial: o leitor é levado para dentro daquele mundo e percebe que naquele tempo, como em qualquer outro incluindo hoje, o mundo pode (e talvez deva) ser uma grande Cidade das Garotas.