My roman empire foi um meme, no ano de 2023, que se referia às coisas em que você pensa constantemente. O nome vem do tik tok, onde uma moça perguntou ao seu companheiro com que frequência ele pensa no império romano e a resposta foi “várias vezes na semana”.  O meu roman empire é o fato de estarmos no final do ano do governo Lula e até agora nenhum dos responsáveis pelo desastroso comando na pandemia ter sido punido.

Não esquecer o que foram esses anos de 2020 até 2022 é fundamental para construirmos uma democracia forte, além do reconhecimento de que crimes contra a saúde pública, que custam vidas humanas, não podem se repetir. No texto de hoje quero voltar a falar da pandemia e punição.

 

Sem anistia!

Os que estavam na posse do presidente Lula, no primeiro dia de 2023, gritaram as palavras “sem anistia!” enquanto Lula citava atos identificados da gestão anterior pela sua equipe de transição. As palavras “sem anistia” são uma vontade de não repetir os erros do passado e acima de tudo punir os responsáveis pelo desastre que foi o comando da pandemia de COVID-19.

No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico, daquela conhecida televisão.

A frase anterior veio de Jair Bolsonaro, que após o anúncio pela a OMS de que a COVID-19 era uma pandemia, em rede nacional deu o seu primeiro discurso sobre o momento sombrio que iríamos viver nos próximos anos.

Escrever sobre a pandemia de COVID-19 no final de 2023 é algo curioso, o que foram os últimos anos? Como conseguimos chegar aqui? Em que momentos vamos viver o luto que nos foi negligenciado? E principalmente quando os culpados pagarão por isso?

Imagem 1 multidão vestida de vermelho nas ruas de Brasília durante a posse do presidente Lula, fonte link

Pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Sou Ciência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que 51,5% da população quer que os crimes associados a mais de 700 mil mortes pelo novo coronavírus no Brasil sejam julgados e condenados. O mesmo levantamento ainda aponta que 62,1% dos entrevistados associam o governo de Jair Bolsonaro e o Ministério da Saúde como os principais responsáveis (link). 

Porém escrevo esse texto no final de Novembro de 2023 e ninguém foi punido ainda. Uma crise sanitária sem precedentes que o país enfrentou.

Ainda em meio à pandemia, no Senado Federal, foi criada a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) tendo como principal objetivo investigar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia.

Na pesquisa citada anteriormente, dos entrevistados, 76,5% afirmaram ter acompanhado a CPI da pandemia, sendo ela fundamental para o embasamento da sua opinião. 

De acordo com o site do Senado, o relatório final da CPI acusou formalmente o até então presidente Bolsonaro de ter cometido nove crimes: prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado morte, infração a medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime, falsificação de documentos particulares, crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade. Além de Jair Bolsonaro muitos outros também foram condenados (link) e, até a data em que escrevo essas palavras, não houve nenhuma punição. 

Antes de continuar o texto, existe uma dificuldade grande de encontrar artigos recentes em grandes jornais que falem sobre a punição dos crimes cometidos na pandemia. Então deve haver anistia para os crimes cometidos? essa pergunta vai nos guiar daqui pra frente.

 

Lei da anistia aos militares

A Lei da Anistia (Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979) garantiu o “perdão” dos crimes políticos cometidos durante o período da Ditadura Militar brasileira. Citando diretamente a lei (link)

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares

De certo modo essa lei colocou em igualdade as pessoas torturadas e exiladas do país com os militares que torturaram e usaram de uma falsa moral para cometer crimes tão bárbaros que nem ouso citar aqui. O período da ditadura militar foi sombrio e, por nunca termos lidado bem com isso, os efeitos são sentidos até atualmente.

(imagem 2 charge de um militar com um guarda chuva escrito “anistia” se protegendo dos crimes, fonte link)

De acordo com matéria do site Nexo (link) a Lei da Anistia serviu para blindar os militares e seus agentes de qualquer responsabilização pelos crimes de tortura, sequestro, desaparição forçadas e assassinatos cometidos no período da ditadura militar. 

De acordo com a mesma matéria, a própria palavra anistia carrega um significado pesado, pois a anistia não é igual a esquecimento ou absolvição, e sim a impossibilidade de julgamento e de condenação dos crimes cometidos. No caso da lei, os crimes podem ser investigados e elucidados, porém como já dito, os responsáveis não podem pagar por seus atos.

Existe uma relação direta pela falta de punição dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura militar e dos cometidos pelo governo Bolsonaro durante a pandemia. Além do mesmo e de pessoas ligadas negarem esses acontecimentos, ele constantemente referencia torturadores nos seus discursos. A memória da Ditadura Militar deve sempre ser lembrada em um contexto da América do Sul.

Em outros países latino americanos houve uma mobilização de punição aos militares no período pós ditadura. O melhor exemplo disso é o da Argentina (link), que revogou a lei da anistia e criou comissões de registro nas quais documentou por meio de depoimentos de sobreviventes e familiares dos campos de detenção. 

Já o Brasil foi o país que menos julgou e puniu os militares no período pós ditadura. De acordo com a historiadora argentina Marina Franco em matéria para BBC (link), após o período ditatorial brasileiro não houve uma política de Estado de preservação da memória, além da falta de políticas educativas, somando-se à, já citada, lei da anistia.

As políticas de Estado brasileiras vinham em um momento tardio ainda de acordo com Franco 

O Brasil é o caso mais extremo, porque, com a lei de anistia de 1979, não houve praticamente nenhum julgamento. E existe um consenso social a favor dessa lei [confirmada pelo Supremo em 2010], uma vontade política, uma vontade jurídica para que ela seja mantida. A Comissão da Verdade é bastante tardia. O próprio partido que poderia tê-la estabelecido muito antes, que era o PT, demorou para fazê-lo.

Dessa forma a memória da ditadura se torna deturpada, pois muitos ainda acreditam que aquele foi um bom momento econômico. Isso faz com que políticos que negam e exaltam esse período sejam aceitáveis por algumas pessoas em momentos conturbados.

 

Voltando para a pandemia

A história da pandemia de COVID-19 no Brasil seria completamente diferente se, em 2016, o até então deputado Jair Bolsonaro tivesse sido punido ao homenagear um dos maiores torturadores brasileiros (link). É um efeito cascata, pois quantas vidas teriam sido salvas se o Brasil não tivesse sido o pior em gestão durante a pandemia?

Em diversos textos meus aqui menciono como teria sido ”fácil” para o Brasil, com o SUS, ter feito as políticas públicas necessárias para salvar vidas na pandemia. Coisa que em outros países só começaram a ser discutidas durante a COVID-19, como uma saúde universal, atenção primária e um sistema nacional de vacinação, aqui em território brasileiro já eram bem estabelecidas inclusive sendo usadas de modelo.

Cabe ir mais além do que os crimes cometidos pelos governantes na saúde pública. A saúde privada também segue impune dos crimes cometidos na pandemia, de experimentos horríveis realizados com a população de tratamentos precoce (link), discurso antivacina pregado por profissionais de saúde (link), médicos que fizeram nebulização de cloroquina (link), até o lema “morte também é alta”(link). Todos esses são crimes dos qual não devemos esquecer.

O que aconteceu é que houve negligência por parte de um governo formado, em sua maioria por militares, militares esses inclusive que tomaram conta da pasta do Ministério da Saúde, pessoas  que não sabiam nem o que era o SUS (link) estavam em posição de liderança quando a nossa saúde pública foi essencial.

(imagem 3 cemitérios cheios e mais covas sendo abertas durante a pandemia, fonte link)

Durante todo o governo de Jair Bolsonaro a PGR (Procuradoria Geral da República), comandada na época por Augusto Aras, arquivou e blindou a probabilidade de julgamento dos crimes apurados na CPI da pandemia (link). 

Agora em novembro o atual presidente Lula indicou uma nova pessoa para estar à frente da PGR, porém as notícias iniciais não são animadoras com o novo nome. Isso significa que no decorrer do ano que vem os crimes da pandemia ainda serão ignorados? Bom, essa parte vai ficar pra um texto futuro. Porém cabe a nós, como sociedade civil, cobrarmos “sem anistia” para os crimes cometidos na pandemia.

 

Iremos errar de novo?

No final de Novembro de 2023 Lula fez um discurso histórico sobre o reconhecimento dos erros do passado no enfrentamento do Brasil contra a hanseníase no ano de 1986, no qual, por decisão do Estado, separaram pessoas doentes de seus familiares.

Trecho retirado diretamente do discurso (link)

Ao mesmo tempo em que obrigava homens e mulheres com diagnóstico de hanseníase a viver isolados em hospitais colônias espalhadas pelo país, o Estado brasileiro criava uma geração de órfãos de pais vivos. Crianças abandonadas, levadas a crescerem em locais segregados, muitas vezes vítimas também de preconceitos e maus-tratos, privadas de amor e de oportunidades. Certamente, nenhuma delas, muitas das quais presentes aqui hoje, já adultas, têm lembranças boas dos locais para onde foram levadas.

O Estado brasileiro reconhece os seus erros cometidos durante esse momento e de certo modo tenta lidar atualmente da melhor maneira possível. Tal fato é de extrema importância pois essas ações do passado prejudicaram a saúde e bem estar de muitos cidadãos brasileiros. Desse reconhecimento cria-se atualmente uma série de políticas públicas que visam minimizar os crimes do passado.

(imagem 4 família se abraça no fundo um cemitério lotado de covas durante a pandemia, fonte link)

Nesse mesmo contexto, não podemos esperar 40 anos para que os crimes cometidos durante a pandemia da COVID-19 sejam reconhecidos, punidos e que haja justiça. Em um mundo onde vivemos na iminência de uma crise global com as consequências da mudança de temperatura, não temos esse tempo todo a esperar. 

Em relação a isso cabem, sim, muitas críticas no modo com que o presidente Lula vem lidando com os crimes cometidos por um governo militar em que esteve à sua frente Jair Bolsonaro. Já passou da hora de tratarmos os crimes, sejam na pandemia ou durante a ditadura militar, como o que realmente são, algo que deve estar na memória viva de todos os brasileiros para que algo assim nunca volte a se repetir. Erramos uma vez em não punir militares, iremos errar de novo?  

imagem de capa fonte link