Reality shows são uma parte inevitável da produção audiovisual atual. Existem realities mais voltados para a convivência (BBB, A Fazenda, e o subestimado The Circle), outros seguem as rotinas de famílias (Keeping Up With The Kardashians) e de profissionais (Trato Feito), programas de sobrevivência em lugares extremos (Largados e Pelados) e até mesmo programas de talento com um foco grande nas histórias dos competidores e nas convivências nos bastidores (como acontece em RuPaul’s Drag Race).

Além destes shows de realidade, abundam nas redes sociais breves documentários diários, com fotos, vídeos e textos nas quais pessoas famosas e anônimas divulgam suas realidades.

É claro que hoje muitos já se questionam sobre o quanto cada uma dessas coisas é real e o quanto é manipulado. Faz sentido chamarmos o que acontece dentro da “casa mais vigiada do Brasil” de realidade? É real alguém receber em seu quintal shows semanais de artistas nacionais e estrangeiros?

Além disso, pessoas que participaram dos mais diversos “realities” já relataram sobre o quanto as produções interferem naquilo que ocorre na frente das câmeras. O Trato Feito faz uma seleção prévia dos artefatos que vão ser negociados na loja de penhores (1). Em Largados e Pelados, os participantes não ficam tão isolados quanto o programa diz (2). Os desfiles na passarela de Drag Race são filmados duas vezes, para permitir os comentários dos jurados (3).

E aí você tem as postagens em redes sociais. Cada usuário escolhe como se apresentar para seus seguidores online: as melhores fotos, os eventos rotineiros mais interessantes, as edições de imagem. As legendas são pensadas para transmitir uma certa ideia sobre quem é o ser humano atrás daquele perfil. Cria-se uma versão de si mesmo nestas plataformas.

Uma coisa que é importante dizer: não estou fazendo julgamento de valor. Assisto a alguns realities que me interessam, uso redes sociais para me divertir e para tentar divulgar um pouco as minhas ideias. Não vejo problema nenhum em consumir este tipo de mídia. O que me importa é o entendimento de que reality shows não são sobre a realidade: eles são, acima de tudo, shows, e como shows feitos para atingir um público, eles precisam adaptar a realidade.

A ensaísta e antropóloga argentina Paula Sibilia traz uma reflexão sobre esta ficcionalização da vida em seu livro O Show do Eu: a intimidade como espetáculo: “Quanto mais a vida cotidiana é ficcionalizada e estetizada com recursos midiáticos, mais avidamente se procura uma experiência autêntica, verdadeira, não encenada. Busca-se realmente o real – ou, pelo menos, algo que assim pareça”. (4) Ou seja, este processo de editar como as nossas vidas são apresentadas para os outros (seja no audiovisual, seja nas redes sociais) nos leva a criar versões fictícias de nós mesmos, mas versões que simulam uma realidade.

Essa busca por mais realidade nas mídias que consumimos tem causado um aumento nas publicações e vendas de autobiografias, que, supõe-se, narram histórias verdadeiras sobre pessoas verdadeiras, em todos os seus sofrimentos e glórias, vícios e virtudes. Só que, além das autobiografias, um outro tipo de narrativa tem encontrado solo fértil entre o público leitor do século XXI: as autoficções.

O termo “autoficção” surge com Serge Doubrovsky, um escritor francês. Resumindo muito as ideias de Doubrovsky, a autoficção é a ficção construída de fatos reais. Na prática, estamos falando de textos que confundem dados reais com criações fictícias e estéticas de seus autores. O que separa a autoficção da autobiografia é que a escrita autobiográfica pretende-se uma transcrição da realidade, enquanto na autoficção o autor usa de elementos reais, mas apresenta narrativas completamente inventadas e não a vende como real. Nessas obras, fatos e ficções se fundem, criando uma história que tem indícios de verdade, que poderia ser verdade, mas é, no fim, assumidamente ficção.

Assim, autores contemporâneos têm produzido livros que desafiam as percepções que seus leitores têm sobre o real e o ficcional. Entre estas obras temos: Como me tornei freira, do argentino César Aira, que apresenta narrações de memórias, com um alto teor de ironia; Lorde, do brasileiro João Gilberto Noll, em que o protagonista do livro tem várias características que o confundem com o autor; O falso mentiroso: memórias, do também brasileiro Silviano Santiago, cuja capa traz uma foto do autor em sua infância, como uma “ficção que precisamente expõe os paradoxos da identidade de quem narra”, conforme definido por Diana Klinger em sua tese de doutorado (5).

E a você, leitor do Deviante, fica o convite para dar uma espiadinha nestes livros.

 


Referências

(1) Huge Scandals That Rocked Pawn Stars (em inglês):
https://www.nickiswift.com/491569/huge-scandals-that-rocked-pawn-stars/

(2) 5 Little Known Facts About ‘Naked And Afraid’ (em inglês):
https://www.inquisitr.com/6494643/5-little-known-facts-about-naked-and-afraid

(3) 29 Insane Facts About “RuPaul’s Drag Race” That’ll Snatch Your Actual Weave (em inglês): https://www.popbuzz.com/tv-film/features/rupaul-drag-race-secrets-filming

(4) SIBILIA, Paula. Eu real e os abalos da ficção. In: SIBILIA, Paula. O show do Eu: a intimidade como espetáculo. 2. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016. Cap. 7. p. 247-300.

(5) KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana contemporânea. 2006. 205 f. Tese (Doutorado) – Curso de Literatura, Instituto de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Cap. 1.

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