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Reconhecimento in memoriam e a vida de Lina Bo Bardi [1]

No último dia 8 de março, a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, falecida no ano de 1992, recebeu o prêmio do Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra. O prêmio, que faz parte das premiações promovidas pela Bienal de Veneza (o maior evento de arquitetura do mundo), é apenas o segundo dedicado a um profissional brasileiro. Antes de Lina Bo Bardi, apenas o arquiteto Paulo Mendes da Rocha havia sido reconhecido nessa categoria.

Segundo o curador da 17ª Bienal Internacional de Arquitetura, Hashim Sarkis, a motivação pela escolha de Lina Bo Bardi se deu não apenas pela atuação dela como arquiteta, designer, editora ou curadora, mas principalmente pela importante construção coletiva de suas visões. Lina representa também a perseverança de uma arquiteta ao longo de difíceis momentos, desde guerras – lembrando que Lina ainda vivia na Itália durante a primeira e a segunda Guerra Mundial – a conflitos políticos – lembrando que já aqui no Brasil, Lina atuou durante o período da Ditadura Militar.

A menção à premiação no site da Bienal de Veneza traz ainda breves notas biográficas sobre a arquiteta que se complementam à matéria publicada pelo Archdaily em dezembro de 2020.

Ainda na Itália, Lina colaborou com diversas publicações de arquitetura e estilo, promovidas principalmente por instituições ligadas ao Movimento Moderno. Em 1943, após um bombardeio destruir seu escritório em Milão, a arquiteta assumiu a direção da importante revista da área, a Domus. Em 1947, Lina e seu marido, Pietro Maria Bardi, mudaram-se permanentemente para o Brasil, onde Pietro foi convidado a dirigir o Museu de Arte de São Paulo (MASP) – ainda em sua antiga sede, localizada na Rua Sete de Abril, no centro de São Paulo.

Lina naturalizou-se brasileira poucos anos depois, em 1951, quando também já comandava a revista de arquitetura por ela fundada aqui o Brasil, a Habitat. No mesmo ano de 1951, a arquiteta também projetou sua própria residência, a Casa de Vidro, hoje sede do Instituto Bardi e onde a maior parte do acervo de vida tanto dela, quanto de Pietro é preservada.

O edifício atual do MASP, que, provavelmente é sua obra mais conhecida entre os brasileiros, foi projetado entre os anos de 1957 e 1968. Propositalmente construído a partir de linhas aparentemente simples, o desenho do MASP, com seu vão livre de 70 metros tornou-se emblemático não apenas pela área expositiva, mas também pela grande praça pública criada em seu térreo. Nessa praça, feiras, exposições e manifestações são recorrentes – um espaço para além do museu e aberto para todos da cidade.

Para tornar o grande vão possível, a fundação da edificação foi realizada por meio de sapatas excêntricas sobre um aterro, na própria continuidade dos pilares, e duas grandes vigas de cobertura são as responsáveis pelo travamento horizontal dos quatro grandes pilares que avistamos por fora, hoje pintados na cor vermelha (para compreender um pouco o que são essas estruturas, sugiro os episódios de Construção Civil do Scicast, respectivamente o #365 e o #368).

Além do edifício, Lina também desenvolveu o design dos expositores de arte – cavaletes de concreto e vidro – que recentemente foram readaptados à sala de exposições do museu. (Guarde essa informação, pois mais adiante vou retomar!)

Embora o MASP seja uma imagem mais conhecida, a obra de Lina Bo Bardi, além de extensa, vai muito além da arquitetura. Assim como no caso do MASP, diversos outros projetos da arquiteta foram desenvolvidos em profundidade, com o desenho de mobiliário, estudos de cenografia e expografia. Alguns exemplos para aqueles que se interessam pelo tema são o SESC Pompéia, o Teatro Oficina, e o Solar da Unhão, sendo esse último, um restauro de uma edificação existente, localizada na Bahia, e pouco conhecida até mesmo entre arquitetos.

Conhecendo mais sobre o trabalho de Lina Bo Bardi [2]

Como mencionei anteriormente, atualmente, muito daquilo que foi produzido por Lina através de desenhos ou croquis, textos, fotografias e até protótipos é mantido pelo Instituto Bardi, que, lembrando, se localiza na antiga residência da arquiteta, a Casa de Vidro, no bairro do Morumbi, em São Paulo.

Infelizmente, pela distância, ou até mesmo pelo momento em que vivemos de pandemia, o acesso ao Instituto não é possível a todos nós. Entretanto, muito desse material já foi catalogado e disponibilizado para consulta online.

Para termos uma ideia da diversidade de material produzido ao longo da vida da arquiteta, uma busca por esse acervo revela estudos para joias, figurinos, cadeiras, expositores, mesas, e uma infinidade de outros itens. Basta digitar no buscador uma palavra-chave para que possa acessar as imagens ampliadas junto à ficha completa de cada uma.

Além de poder conhecer o próprio acervo do Instituto Bardi, mesmo em tempos de pandemia, também é possível visitar o MASP virtualmente. Para quem não conhece, ou para quem ainda não visitou o espaço após a retomada dos cavaletes originais, vale a pena consultar o portal Arts and Culture do Google para fazer a visita.

Com a funcionalidade semelhante ao Streetview, que usamos para navegar pelas cidades, o Arts and Culture possibilita acessar seis exposições que aconteceram no MASP, dentre elas, aquela que retomou o uso dos cavaletes, em 2015. É importante mencionar que a reutilização dessas peças expositivas retomou também a proposta museológica de Lina Bo Bardi, que concebeu o museu como uma galeria “aberta, transparente, fluída e permeável” e que, nas palavras dos organizadores dessa retomada dos cavaletes, “oferece múltiplas possibilidades de acesso e leitura, elimina hierarquias, roteiros predeterminados e desafia narrativas canônicas da história da arte”. Isso quer dizer que não é dada ao visitante uma sequência ou uma ordem para as obras expostas. Essa experiência da visitação cabe a cada um e sua vontade de percorrer o acervo – algo somente possível a partir da estrutura proposta por Lina.

Tecnicamente, os cavaletes são peças de base em concreto armado (ou seja, concreto trabalhando em conjunto com perfis em aço), moldada para encaixe de uma cunha em madeira (ou seja, uma peça em ângulo agudo, como uma fenda), onde é fixado um vidro temperado incolor. Este vidro possui uma furação para receber a obra de arte exposta e, no verso, é afixada a respectiva ficha técnica. Para atender aos diferentes tamanhos de obras de arte, o projeto de reformulação dos cavaletes originais previu a organização do acervo em grupos de obras, que permitem o uso da mesma fixação para eventuais rodízios da exposição. Dessa maneira, é possível fazer alterações no material exposto sem prejuízo do expositor.

Cavalete original (acima) e sua versão renovada (abaixo). Foto de Romullo Baratto, disponível aqui

Por que falar de Lina Bo Bardi? [3]

Agora, para ir encaminhando ao final, é necessário reforçar o motivo pelo qual é importante trazer hoje, em 2021, uma figura como a de Lina Bo Bardi. Claro que a obra e o trabalho de Lina são incríveis e há muito a ser dito a respeito. Não faltam livros, teses ou publicações sobre ela, principalmente na mídia especializada. Porém, normalmente, quando falamos em arquitetura no Brasil, o nome que vem à tona é apenas, e isolado, o de Oscar Niemeyer.

Para dar uma dimensão de que a questão da não representação feminina na arquitetura é também mundial, se considerarmos apenas os Leões de Ouro atribuídos ao conjunto da obra distribuídos ao longo das dezessete Bienais de Arquitetura de Veneza, além de Lina, apenas a arquiteta canadense Phyllis Lambert recebeu a menção.

Ainda, se considerarmos o maior prêmio de arquitetura global além do Leão de Ouro, o Prêmio Pritzker (considerado por muitos um equivalente ao “Nobel” da arquitetura), dos mais de quarenta prêmios distribuídos, apenas 6 foram destinados a mulheres (sendo o último recentemente divulgado, à arquiteta Anne Lacaton, em parceria com o arquiteto Jean-Philippe Vassal).

Entretanto, quando analisados dados de escolas de arquitetura ou até mesmo órgãos profissionais, notamos que, na realidade, a maior parte dos atuantes da área é constituída por mulheres.

No caso do Brasil, de acordo com dados do Diagnóstico Gênero na Arquitetura e Urbanismo, divulgado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (o CAU), 64% dos profissionais ativos hoje no país são mulheres – embora nem sempre sejam as mulheres a ocupar posições de destaque em grandes premiações, eventos ou escritórios. Nesse sentido, para além de inspirar, também motivar novas estudantes e profissionais na carreira, diversas iniciativas ganharam espaço para a divulgação dos trabalhos liderados por mulheres, tanto na arquitetura como no urbanismo.

Aqui no Brasil, o próprio CAU lançou uma plataforma de equidade, a partir da qual organiza debates e divulga dados de suas pesquisas e propostas. Internacionalmente, a UN-Habitat (Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos) também lançou uma plataforma chamada “hercity” para dar cobertura a eventos relacionados à temática de gênero e a atuação das profissionais da área de planejamento urbano.

Caso você tenha interesse em conhecer melhor outras dessas iniciativas, vale a pena consultar o link do Archdaily ao fim do post. Além das iniciativas, o link também traz sugestões de filmes e conteúdos bem interessantes sobre mulheres na arquitetura e no urbanismo!

Referências:

[1]

(A) Lina Bo Bardi special Golden Lion for lifetime achievement in memoriam

(B) Lina Bo Bardi, entre o moderno e o primitivo

(C) FERRAZ, Marcelo Carvalho (org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Bardi : Casa de Vidro : Romano Guerra Editora, 2018.

[2]

(A) Lina Bo Bardi, entre o moderno e o primitivo

(B) Instituto Bardi – Busca no Acervo

(C) MASP – tour virtual  

(D) Concreto e vidro: Os cavaletes de Lina e um novo jeito antigo de exibir arte

[3]

(A) Mulheres na Arquitetura e nas Cidades

(B) Para um futuro equitativo: Dia Internacional da Mulher 2021

Fonte da imagem de capa


Heloisa Escudeiro. Sou arquiteta e urbanista, mestranda em planejamento urbano e regional, entusiasta a professora, apaixonada por artes manuais e humana de gatos e plantas (e, às vezes, tudo junto e misturado).