Em minhas duas últimas contribuições ao portal, discorri sobre as camadas políticas do videogame Persona 5 e de sua trilha sonora. Ficou a promessa de encerrar essa série com uma discussão um pouco mais teórica acerca do tópico. Portanto, nessa terceira e última parte, buscaremos discutir sob que perspectivas a trilha sonora de um jogo como Persona pode ou não ser considerada política.

Para dar sustentação a essa discussão, me valerei especificamente da obra do pesquisador James Garratt, que se tornou referência na discussão sobre interseções entre música e política com Music and Politics: A Critical Introduction (2018). Na Parte 1 dessa série, já pincelamos um pouco das ideias de Garratt ao comentar sobre sua (muito útil) diferenciação entre uma definição ampla e uma definição estreita do termo ‘política’. Vale a pena recapitular essas ideias para dar sequência ao nosso debate.

Pode-se dizer que a definição ‘estreita’ de política de Garratt faz referência a tudo aquilo que normalmente vem à mente quando pensamos na palavra ‘política’: a ideia refere-se a eleições, parlamentos, cargos governamentais e assim por diante. Em suma: a ‘política estreita’ de Garratt nada mais é do que aquilo que temos nos habituado a tratar por ‘política institucional’. Por outro lado, a definição ‘ampla’ de Garratt é de fato tão ampla que é difícil traçar seus limites. Ao buscar abarcar tudo que se refira à vida pública de determinada população, essa ideia mais ampla passaria por discussões tão diversas quanto racismo, sexualidade, meio ambiente, relações familiares e, é, claro, tudo o que também está incluso na definição mais rigorosa.

Um dos pontos levantados na Parte 1 dessa série foi que um jogo como Persona 5 se enquadra perfeitamente nessa discussão de política como um conceito mais amplo: ao discorrer sobre temas como assédio, opressão de jovens dentro do sistema escolar e abuso de trabalhadores em grandes empresas, o jogo se coloca de forma muito clara em um contexto de debate político.

Algo muito similar pode ser dito a respeito de sua trilha sonora. Conforme analisado na Parte 2 da série, ela, em diversos pontos, faz referência a signos de revolta, rebelião e revolução: em alguns momentos convidando o jogador-protagonista a participar desse turbilhão e em outros colocando-o como força motriz do mesmo.

Não só isso, mas canções extraídas da trilha de Persona 5 foram deliberadamente empregadas em discussões sobre canções de protesto no mundo real. Se simplesmente aplicarmos essa definição de Garratt ao contexto do jogo, portanto, torna-se inescapável admitir que há, sim, um teor político por trás de sua trilha sonora. No entanto, uma questão válida a ser levantada acerca desse ponto é: de que formas a trilha sonora de Persona 5 ganha sua dimensão política?

As ideias de James Garratt também se apresentam como muito úteis para debater essa questão. Em sua discussão, o autor elenca três principais meios pelos quais determinada obra musical pode adquirir alguma dimensão política: intencionalidade, estética e materialidade. É importante ter em mente que nenhum desses elementos é mutuamente exclusivo, de forma que é plenamente possível que o teor político de uma canção venha de todas as três. Uma análise mais detalhada de acordo com cada perspectiva, no entanto, tem o poder de revelar detalhes interessantes sobre a obra em questão.

O primeiro fator levantado por Garratt — intencionalidade — é bastante autoexplicativo: diz respeito ao quanto o autor da obra musical em questão de fato tinha a intenção de adicionar a ela alguma camada de teor político.

Para exemplificar essa ideia, podemos pensar na obra de uma banda como o Rage Against The Machine, em que o discurso antiopressão e anticapitalista está tão entranhado na obra musical que seria inusitado ouvir uma composição da banda desprovida de uma alta carga de intencionalidade política.

Por outro lado, podemos pensar em canções que se tornaram políticas a despeito do intensão inicial de seus autores, ou que ao menos adquiriram um caráter político mais forte do que o inicialmente planejado. Um exemplo que vem à mente para este caso é a cooptação da obra de Richard Wagner pelo partido nazista na Alemanha.

No caso da trilha de Persona 5, essa discussão leva a um ponto bastante interessante. É claro (como discutido na Parte 1) que o diretor de Persona 5, Katsura Hashino, pretendia fazer um jogo dedicado a comentar a situação sócio-política do Japão, o que inevitavelmente levou a equipe de desenvolvimento a incutir esse foco na estética da obra.

É mais do que claro que o teor político de canções como Wake Up, Get Up, Get Out There e Life Will Change (analisadas na Parte 2) é uma consequência dessa proposta inicial. Isso bastaria para dizer que há um alto grau de intencionalidade na dimensão política dessas canções.

Não podemos nos esquecer, no entanto, de que se trata de uma obra desenvolvida por uma grande empresa, com o objetivo final de obter lucro. Se não invalida, esse fator, no mínimo, borra a ideia de uma intencionalidade política na obra e torna sua discussão mais interessante: devemos assumir, com base nisso que, no mínimo, existem interesses (e portanto intencionalidades) conflitantes na produção do jogo, fazendo com que o teor político de sua trilha sonora sirva não a um, mas sim a um leque de propósitos.

Torna-se fundamental, diante da discussão sobre intencionalidade, pensar em como a obra é recebida por seus ouvintes e consumidores. Garratt ajuda a discutir esse ponto ao levantar as categorias de estética e materialidade.

O que Garratt define como ‘estética’ em sua discussão sobre música e política é a “habilidade da música de ser ouvida e sentida por ouvintes de formas que lhe confiram agência política”.

É interessante pensar na alta carga de subjetividade que existe aqui. Garratt refere-se a elementos sonoros que não necessariamente se relacionem com o conteúdo lírico da música, mas que possam fazê-la transmitir ao ouvinte a sensação de que se trata de uma canção de protesto, por exemplo. E o fato é que esse processo está altamente condicionado a quais são os signos musicais que cada grupo de ouvintes acostumou-se a interpretar como politicamente relevantes.

 

Pensando nisso, é fato que a trilha sonora de Persona 5 vale-se de diversos elementos vindos do rock e heavy metal — comumente interpretados como signos de rebeldia — além de beber muito nas fontes do jazz e do funk, gêneros historicamente associados a discussões acerca de raça, classe e direitos civis.

Novamente, no entanto, é importante notar que essas escolhas musicais não conferem uma camada política automática à obra em questão, pois são altamente dependentes da interpretação que cada ouvinte fará das canções. Eu argumentaria, portanto, que o elemento estético entra no máximo como uma espécie de facilitador, ou de catalisador da camada política conferida à obra por seus autores. É impossível avaliar a efetividade desse fator sem olhar atentamente para como essas canções são recebidas e interpretadas por seus ouvintes, e é nesse ponto que se torna relevante a ideia de ‘materialidade’.

O que Garratt entende por ‘materialidade’ ou ‘agência material’ pode ser resumido como a obra musical ganhando vida política própria, por exemplo ao ser empregada em protestos ou campanhas eleitorais. É óbvio que esse fator pode ser influenciado pelos dois anteriores, e, no entanto, é interessante ter em mente que não há necessariamente uma dependência direta entre eles.

Conforme analisado na Parte 2, isso é claramente exemplificado em Persona 5 pelos casos de canções do jogo sendo sugeridas como trilha sonora para os protestos do Black Lives Matter, em junho de 2020. Nessa situação, em que se discutia quais músicas melhor serviriam ao propósito de embalar os manifestantes em embates contra a polícia nos Estados Unidos (e em que se sugeria uma gama de obras que ia de Rage Against The Machine à Internacional Socialista), um participante achou por bem sugerir canções extraídas de Persona 5 por acreditar que elas refletiam ideais e continham elementos estéticos extremamente compatíveis com essa situação real. Nesse caso, portanto, a intepretação feita pelo ouvinte tornou-se o elemento definidor para o emprego da obra como elemento político, permitindo que ela transcendesse até mesmo a sua aplicação original.

Fica claro ao longo dessa discussão o quanto a definição política de uma obra como a trilha sonora de Persona 5 é altamente dependente de fatores externos a ela. É impossível travar esse debate sem discutir a fundo o que entendemos por política, quais são as intenções do(s) criador(es) da obra, e quais são os fatores que podem levar ouvintes a interpretá-la como uma obra política.

O fato, no entanto, é que o mesmo potencialmente se aplica a obras que são mais explicitamente políticas que essa e, no fundo, a toda e qualquer obra artística. Assim, ao carregar ao menos um mínimo de intencionalidade política, Persona 5 e sua trilha sonora abrem portas para que sejam mais facilmente interpretados como tal. No entanto, ao dificilmente poderem ser enquadradas como obras puramente políticas, eles acabam entrando em uma zona cinzenta em que o debate e a indefinição se tornam as constantes. Ironicamente, é possível que seja justamente aí onde mora o seu maior potencial político.