Nada te prepara para a experiência do doutorado, mas talvez esse texto ajude. Eu estou hoje terminando o segundo ano do meu doutorado em linguística na Universidade de Cardiff, no País de Gales, no Reino Unido, aos 40 anos. Estou passando por um momento de transição de compreensão do que é o doutorado que eu gostaria que alguém tivesse me contado antes. Não que isso fosse me fazer mudar de ideia! Mas talvez me ajudasse a sofrer menos.

Vou contextualizar um pouco mais minha situação. No Brasil, eu já dava aula no ensino superior, por ter um mestrado, há 10 anos, quando vim para o Reino Unido fazer o doutorado. No processo de seleção, a universidade me ofereceu um programa 1+3, que era um ano de mestrado, mais três de doutorado. Eles acharam que eu me beneficiaria do mestrado para “entrar no ritmo” e entender como produzir melhor uma metodologia. Aceitei! Mas foi um começo de curso meio confuso. Sem saber direito meu papel ali. Como professora de ensino superior, com duas graduações e um mestrado, eu deveria já saber tudo aquilo. Minhas notas medíocres nas primeiras avaliações me colocaram no meu lugar. Era um mundo novo, com outra forma de abordar os temas: mais direta e profunda. Ralei que nem uma condenada, mas terminei o mestrado com louvor, ou ‘distinction’, como dizem aqui.

Aí veio o doutorado. Fui revisar meu projeto que tinha sido aceito e, socorro!, como foi que me aceitaram?! Primeiros 3 meses foram de reescrita desse projeto e, mal sabia eu que esse projeto estaria “em construção” durante TODO O DOUTORADO! Tá, talvez eu esteja exagerando um pouco, mas aqui temos uma avaliação (equivalente à uma qualificação no Brasil, talvez) a cada seis meses e, a cada seis meses, eu entrego uma revisão desse meu projeto.

Bom, passando por uma das várias crises que seu que terei nesse período, encontrei um artigo da nature de 2018 que é “20 coisas que eu gostaria de ter sabido quando comecei meu doutorado” que me inspirou a fazer este texto. Então vou usar as dicas dele como base para ir falando da minha experiência:

  1. Mantenha um equilíbrio saudável entre trabalho e vida. Eu nunca dei o valor necessário para isso. Sempre fui meio workaholic e, como morava sozinha, sem filhos ou parceiro, era comum eu mandar e-mail para meus colegas de trabalho com “estava com um tempo livre e já preparei as provas. Vejam o que acham!”, em pleno sábado à noite. Aqui, no mestrado, terminei fazendo a mesma coisa. Socializei pouco, viajei nada e estudei muito. Me arrependo. Foi o ano anterior à pandemia, eu estava num país novo, com um universo de coisas para conhecer. Me prometi que no doutorado seria diferente. Veio a pandemia e… bem, como todo mundo, os finais de semana não ficam estão muito diferentes dos dias de semana. Mas agora me obrigo a parar pelo menos um dia inteiro por semana.
  2. Converse com sua orientadora/seu orientador sobre as suas expectativas. Eu acrescentaria, converse também sobre suas necessidades e dificuldades. Eu sabia que metodologia era meu ponto fraco, então invertemos o processo e começamos por ela. No meu primeiro ano, me senti bem acolhida pelos orientadores, que me davam um retorno supre completo de cada coisa que eu mandava para eles. Tive depressão no começo da pandemia e eles entenderam que eu precisava de mais tempo para produzir o que antes eu conseguia produzir em menos. Mas isso só foi possível porque eu falei com eles sobre as dificuldades que estava enfrentando.
  3. Invista tempo na revisão bibliográfica. Quando fiz minha primeira timeline de quando tempo eu disponibilizaria para cada parte do doutorado, meus orientadores me disseram que a revisão bibliográfica só para quando o doutorado acaba, quando você termina e vai só terminar de escrever e revisar, sabe? Isso porque sempre pode aparecer alguém publicando algo que seja pertinente para a sua pesquisa. Como comentei no episódio de Epistemologia 3 do Scicast, tem muita gente produzindo conhecimento e a velocidade com que as coisas mudam é imensa.
  4. Decida seus objetivos o quanto antes. Essa sugestão, me pareceu meio óbvia, já que os objetivos devem ser o que guiam suas perguntas de pesquisa, que guiam absolutamente tudo que você vai fazer. Maaas, o artigo complementa; “Objetivos podem mudar mais tarde, mas ter um plano claro vai te ajudar a manter o foco”. Aqui está a minha crise atual e que acho que todo mundo deveria saber antes de fazer um doutorado: sues objetivos mudam. Tudo pode mudar no processo do seu doutorado. Seja porque informações novas vão aparecendo que fazem com que você repense o que queria antes, seja porque sua metodologia se mostrou inadequada para o que você queria, seja porque houve uma pandemia e você não terá mais como fazer pesquisa de campo, seja porque você descobriu algo ainda mais interessante e que tem maior repercussão internacional…. enfim, milhares de coisas acontecem nesse processo. Então entendam, doutorado é um processo, um processo de autoavaliação, um processo de desapego, um processo de reinvenção, um processo de criatividade, um processo de autoconhecimento… Para fazer um doutorado é preciso estar disponível à mudanças.
  5. “eu não preciso escrever isso porque vou lembrar depois” é a maior mentira que você pode dizer para você mesmo. Particularmente, isso não foi um problema para mim. Eu tenho 12874056584978345734590864395 de pastas no computador, cada uma com fichamentos de cada artigo ou livro que li. Mas essa é uma dica boa. Você lê TANTA coisa que você não vai se lembrar depois daquela especificamente. Então, organizar suas leituras e reflexões é muito importante, o que liga com a próxima dica que é:
  6. Organize seu trabalho e local de trabalho. Papel é ótimo para anotar ideias que vêm de repente, maaaaas papeis se perdem. Tenha pastas, cadernos, fichários, usem e abusem de espaço no computador.
  7. Nunca é cedo demais para começar a escrever a tese. Eu tenho um modelo no word com as configurações exigidas para a tese e mando o material para os orientadores todo mês já nela. Faço arquivos diferentes, obviamente, mas ir escrevendo já no formato bonitinho dá sensação de realização e concretização, de que você pode finalizar aquele processo em algum momento.
  8. Quebre a tese em objetivos SMART. O artigo usa a palavra ‘esperto’ em inglês como sigla para as características dos objetivos: specific (específico), measurable (mensurável), attainable (alcançável), relevant (relevant), e timely (oportuno). Escrever uma tese inteira é assustador. Dividir em capítulos ajuda, mas pensar em escrever só sobre um dos pontos teóricos é mais realista, traz menos ansiedade. A sugestão dos meus orientadores agora no segundo ano foi conseguir pensar nos subtópicos dos capítulos e como eles se relacionam entre si e com a tese toda. É um exercício constante (já que está em constante mudança), mas ajuda a ter sempre claro como cada parte dialoga com a outra, ajuda a priorizar algumas coisas… enfim, achei bem útil
  9. A melhor tese é a tese terminada. Imagino que essa seja uma dica para quem está mais perto de terminar, mas acho válida. Volto a lembrar que a sua pesquisa é o reflexo de um processo e de um momento. Se depender de acharmos que alcançamos o que queríamos, ela dura para sempre. É importante estar de olho no tempo, que voa!
  10. Seja honesto com sua orientadora/ seu orientador. Não deixem passar comentários que vocês não entenderam. É muito frustrante ser corrigido pela mesma questão diversas vezes. Minha sugestão, parafraseie o que eles disseram. Confirme se entendeu. Aqui temos um relatório que preenchemos a cada orientação. Temos que colocar o mais detalhado possível o que foi discutido e o que ficou acordado para o próximo encontro. Os orientadores leem depois e dão o ok, ou não.
  11. FAÇA BACK-UP! Não dá para enfatizar isso mais. Tenha várias cópias salvas, em pendrive, na nuvem, no computador, manda pra mãe….
  12. Socialize com outros colegas. O processo do doutorado é muito solitário, principalmente para alguém que não trabalha em laboratório, ou que não tem que sair a campo para colher dados. Se não tomar cuidado, você não vê gente por meses! Mesmo na pandemia, fiz alguns encontros virtuais com os colegas. É bom pra gente se desesperar junto, pra pedir socorro, pra falar de nada…
  13. Vá às palestras que o departamento oferece, mesmo que não seja exatamente da sua área. Às vezes é um pedaço da metodologia que é apresentada que vai te dar uma luz do que você precisa fazer, ou um autor que é citado e que você acha que pode te ajudar.
  14. Apresente sua pesquisa. Crie experiência de apresentar em congressos. Pode ser assustador, mas é uma das poucas formas que você consegue feedback de outras pessoas que não sejam seus orientadores… ou sua mãe. Minha experiência aqui foi quando apresentei no meu primeiro ano na conferência anual do departamento. Eu disse que parte da minha metodologia era comparar textos do greenpeace da wwf com decisões do STF para ver se havia algo em comum que pudesse ser chamado de ativismo. A ideia passou tranquila pelos meus orientadores. Aí tive feedback de dois professores apontando que eu estaria comparando “tipos” de textos muito diferentes. Isso mudou completamente o rumo da pesquisa. Foi explorar os dados para ver se o que eu queria dava certo, fui tentar justificar o porquê dessa decisão a princípio tão descabida e um mini trecho da metodologia no segundo ano virou um capítulo importantíssimo de análise.
  15. Tente publicar sua pesquisa. Provavelmente, você não vai conseguir publicar de cara, mas receber as críticas, identificar se são válidas ou não, tentar melhorar alguns aspectos que podem não ter ficado claros são habilidades válidas para exercitar. Ainda não tentei publicar nada da minha. Essa foi uma frustração muito grande quando cheguei aqui. Só pensava em “tenho que bombar meu cv, quero publicar loucamente”. Cada prova que eu fiz no mestrado eu pensei que poderia virar um artigo. Mas fui desencorajada por alguns professores. A realidade daqui e do Brasil são muito diferentes. As revistas não são divididas, como no Brasil, entre as que aceitam autores com mestrado ou só doutorado. Além disso, tem a questão do número de doutores que o país tem (proporcionalmente)… enfim, ainda não fiz e confesso que ando vendo essa avidez por publicar (qualquer coisa) só para ter no currículo com olhos não tão bons…
  16. Tenha vida! Essa dica liga com outra lá em cima, né? É muito importante achar tempo para você não trabalhar no doutorado. Ninguém aguenta!
  17. Não se compare com outros. O artigo diz que o doutorado é sua oportunidade de fazer algo original e que, por isso, cada programa é diferente. Não sei se posso dizer que é comparação, mas tenho me sentido muito só com as minhas crises. Gostaria de saber se outros que passaram por doutorado sofreram com essas mudanças constantes, com as incertezas… Querendo ou não, é uma forma de comparação. Estou buscando validação dos meus sentimentos. Aí converso com meus amigos que já terminaram. Todos sobreviveram… Então, deve ser assim mesmo, né?
  18. A natureza da pesquisa significa que as coisas nem sempre saem como planejado. Nossinhora!!!! Eu diria que é quase nada sai como planejado. E essa é a incerteza que eu estava falando antes. Fazer um doutorado é lidar com frustrações regularmente.
  19. Não passe aperto sozinha / sozinho. Já falei sobre isso, né? Falem com outras pessoas, conversem com os orientadores, peçam ajuda!
  20. Curta seu doutorado.

 

Esse texto provavelmente ficou muito mais negativo do que eu gostaria. Fazer um doutorado é muito desafiador, mas cada vitória tem um sabor delicioso. Cada experimento que dá certo, cada ficha que cai com as leituras dos artigos é uma sensação incrível! E minha crise nesse momento, é entender que não sou mais uma aluna e que os orientadores terão respostas para mim. Ganhar essa autonomia como pesquisadora é um processo dolorido, mas muito gratificante.


PS: Depois que terminei esse texto me deparei com essa thread no twitter que tem tudo a ver